EXPEDITO SOUZA NO TIC TAC DO RELÓGIO DO TEMPO
Avistei um rosto que não me era estranho em uma das reuniões da Academia Sergipana de Letras. Fiquei naquela situação de disfarçar que não sabia exatamente quem era e de onde o conhecia. Quis também me proteger quanto a ser diagnosticada com Alzheimer. Achei o rapaz com cara de quem já foi seminarista. Como o vi tão quieto e circunspecto, entendi que escrevesse sobre auto ajuda. Tendo em vista esses juízos de valor, deixei o rapaz pra lá. Mas fiquei perguntando aos meus cabelos de onde o conhecia. Tempo vai, tempo vem, estou em uma homenagem ao poeta Hermes Fontes, evento movimentado na AESE (Associação dos Engenheiros Agrônomos de Sergipe). Curiosa, saí olhando as mesas de escritores que expunham suas obras e conversavam animadamente. Havia também mesas de quitutes e outras de artesanato. Uma mistura não muito saudável, mas, como havia um stand de café, perdoei tudo. Um conjunto musical de jovens oriundos de Boquim fazia uma apresentação digna de todos os elogios.
Lá vou eu pelas mesinhas e vejo uma amostra de livros, quase passava direto, eram os livros daquele rosto conhecido, o economista Expedito Souza. Novamente o juízo de valor me assaltou, dessa vez pelas cores das capas dos livros, com azuis, céus e o rosto profético do autor, eu me convencia de que era algo de aconselhamento e temas espirituais. Fui saindo e, então, o escritor se aproximou e começou a falar sobre sua obra e a me perguntar se já havia lido algo. Eu, doida pra fugir, mas como faria isto se seria indelicada e nem combinaria com a minha sexagenariedade? Ele fez questão de providenciar para que eu tomasse um daqueles livros, o intitulado Relógio do tempo.
Descrente que sou da literatura pré-cozida do nosso tempo, pensei que seria mais um livro para ter onde guardar em casa. Naquele mesmo dia, tomei a decisão de ler aquelas páginas, afinal teria que me manifestar sobre o teor delas, tendo em vista que, àquela altura, já reconhecera no autor uma figura presente na minha pré-adolescência. Que boa surpresa, que presente ganhei! Aqueles juízos de valor se evaporaram da minha mente e, quanto mais lia, mais queria ler o Relógio do tempo.
E o que tem no Relógio? Tem o tempo retornando e, em seguida recomeçando, assim como uma máquina poderosa que nos faz reviver cenas de nossas vidas. E o que são os textos dentro do livro? São narrativas deliciosas, são crônicas, são contos breves, são instantâneos de quem tem a exata noção de como a palavra deve ser tratada. Os textos, quase minimalistas, se mostram importantes registros para os interessados em visitar microrregiões do estado sergipano, conhecer-lhes os costumes, a cultura.
Expedito prioriza as histórias que vivenciou em sua terra, Riachão do Dantas, mas andeja por vários municípios sergipanos, como quando nos faz enfrentar uma cansativa viagem com um casal de noivos não aceito pelas normas da Igreja Católica. Maria Alice queria se casar e ficou só no querer, voltou para casa derrotada, com o vestido de noiva em petição de miséria e molhado de lágrimas. Os padres nem aí.
A Caçada aos calangos se dá com o pódio na calçada do Bilhar de seu Zuza, que nem entendia de marketing, apenas era o pai do autor e o dono do estabelecimento mais importante naquelas paragens, pois reunia clientes que jogavam o baralho, ouvindo um potente rádio movido à bateria e através do qual eram acompanhados os jogos futebolísticos e as novelas. Foi ali que seu Zuza inventou de propor à molecada uma caça aos calangos. Deu uma confusão engraçada, pois, ao final da corrida, só eram computados os calangos machos. Que pena a maioria ser de fêmeas.
De outra vez, seu Zuza, com a clara intenção de incrementar aquele ponto de encontro, entendeu de abrir uma disputa entre uma turma de competidores comedores de bolachão, dos fofos, daqueles que sufocam e entalam; e a segunda turma, de desembestados “atletas” corredores. Não deu outra, o comedor de bolachão, já para mais da metade do combinado, se entalou e pedia água quase fora de si.
