O quinze e vidas secas: atrama psicológica em seus protagonistas

1. INTRODUÇÃO

Vivemos em um mundo repleto de seres pensantes, críticos da realidade em que estão inseridos, dentre os bilhões de pessoas existentes no planeta estão os autores, pessoas que dedicam suas vidas a escrever, sejam fatos verídicos, sejam histórias inventadas, imaginárias, com o intuito de informar, distrair, despertar sentimentos e sensações, enfim, o autor, no momento da construção de sua obra tem inúmeras inquietações e tantas outras intenções.

Partindo deste ponto de vista, o leitor tem em suas mãos obras que trarão, direta ou indiretamente, mudanças significativas às suas vidas, seja no que concerne ao comportamento ou seus conceitos em relação à vida e suas nuances.

Portanto, a literatura, faz-se essencial para a formação do ser humano, no que se refere à construção de sua criticidade, sua posição no mundo, seus desejos por mudanças, progressos ou regressos.

Cândido et al. (1968, p. 9), refere se aos conceitos que norteiam a literatura, afirmando que: literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras, obras científicas, reportagens, notícias, textos de propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha etc.” O autor discorre sobre o fato de que o traço distintivo da literatura parece ser menos a beleza das letras do que seu caráter fictício ou imaginário. Para tanto, nos traz o conceito de que a delimitação do campo da literatura pelo caráter ficcional ou imaginário tem a vantagem de basear-se em momentos de “lógica literária” que, na maioria dos casos, podem ser verificados com certo rigor, sem que seja necessário recorrer a valorizações estéticas.

Quando nos referimos a valores estéticos é possível perceber, ainda de acordo com Cândido et al. (1968, p. 9) que o critério do caráter ficcional ou imaginário não satisfaz o propósito de delimitar o campo da literatura no sentido restrito, uma vez que, a literatura de cordel tem caráter ficcional, mas não é possível dizer o mesmo dos Sermões de Padre Vieira, ou dos escritos de Pascal, ou dos diários de Gide ou Kafka.

Entretanto, os valores estéticos das obras literárias possibilitam ao leitor estabelecer relações entre elas, à estrutura dos textos, compõe-se de uma série de planos, dos quais o único real, sensivelmente dado, é o dos sinais tipográficos impressos no papel.

As configurações sonoras das orações, percebidas apenas pelo leitor, as unidades significativas de vários graus, constituídas pelas orações que são projetadas através de operações lógicas, quando certas relações são atribuídas aos objetos e suas qualidades, estes aspectos determinam as classificações dos textos. Quando se trata de aspectos esquemáticos dos textos literários, é possível dizer, de acordo com Cândido et al. (1968, p. 11) que, a seleção cuidadosa e precisa da palavra certa com suas conotações peculiares, podem referir-se à aparência física ou aos processos psíquicos de um objeto ou personagem (ou de ambientes ou pessoas históricas etc.), podem salientar momentos visuais, táteis, auditivos etc.

Portanto, de acordo com este pressuposto, a comparação de obras literárias ou personagens de obras distintas, se dá de maneira automática pelo leitor, uma vez que este consegue, ao ler, identificar aspectos ou características de um no outro, ou ainda, ao ler determinada obra e reconhecer na descrição dos ambientes ou personagens, uma outra obra, anteriormente por ele conhecida.

Quanto a essa comparação, academicamente nos remetemos à literatura comparada, que de acordo com Carvalhal (1986, p. 5), nada mais é do que “uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas”.

A literatura comparada surge no século XIX e ao longo de sua história sofre várias mudanças até, finalmente ser reconhecida com o objetivo a que seu próprio nome sugere “comparar”.

Entretanto, ao entrar em contato com textos literários comparados, é fácil notar, que não existe uma fórmula mágica, cada trabalho segue uma linha de raciocínio, uma lógica sobre a qual foi pautado, possibilitando ao leitor contato com as mais variadas formas de comparações.

Diante deste contexto e partindo de todos os conceitos expostos, as linhas desta pesquisa tende a apresentar, de maneira sucinta, aspectos teóricos em relação à literatura comparada, além da comparação de personagens dentro das obras clássicas da literatura brasileira.

Sob o título “O Quinze e Vidas Secas: a trama psicológica em seus protagonistas” pretende-se conhecer, reconhecer e compreender as características de Chico Bento (O Quinze) e Fabiano (Vidas Secas) e por uma linha psicológica verificar a existência ou não de semelhanças entre os dois personagens.

Contudo, tratando-se de personagens construídos a partir do contexto social da década de trinta, período no qual está à segunda fase do modernismo, também conhecida como regionalismo, às personagens já trazem consigo uma característica muito forte que é a vivência na seca do sertão nordestino.

