Prefácio do livro “Entre os apitos da casa de força”, do escritor Isaias Ehrich
Na contramão de Raquel de Queiroz, considero-me um aficionado por prefácios e posfácios de obras, notadamente as (magias) literárias. Atrevo-me a discordar da imortal nordestina pela beleza, encanto e instigação que, geralmente, os autores destes textos provocam à visão dos leitores, sejam estes apaixonados ou simples curiosos.
Embora principiante neste gênero textual, arriscarei cumprir um dos papéis do prefaciante, que é tentar convencer alguns legentes a não perderem a oportunidade do deleite à leitura de obra uma magnífica. Certamente, a História produzirá uma resposta rápida quanto ao êxito ou fracasso do meu intento.
Inicialmente, cabem algumas considerações sobre o digno autor. Escritor, poeta, professor e crítico literário, Isaias de Oliveira Ehrich, membro de tradicional família são-gonçalense, desde jovem, quando ainda estudante na antiga Escola Agrotécnica Federal de Sousa, e com um estilo próprio e apurado, tem se revelado para o mundo da poesia. Herdara a precocidade poética do Romantismo Brasileiro, de Castro Alves, de Álvares de Azevedo, de Casimiro de Abreu...
O gosto escancarado pela leitura, aliado à facilidade com que as palavras brotam de sua mente, a profundidade dos conhecimentos político-sociais, bem como a formação acadêmica na área das letras, o induzem a se tornar, naturalmente, um autêntico intelectual sertanejo, a se juntar a um seleto grupo de escritores que insistem em perpetuar e manter acesa a chama da ardente e encantadora literatura regional.
Quanto à obra (de arte científica), atuando como crítico literário, Isaias faz uma dissecação impecável do romance regionalista da década de 1930 “A Barragem”, da escritora sousense Inez Mariz, que retrata a sofrível história de uma família de retirantes nordestinos que busca refúgio em São Gonçalo, em face da feroz seca de 1932.
Com uma intimidade espantosa com a autora, Isaias nos leva a imaginar que tenha feito a pesquisa não com a obra em si, como a conhecemos, mas a partir dos rabiscos de Inez, produzidos ali mesmo de cima da gruta de Nossa Senhora de Lourdes, nos intervalos das refeições no Hotel Catete, debaixo das oiticicas que margeiam o rio Piranhas, na calçada da igrejinha, ainda em construção na Rua Dezesseis, na tranquilidade e brisa fresca da Lagoa Redonda, ao lado da casa-de-força com os seus estridentes apitos, que gera energia para máquinas e homens...
Prezado leitor, não espere um livro técnico, formalmente histórico ou um romance qualquer. Trata-se de uma obra analítica, mágica. Não obstante tratar-se, a priori, de um trabalho acadêmico, formal, estamos diante de um livro escrito com a alma.
O autor não consegue disfarçar, ainda que tentasse, a sua paixão pela leveza da literatura, o amor exacerbado pela terra natal, a identificação com o longínquo descortinar temporal da década de 1930, com o mosaico da geografia e climatologia rural, com a singularidade dos aspectos culturais e sociais. Ademais, o próprio fascínio pela história e a ficção realística da obra certamente induzirão o qualitativo leitor a menosprezar quaisquer resquícios de tecnicidade dos escritos os quais por ventura possam existir.
Nobre leitor, lá de cima, o que pensará Inez Mariz desta obra? Talvez esteja exultante, feliz pela referência e reverência ao seu sublime trabalho. Todavia, por outro lado, talvez esteja um pouco apreensiva, com receio de que Isaias tenha contado tudo, causando um certo desestímulo para uma posterior leitura completa de “A Barragem”.
No entanto, uma possível preocupação de Inez não deve prosperar. Posso afirmar com rigorosa frieza que somente obtive o privilégio de despertar para a leitura da sua obra após o deleitoso esquadrinhamento de “Entre os apitos da casa de força”.
Devemos, sim, agradecer a Isaias por nos apresentar a intimidade de Inez Mariz, por nos fazer entender como são ricas a nossa cultura e religiosidade - herança bendita do catolicismo rural europeu, como são belas a nossa História e educação rural, como são grandiosas, apesar de sofridas, a nossa terra, a nossa gente...
Ariano Suassuna costumava dizer que um país que possui “Os Sertões” pode ser dominado politicamente, pode ser aviltado, mas estará sempre a salvo. Na mesma linha do acadêmico paraibano, ouso afirmar que uma terra que possui “Entre os apitos da casa de força”, pode até estar abandonada pelos governantes, em forte declínio administrativo, com o moral desguarnecido, no entanto, jamais deixará de ser vitrine, de estar em evidência, seja física, histórica ou magistralmente literária.