Quando mencionei a passagem dos comedores de bolachão, em uma sessão da Academia Sergipana de Letras, coincidentemente, foram servidos bolachões aos presentes. Observei que o Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, Carlos Pina, havia devorado em poucos minutos dois bolachões, mas daquele durinhos, o bolachão de coco. Sem se entalar. Fiquei desconfiada que ele bem poderia ser um daqueles meninos do Bilhar de seu Zuza.
As construções, as praças e diversos outros ambientes da pequena Riachão do Dantas, envolvida entre montes de algodão e máquinas descaroçadoras, estão descritos por Expedito, que tratou de anotar a sua paixão por carros antigos, tudo com fotografias, provas do que conta ao seu leitor.
Quase não consigo parar de rir (uma crueldade|!) ao longo da narrativa Doce de leite. Esta diz respeito a uma moça que comercializava a ambrosia para angariar uns trocados, tendo como meta a aquisição do sonhado traje de noiva. Lá vai, a contragosto, o menino no cavalo, entregar a encomenda, quando um outro vem em sua direção com uma bicicleta, acontece uma colisão entre quatro patas e duas rodas, vieram os coices do cavalo assustado e a panela de doce de leite se esparramou no chão...
E quem não achará toda a graça na história em que se forma um alarido na cidade com tanta gente gritando que haviam matado Getúlio. Sim, o Vargas, o presidente do país. Na narrativa temperada com suspense, diz Expedito que, “ao tomar conhecimento da morte de doutor Getúlio, Marcela corria rua a cima e rua a baixo, parando à porta de um e de outro, chorando e dizendo que o mundo ia-se acabar. No grupo escolar e no Educandário São José, de dona Mariana, as aulas foram suspensas, e todos os alunos voltaram para as suas residências.” Só que um dos citados nesse conto saiu desesperado em busca de Getúlio, o do Riachão, que era, na verdade, um galo.
Outros relatos muito interessantes, e que não nos deixam soltar a leitura de Relógio do tempo, envolvem o reisado na Carnaíba, a falta d’água e até um barbeiro pesquisador que deixou o cliente sentado com a cara feita a barba de um lado só, quando recebeu a notícia de que havia chegado o pagamento do pessoal que participara do censo do IBGE. Além do Faroeste ao luar, com cenas de filmes de cowboys hollywoodianos e o personagem Zé Mocinha, tem uma lista para lá de excêntrica com os nomes dos clientes da bodega de Zuza. Coisa para se morrer de rir. O Zé Mocinha ficou sendo o pioneiro do pessoal LGBT & Cia.
A segunda parte das narrativas acontece em Aracaju e outros cenários. O leitor não consegue mesmo parar de ler a literatura do cotidiano, das pessoas puras, simples, límpidas como os enredos montados por Expedito Souza.
O autor de Relógio do tempo e outras obras anda pelas areias de Aracaju, observa a venda de água e banhos e vivencia uma carreira de radialista que ele mesmo disse ter sido meteórica, pois, em gravação, ao entrar no ar pelas ondas da experimental RÁDIO EIA AM-1 440 KHZ, reunido com amigos em um estabelecimento comercial, na esquina das ruas Laranjeiras e Siriri, Expedito, apresentando Curiosidades, cumprimentou os ouvintes. Foi então que um cliente do armazenzinho, levantando-se da cadeira, exclamou: “Ô voz feia da porra!”. Acabara ali a carreira radiofônica, mas não a de escritor.
Segue o livro, a cada página mais atraente, até que se fecha com a comovente história de Maria Clara, uma bela menina que Expedito conhecera na sua infância. Uma menina do Lar de Santa Zita (Casa da Doméstica Dom José Vicente Távora), mas que agora é pós-doutorada em Geologia, e o marido, Georges, doutor em Paleontologia, ambos pela Universidade de Paris. O casal vive por lá, na Ville Lumière.