Comparar realidades descritas nos livros “Vidas Secas” e “O Quinze”, que descrevem as características do nordeste brasileiro, na década de 1930, ainda presentes nos dias atuais, em pleno século XXI, dentre elas, fome, seca, desigualdade, miséria e injustiça social. Uma vez que, o ato de comparar deve ser considerado como procedimento de investigação, um dos objetivos deste trabalho é investigar as relações contextualizadas das situações vivenciadas por ambas as personagens, além de realizar uma contextualização com situações cotidianas reais.

Enfatizamos a realidade, uma vez que, os autores das obras, por nós aqui apresentadas, eram naturais do nordeste brasileiro e, embora, suas respectivas famílias fossem detentoras de situação financeira confortável o que possibilitou a eles escaparem da grande seca que acometeu no nordeste em 1915, tanto Rachel de Queiroz, quanto Graciliano Ramos conheciam a realidade sobre a qual escreveram e, assistiram os sofrimentos de centenas de pessoas que, como eles não tiveram a mesma sorte.

Embora o contexto social brasileiro de 1930, período em que as obras foram publicadas, seja rico de aspectos relevantes, nosso foco a priori é comparar os aspectos psicológicos, bem como a linguagem usual das personagens, a maneira de pensar, os valores morais e materiais, a questão sentimental, além de seus pilares de força, admiração e fé, pretendendo responder a pergunta que gerou em nós inquietação para realização desta pesquisa: “Será possível que as duas personagens tenham internalizadas as mesmas características no aspecto psicológico?”.

Todavia, para realização do presente trabalho, foi indispensável à leitura minuciosa dos livros “Vidas Secas” e “O Quinze”, focando nas características das personagens acima supracitadas, além de pesquisas bibliográficas científicas no que se concerne a “literatura comparada”, visando com isso, elaborar uma análise mais específica que possibilite ao leitor compreender nossos objetivos e apreender aspectos que julguem relevantes. Portanto, nas páginas que seguem pretendemos levar o leitor a mesma viagem que vivenciamos no contato com os livros analisados, com as teorias existentes e com a contextualização das obras com a realidade.

2. LITERATURA COMPARADA

No que concerne à literatura, Antonio Cândido (1968, p. 9) diz que:

Geralmente, quando nos referimos à literatura, pensamos no que tradicionalmente se costuma chamar “belas letras” ou “beletrística”. Trata-se, evidentemente, só de uma parcela da literatura. Na acepção lata, literatura é tudo o que aparece fixado por meio de letras — obras científicas, reportagens, notícias, textos de ‘propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha etc.

Portanto, a literatura está presente em todos os momentos de nossas vidas, em tudo o que vivemos, ou presenciamos, se funde com a realidade, aparecendo muitas vezes como um retrato dela ou retratando-a.

Cândido (1993, p. 211), afirma que: “estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada, porque a nossa produção foi sempre tão vinculada aos exemplos externos, que insensivelmente os estudiosos efetuavam as suas análises ou elaboravam os seus juízos tomando-os como critérios de validade. Daí ter havido uma espécie de comparatismo difuso e espontâneo na filigrana do trabalho crítico desde o tempo do romantismo, quando os brasileiros afirmavam que a sua literatura era diferente da de Portugal”.

Ao ouvir o termo “Literatura Comparada”, automaticamente o relacionamos as comparações de duas obras ou de dois personagens ou mais, de fato a literatura comparada designa, de acordo com Carvalhal (2004, p. 5) “uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas”.

Entretanto, realizar a comparação de obras literárias e/ou personagens não é tarefa fácil de realizar, pois existem diversas formas de investigação, além de diversas metodologias, sendo que, a diversificação dos objetos de análise concede à literatura comparada um vasto campo de atuação. (CARVALHAL, 2004, P.5).

Neste sentido, Carvalhal (2004, p.6), aponta que:

A expressão “literatura comparada” complica-se ainda mais ao constatarmos que não existe apenas uma orientação a ser seguida, que, por vezes é adotado um certo ecletismo, metodológico. […] Aos poucos torna-se mais claro que a literatura comparada não pode ser entendida apenas como sinônimo de comparação. (CARVALHAL, 2004, p. 6).

O adjetivo “comparado” é derivado do latim “comparativus”, empregado na Idade Média e, depois consta que, em 1.598 Francis Meres utiliza o termo em seu “Discursivo comparado de nossos poetas ingleses com os poetas gregos, latinos e italianos”, posteriormente nos séculos XVII e XIII, Willian Fulbecke publica “Um discurso comparado das leis” e John Gregory a “Anatomia comparada dos animais selvagens”. (CARVALHAL, 2004, p. 8).

Outro conceito de literatura comparada é apontado por Coutinho e Carvalhal (apud Prawer, 1994, p. 296), no qual estabelece que a Literatura comparada implica um estudo de literatura que usa a comparação como seu principal instrumento. No entanto, se aplica a qualquer estudo de literatura: não se pode apreciar plenamente a individualidade de Wordsworth, seu lugar numa tradição e na modificação dessa tradição, sem comparar sua obra, explícita ou implicitamente, com a obra de Milton e James Thomson, com a de Shelley e Keats. A literatura comparada, então, faz suas comparações atravessando fronteiras nacionais.

No entanto, o surgimento da literatura comparada, de acordo com Carvalhal (1986, p. 8), está vinculado à corrente de pensamento cosmopolita, característica do século XIX. As “Lições de anatomia comparada” de Currier (1800), a “História comparada dos sistemas de filosofia” de Degerand (1804) e a “Fisiologia comparada” de Blainville (1833) difundem o termo.

Entretanto, Carvalhal (1986 p. 8) diz que, embora emprestada amplamente na Europa para estudos de ciências e linguística, foi na França que a “Literatura Comparada” se firmou. Contudo, foi Abel-François Villemain quem divulgou a expressão nos cursos de literatura no século XVIII na Sorbonne entre 1828-1829. Tempos depois, J. -J. Ampére em seu “Discurso sobre a história da poesia” (1830) no qual se refere sobre a “História comparativa das artes e da literatura”, é também graças a Ampére que a expressão ingressa na órbita da crítica literária. (CARVALHAL, 2004, p. 9).

Todavia, Philaréte Charles (1835) formulou alguns princípios básicos da “história da literatura comparada”. Além de grandes comparatistas franceses como Joseph Texte, Fernand Baldensperger e J. -M. Carré. Contudo, a difusão da literatura comparada coincide, de acordo com Carvalhal (2004, p. 10) com o abandono do predomínio do chamado “gosto clássico”, que cede diante da noção de relatividade, já estimulada, desde o século XVII, pela “Querelle des anciens et des modernes”.

Ainda no século XVIII, na Alemanha, Moriz Carriére adotou pela primeira vez a expressão “verglichende literaturgeschichte” (história comparada da literatura), a intenção de Carriére era integrar a literatura comparada à história geral da civilização. Em Berlim surge o primeiro periódico da disciplina comparativista editado por Max Koch (1887-1910). (CARVALHAL, 2004, p. 11).

Na Inglaterra, na Itália e em Portugal entre 1886 e 1912 alguns literatas também utilizaram a expressão nos cursos de literatura. (CARVALHAL, 1886, p. 11).

No Brasil, de acordo com Carvalhal (2004, p. 11), Tasso da Silveira, busca fontes e influências, ocupando-se com casos de imitações ou empréstimos. Para o autor, em literatura comparada procedem-se as comparações de caráter especial e com finalidade positiva, ou de verificar a filiação de uma obra ou de um autor a obras e autores estrangeiros, ou ainda de um momento literário ou da literatura interna de um país a momentos literários ou a literaturas de outros países.

Entretanto, a autora trata do cunho comparativista quando discorre sobre algumas características, aspectos ou fatores a serem comparados, porém destaca-se a noção de intertextualidade, que de acordo com a mesma, ajudou a reformular aspectos importantes das relações Inter literária.

Para Carvalhal (1994, p.12), a articulação entre as disciplinas teoria e literatura comparada, se traduz pela utilização de conceitos epistemológicos e por observação dos "estudos literários" em sua totalidade, a autora constata que a articulação entre empréstimos de metodologias, levando a uma atuação conjunta, está consagrada nas obras de vários autores que integraram, num mesmo título de suas publicações, os dois termos. É o caso, por exemplo, das obras de Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux, Literatura portuguesa, literatura comparada e teoria da literatura (1981).

No que concerne à articulação da teoria e da literatura comparada, Nitrini (, p. 126-127), discorre sobre conceitos fundamentais, dentre os conceitos estão à imitação e a influência, contudo, a autora fala também da intertextualidade.

Quando discorre sobre o conceito de influência, Nitrini (, p. 127) o classifica em duas vertentes, de um lado está à soma de relações de contato de qualquer espécie, que se pode estabelecer entre um emissor e um receptor e, por outro lado influência é o resultado do conhecimento direto ou indireto de uma fonte de um autor.

Todavia, até certo ponto a influência pode ser confundida com a imitação, quando na realidade, segundo Nitrini (p. 127-128):

[…] A imitação é um contato localizado e circunscrito, enquanto a influência é uma aquisição fundamental que modifica a própria personalidade artística do escritor. A influência distingue-se da tradução que se identifica a si mesma, e da imitação que se reconhece por um simples cotejo de textos.

Entretanto, são apontadas quatro possibilidades de imitações, dentre elas: a mimeses – imitação da natureza como fonte de arte; a retórica do renascimento; o processo de adaptação renascentista e a equivalência entre influência e imitação.

Tão importante quanto às técnicas e/ou metodologias utilizadas nas comparações de obras literárias, são os comparatistas, visto o grau de entrega e compromisso deste para com o trabalho comparativo.

Para tanto, Philippe Willemart (1994, p. 30), levanta uma discussão acerca do comparativismo literário, apontando que, o comparatista, procurará no seu texto as marcas da outra literatura ou a presença do Outro, mas uma vez as traças descobertas, ele não fará delas a razão ou a causa determinista da escritura estudada, mas discernirá os mecanismos de desintegração que desestabilizam o texto anterior e os de integração ao nível da narratologia, da ideologia, da sócia crítica, etc. para discernir em seguida, a posição original da escritura estudada em relação à literatura anterior.

No caso dos livros e personagens aqui analisados não podemos afirmar que houve imitações, pois o contexto social dos autores era de iguais semelhanças, portanto qualquer aproximação faz parte das características da literatura Pertencente à segunda fase modernista, conhecida como regionalista.

3. RACHEL DE QUEIROZ E GRACILIANO RAMOS

“O Quinze” e “Vidas Secas” são respectivamente obras de Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, ambas publicadas na década de 1930, com a temática de retirantes nordestinos fugindo da seca que se instaura na época.

3.1 - Raquel de Queiroz

Raquel de Queiroz nasceu em Fortaleza (CE), em 17 de novembro de 1910, filha de Daniel de Queiroz Lima e Clotilde Franklin de Queiroz. Após grande seca, Rachel mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1917, no entanto passou pouco tempo na capital, mudou-se para Belém do Pará, retornando tempos depois para o Ceará.

No Ceará, Rachel fez curso normal no Colégio Imaculada Conceição, formou-se professora aos quinze anos. Ao retornar a fazenda dos pais em Quixadá, Rachel dedicou-se a leitura de literaturas brasileiras e estrangeiras e iniciou seus primeiros escritos. Faleceu, dormindo em sua rede, no dia 04-11-2003, na cidade do Rio de Janeiro.

Em toda sua vida Rachel de Queiroz teve publicados muitos trabalhos, de autoria individual ou em parcerias. Seguem alguns:

• Romances:

- O quinze (1930).

- João Miguel (1932).

- As três Marias (1939).

- Dôra, Doralina (1975).

- Obra reunida (1989).

- Memorial de Maria Moura (1992).

• Literatura Infanto-Juvenil:

- O menino mágico (1969).

• Teatro:

- Lampião (1953).

- A beata Maria do Egito (1958).

- Teatro (1995).

• Crônica:

- A donzela e a moura torta (1948).

- 100 Crônicas escolhidas (1958).

- O brasileiro perplexo (1964).

- As menininhas e outras crônicas (1976).

- O jogador de sinuca e mais historinhas (1980).

- As terras ásperas (1993).

• Antologias:

- Três romances (1948)

- Quatro romances (1960) (O Quinze, João Miguel, Caminho de Pedras,

As três Marias).

• Livros em parceria:

- Brandão entre o mar e o amor (romance - 1942) - com José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Aníbal Machado e Jorge Amado.

- Luís e Maria (cartilha de alfabetização de adultos - 1971) - Com Marion Vilas Boas Sá Rego.

• Obras traduzidas pela escritora:

AUSTEN, Jane. Mansfield Parlz (1942).

BALZAC, Honoré de. A mulher de trinta anos (1948).

BAUM, Vicki. Helena Wilfuer (1944).

BELLAMANN, Henry. A intrusa (1945).

BOTTONE, Phyllis. Tempestade d'alma (1943).

BRONTË, Emily. O morro dos ventos uivantes (1947).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios (1951).

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os irmãos Karamazov (1952) 3 v.

DU MAURIER, Daphne. O roteiro das gaivotas (1943).

PROUTY, Oliver. Stella Dallas (1945).

REMARQUE, Erich Maria. Náufragos (1942).

• Biografias e memórias:

BUCK, Pearl. A exilada: retrato de uma mãe americana (1943).

CHAPLIN, Charles. Minha vida (caps. 1 a 7 (1965).

DUMAS, Alexandre. Memórias de Alexandre Dumas, pai (1947).

TERESA DE JESUS, Santa. Vida de Santa Teresa de Jesus (1946).

STONE, Irwin. Mulher imortal (biografia de Jessie Benton Fremont (1947).

TOLSTÓI, Leon. Memórias (1944).

• Teatro:

CRONIN, A. J. Os deuses riem (1952).

3.2 - O Quinze

Ilustração 2: Capa do Livro "O Quinze"

O Quinze, romance de Rachel de Queiroz, publicado em 1930, de acordo com Monteiro (1964) “é uma ação magistralmente conduzida em dois planos, aos quais liga a figura central de Conceição, a qual pertence realmente aos dois”. É através de sua experiência, através do que ela sente que os ricos e os pobres confluem, […] é ela que dá autenticidade a cada um dos mundos, e, tornando-os próximos, evitando o perigo do romance social, com a sabida divisão de “bons pobres” e “maus ricos”.

Embora a personagem central seja Conceição, o livro apresenta a saga de Chico Bento e sua família fugindo da seca, retirando para o que pensavam ser a salvação de suas vidas.

3.3 Graciliano Ramos

Graciliano Ramos nasceu em 27 de outubro de 1892 na cidade de Quebrangulo, em Alagoas. Filho de Sebastião Ramos, negociante miúdo e da filha de um criador de gado. Mudou-se com a família para Buíque, no Pernambuco, onde seu pai comprou uma fazenda, entretanto, a seca matou o gado, fazendo com que seu pai abrisse uma loja.

Em 1899, a família de Graciliano, mudou-se para Viçosa, Alagoas, onde passa a frequentar o Colégio Quinze de Março, local onde teve suas primeiras experiências como escritor, que aparecem no periódico Echo Viçosense e no jornal carioca O Malho.

Aos 18 anos, Graciliano foi morar em Palmeira dos Índios, para cuidar da casa comercial de seu pai, no entanto, o trabalho não o atrai, surgiu então a ideia de procurar alguma coisa na imprensa, o que só foi possível após sua chegada ao Rio de Janeiro em 1914, tendo conseguido colocação como revisor no Correio da Manhã. Infelizmente, Graciliano precisou retornar a Alagoas, visto uma tragédia familiar, deixando de colaborar com todos os periódicos, atividade que só voltaria a exercer cinco anos mais tarde.

Ainda em 1915, casou-se com Maria Augusta de Barros e com ela teve quatro filhos, mas, a esposa morreu em 1920 devido as complicações no parto. Até o final da década de 1920, Graciliano casou-se com Heloísa Leite de Medeiros, com quem teve mais quatro filhos, ainda na década de 1920, foi eleito prefeito de Palmeira dos índios, entretanto, só ocupou o cargo por dois anos, quando em 1930 apresenta sua renúncia.

Nos anos seguintes Graciliano foi nomeado diretor de Instrução Pública de Alagoas e, concomitantemente, contratado como redator do Jornal de Alagoas. Foi preso em 1936, em Maceió, acusado de comunismo, passou por várias prisões em Recife e Maceió, de lá seguiu no porão de um navio para o Rio de Janeiro, onde ficou quase um ano preso. Ainda na cadeia publica escreveu o romance “Angústia”.

Após ser solto, passou a morar com a família e inicia a publicação de vários contos no jornal argentino La Prensa. Aos 50 anos recebeu o prêmio Felipe de Oliveira pelo conjunto de sua obra. Filiou-se ao Partido Comunista em 1945 a convite de Luís Carlos Prestes e lançou Infância. Em 1952, sua saúde se agrava, sendo operado sem sucesso, morreu no dia 20 de março do ano seguinte. Escreveu muito durante toda a sua vida. Dentre suas obras estão:

- Caetés – romance (1933).

- São Bernardo – romance (1934).

- Angústia – romance (1936).

- Vidas secas – romance (1938).

- Infância – memórias (1945).

- Dois dedos – contos (1945).

- Insônia – contos (1947).

- Memórias do cárcere – memórias (1953).

- Linhas tortas – crônicas (1962).

- Viventes das Alagoas – crônicas (1962).

- Cartas - correspondência pessoal (1980).

3.4 - Vidas Secas

Uma das mais famosas obras de Graciliano Ramos, “Vidas Secas” narra a saga de Fabiano e sua família em busca de um lugar ao sol. O livro, mais um drama social do que um romance, conta a trajetória de uma família de retirantes fugindo da seca que se alastra pelo Ceará na década de 1930.

Ilustração 4: Capa do Livro "Vidas Secas"

Pertencente à segunda fase modernista, conhecida como regionalista, é qualificada como uma das mais bem-sucedidas criações de sua época. A forma seca com que Graciliano Ramos escreve, transmite a aridez do ambiente e seus efeitos sobre as personagens retratadas.

O livro possui treze capítulos, nos quais o autor narra à história de retirantes fugindo da seca, entretanto, os capítulos não seguem ordem cronológica, podendo ser lidos aleatoriamente, entretanto, o primeiro capítulo “Mudança” e o último “Fuga”, devem ser lidos nessa sequência, uma vez que apresentam uma ligação que fecha um ciclo.

Os capítulos "Mudança" e “Fuga” narram o sofrimento da família sertaneja na caminhada impiedosa pela aridez da caatinga, nos dois capítulos é possível notar que, quando menos se espera, a situação se agrava e a família é obrigada a se mudar novamente.

Uma narrativa dramática, que aproxima a ficção da realidade vivida pelo povo nordestino tanto na época em que a obra fora escrita, quanto na atualidade, mesmo que em contextos diferentes, visto a evolução e o desenvolvimento que o país sofrera nas últimas décadas.

4. AS PERSONAGENS

O dicionário Aurélio (2008, p. 626), define personagem como:

Personagem s.f. e m. 1. Pessoa notável; personalidade. 2. Cada um dos papéis duma peça teatral que devem ser representados por um ator. 3. Cada um daqueles que figuram numa narração. Poema ou acontecimento. [Pl.: - gens.]

Brait (1985, p. 10), faz uma crítica à definição do verbete “personagem” pelo dicionário Aurélio, uma vez que, segundo a mesma, a utilização da palavra “pessoa” gera uma confusão entre a relação pessoa (ser vivo) e personagem (ser ficcional). Para a autora, ainda que o termo “papéis” indique possíveis diferenças existentes entre pessoas e personagens, a frase “Cada um daqueles que figuram numa narração, poema ou acontecimento”, levam o leitor a encarar a narração, o poema e o acontecimento como fenômenos de uma mesma espécie, de uma mesma natureza.

Sendo assim, tal fato por si só é suficiente para personificar os personagens fictícios, de acordo com o dicionário Aurélio (2008, p. 626):

Personificar v.t.d. 1. Personalizar. 2. Representar por meio duma pessoa; pessoalizar. 3. Simbolizar, exprimir [C. 1A] personificação sf.; personificado adj.

Portanto, o ato de personificar a personagem de um livro, filme, novela, peça teatral, pintura, enfim, faz com que o leitor sinta-se mais próximo da obra e identifique nela características da realidade.

Quando nos apaixonamos pelas personagens dos livros, que as confundimos com seres humanos reais, que sofremos com seus dramas e vibramos com suas conquistas de fato. O leitor, mesmo que inconscientemente, tende a confundir ficção com realidade, ou realidade com ficção e, ao entregar-se à leitura, mergulha em um faz-de-conta tão profundo que, por alguns instantes se esquece da realidade.

Brait (1985, p.9), narra o envolvimento entre personagens e o leitor:

Não há distanciamento leitor—texto que possa refrear a emoção sentida, por exemplo, quando em Grande sertão: veredas nos defrontamos com Reinaldo-Diadorim morto. E não se trata de uma emoção superficial, provocada apenas pelo dado da surpresa: a releitura do romance não impede que a emoção seja revivida. E é precisamente isso que faz cessar o riso e aflorar as cismas. Afinal de contas, diante do leitor há apenas “papel pintado com tinta”. Além disso, que outra matéria, que outra natureza reveste esses seres de ficção, esses edifícios de palavras que, por obra e graça da vida ficcional, espelham a vida e fingem tão completamente a ponto de conquistar a imortalidade?

Partindo desse pressuposto, surge uma inquietação muito grande quanto ao que pensa o autor da obra no momento em que está compondo, confunde realidade com ficção, escreve tudo que vem ao seu imaginário ou, institivamente, escreve sobre fatos e pessoas reais, aos quais presenciou ou conviveu?

Precisar o que pretendia o autor no momento da concepção da obra é tarefa quase impossível, visto haver necessidade de contato com este para conhecer tal inclinação, no entanto, ao dar vida à personagem o autor tem grande poder de transmitir uma mensagem, seja ela sentimental, social, crítica, política, etc., para tanto, os autores tendem a utilizar meios que humanizem suas personagens a tal ponto, proporcionando ao leitor implicitamente, contato com sua maneira de agir, seus valores morais, sua personalidade, suas concepções políticas, de acordo com a conveniência e com o tipo de obra.

Para Cândido et al. (1968, p. 11):

Os valores e os significados espirituais mais profundos que transparecem através dos planos anteriores, principalmente o das objectualidades imaginárias constituídas, em última análise, pelas orações, faz com que este mundo fictício seja transfigurado para a realidade empírica exterior à obra, tornando-se representativos para algo além dele, ou da realidade empírica, mas imanente à obra.

A partir do ponto de vista de Cândido et al. (1968), é possível notar que, em toda obra literária tem aspectos que vão além dos explícitos em palavras, e que, contém muitos traços de valores morais implícitos, que, mesmo inconscientemente, se fundem com os valores do leitor e que, podem modificar o mesmo, uma vez que, a personagem é confundida com um ser vivo (real).

No entanto, Brait (1985, p.10-11), discorre sobre a importância de consultar dicionários mais específicos que levem a uma concepção de personagem diferente da apresentada pelo dicionário Aurélio, a autora faz uso de um Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem, organizado por Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, no qual cita um item que a mesma julga pertinente à discussão por ajudar a pensar a relação personagem—pessoa.

Uma leitura ingênua dos livros de ficção confunde personagens e pessoas. Chegaram mesmo a escrever “biografias” de personagens, explorando partes de sua vida ausente do livro (“O que fazia Hamlet durante seus anos de estudo?”). Esquece-se que o problema da personagem é antes de tudo linguístico, que não existe fora das palavras, que a personagem é “um ser de papel”. Entretanto recusar toda relação entre personagem e pessoa seria absurdo: as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção. (DUCROT, TODOROV, apud BRAIT, 1985, p. 10-11).

Portanto, os autores citados por Brait (1985, p. 10-11), num enunciado simples tratam da questão de maneira clara e sucinta, ao afirmarem que para conhecer a personagem devemos encarar frente a frente à construção do texto, a maneira como o autor encontrou para dar forma às suas criaturas, e aí pinçar a independência, a autonomia e a “vida” desses seres de ficção. E somente sob essa perspectiva, se necessário, poderemos vasculhar a existência da personagem enquanto representação de uma realidade exterior ao texto.

Entretanto, Brait (1985, p. 18-19), nos leva a um raciocínio muito mais complexo, quando trata dos espaços descritos pelo autor no decorrer de sua obra, focando no texto literário a autora enfatiza o espaço em que, por meio de palavras, o autor vai redigindo os seres que compõem o universo da ficção. Para tanto, destacou um fragmento pertencente ao romance O Ateneu, de Raul Pompéia, para análise visando verificar as estratégias que o autor utiliza para reinventar a realidade, transportando sua visão de mundo ao leitor e fazendo-o, por essa ilusão, reportar-se à chamada realidade.

Brait, (1985, p. 19) apresenta características do primeiro capítulo de O Ateneu, reconhecido romance de crítica social articulada a partir de técnicas não apenas realistas-naturalistas, mas também expressionistas e impressionistas. Em um dos excertos a autora destaca o segundo parágrafo do livro, no qual há a descrição do colégio.

Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema denutrido reclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última remessa; o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito na preferência dos pais, sem levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso dos anúncios. (POMPÉIA, apud BRAIT, (1985, p. 20)).

Segundo a autora, este parágrafo começa a caracterização, processo utilizado pelo narrador para criar a ilusão da existência de espaços e personagens. O objeto da caracterização é focalizado no início do parágrafo, por meio de uma síntese dos aspectos que o narrador considera importantes: “Ateneu era o grande colégio da época”.

A simples decomposição da frase demonstra que elementos foram selecionados e de que maneira foram combinados pelo narrador para colocar o leitor no ângulo exato de sua visão: inicialmente, um substantivo, um nome próprio, individualiza e confere existência ao espaço evocado; em seguida, reforçando essa existência, a utilização do verbo “ser”, na terceira pessoa do singular do pretérito imperfeito do indicativo, confere ao substantivo Ateneu o estatuto de sujeito da proposição; finalmente, um predicativo do sujeito, formado pelo adjetivo “grande” antecedido do artigo definido masculino “o”, mais o substantivo “colégio” seguido do adjunto adnominal “da época”, atribui ao sujeito as qualidades que o narrador quer transmitir”. (BRAIT, 1985, p. 20).

Com isso a autora pretendia dizer que, o leitor enxerga sob a ótica do narrador não as características físicas do espaço evocado, mas “o grande colégio da

época”, uma entidade educacional destacada por sua importância, por sua maneira de ser num dado momento. (BRAIT, 1986, p. 20).

Não são sós as características físicas, psicológicas, morais, espirituais, etc. que remetem à personagem, mas todo o contexto no qual está inserida molda sua personalidade e a denota os aspectos pelos quais serão reconhecidas.

Candido et al. (1968, p.12), também discorre sobre a importância da oração para que o leitor compreenda a mensagem pretendida pelo autor em relação à personagem, para tanto, exemplifica com a oração “Mario estava de pijama”, uma vez que, segundo o autor, ao ler a frase, o interlocutor projeta uma imagem, ou ainda, automaticamente imagina um indivíduo usando um pijama.

Segundo Cândido et al. (1968, p.12), todo texto, artístico ou não, ficcional ou não, projeta contextos objectuais “puramente intencionais” que podem referir-se ou não a objetos autônomos.

Ainda de acordo com Cândido et al. (1968, p.13-14), uma das diferenças entre o texto ficcional e outros textos está no fato de que, no texto ficcional, as orações projetam contextos objectuais e, através de seres e mundos puramente intencionais, não se referem, a objetos determinados que independem do texto.

Todavia, no que concerne a intenção da oração, Cândido et al. (1968, p.13-14) discorre:

O raio de intenção passa através delas diretamente aos objetos também intencionais, à semelhança do que se verifica no caso de eu ver diante de mim o moço acima citado, quando nem sequer noto a presença de uma “imagem” interposta.

O excerto acima vem colaborar com o que está implícito nas ideias, Brait (1985), quando a autora diz não haver distância entre leitor e texto, uma vez que o leitor toma para si, em contato com a palavra escrita, a personificação das coisas, construindo em seu cérebro imagens para os ditos e personagens.

Entretanto, todo o universo que norteia o conceito de personagem e sua função no discurso está vinculado não só a mobilidade criativa do autor, como também à reflexão a respeito dos modos de existência e do destino desses fazeres. (BRAIT, 1985, p. 28).

No entanto, não é possível pensar a personagem sem voltar à Grécia antiga e aos grandes pensadores que impulsionaram o conhecimento, pensadores dentre os quais Aristóteles foi o primeiro a discorrer, quando ao discutir as manifestações da poesia lírica, épica e dramática, levantou alguns aspectos importantes, que marcaram e marcam até hoje o conceito de personagem e sua função na literatura.

De acordo com Brait (1985, p. 29), “um aspecto relevante desses estudos é o que diz respeito à semelhança existente entre personagem e pessoa, conceito centrado e discutido, por raras vezes compreendida, mimeses aristotélica. Durante muito tempo, o termo mimeses foi traduzido como sendo “imitação do real”, como referência direta à elaboração de uma semelhança ou imagem da natureza”.

Contudo, alguns críticos contemporâneos afirmam que uma leitura mais aprofundada e menos marcada dos conceitos de arte e mimeses contidos na Poética, revela que Aristóteles estava preocupado não só com aquilo que é “imitado” ou “refletido” num poema, mas também com a própria maneira de ser do poema e com os meios utilizados pelo poeta para a elaboração de sua obra. (BRAIT, 1985, p. 29).

Brait (1985, p. 29), discorre sobre o fato de Aristóteles ter apontado dois aspectos essenciais no que concerne a personagem, o primeiro trata a personagem como reflexo da pessoa humana e o segundo a personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto.

Sendo assim, não cabe à narrativa poética reproduzir o que já existe, mas compor suas possibilidades, estendendo seu conceito de personagem: ente composto pelo poeta a partir de uma seleção do que a realidade lhe oferece cuja natureza e unidade só podem ser conseguidas a partir dos recursos utilizados para a criação. (BRAIT, 1985, p. 30).

A partir das considerações de Aristóteles, Brait (1985, p.31), discorre sobre o conceito de verossimilhança interna de uma obra, conceito este que pode ser utilizado na leitura de obras produzidas em momentos distantes dos estudos pelo pensador grego, utilizando a Iracema de José de Alencar, a autora diz que:

O ponto de partida do romance é um argumento histórico: a fundação do Ceará. Nem por isso ele vai ou deve se comportar como um historiador. A personagem Iracema, elemento que nos interessa neste momento, vai sendo esculpida não por imitação a um índio real, com quem se pudesse tropeçar nas selvas brasileiras, mas com a seleção de informações fornecidas pelos cronistas e com um trabalho de criação de um romancista-poeta empenhado em resgatar, pela linguagem, uma criatura possível de um mundo selvagem ainda não dominado pela civilização.

A personagem Iracema, mãe de Moacir, cujo pai é o branco Martim, é selvagem penetrada pelo colonizador, morre e deixa um filho mestiço com sobrevivente e primeiro de uma raça parida e marcada pelo sofrimento, deve, portanto, ser lida como verossímil. Uma vez que, José de Alencar recorre para a construção dessa personagem, a um processo tradutor da lenda, do argumento histórico, que aponta não para o aportuguesamento do índio, para sua diluição através de uma ótica ocidentalizada, mas, ao contrário, para o que se poderia chamar de “tupinização” da literatura. (BRAIT, 1985, p. 34).

Em consonância com os ditos acima citados, Candido et al. (1968, p. 51-52), diz que, a personagem parece o que há de mais vivo no romance e que a leitura deste depende basicamente da aceitação da verdade da personagem por parte do leitor.

Para Cândido et al. (1968, p. 52), o problema da verossimilhança no romance depende da possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais legítima verdade existencial. Portanto, o romance se baseia, antes de qualquer coisa, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste.

Entretanto, Brait (1985, p. 34) diz que, a personagem continua sendo vista como ser semelhante ao homem, cenário que só passa a mudar nas primeiras décadas do século XX com a sistematização da crítica literária, em suas diversas tendências, e com a reabertura do diálogo acerca das especificidades da narrativa e de seus componentes.

Nas primeiras décadas do século XX, autores como Gyiirgy Lukács e E. M. Forster estabeleceram conceitos a respeito da personagem, entretanto, apenas por volta de 1916, os formalistas russos iniciam estudos que estabelecem uma nova concepção da personagem como ser de linguagem.

Mais tarde, por volta de 1955, Victor Erlich, publica o livro “Formalismo russo”, no qual constitui uma verdadeira ciência da literatura, contribuindo, portanto, para que a obra literária seja vista como a soma de todos os recursos nela empregados, como um sistema de signos organizados de modo a imprimir a conformação e a significação dessa obra.

Portanto, é através dos formalistas que a concepção de personagem se desprende das suas relações com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisionomia própria.

O formalismo russo é considerado divisor de águas dentro da teoria da literatura, na década de 50, após a publicação da ruptura da personagem com o ser humano, teóricos passam a explorar os caminhos abertos pelos formalistas russos na década de 20, dentre os autores podemos citar, Roman Jakobson, Lévi-Strauss, Tzvetan Todorov, Claude Bremond, Roland Barthes e Julien Greimas.

Os estudos desenvolvidos por estes autores, fornecem teorias diversificadas numa concepção semiológica da personagem, temos como exemplo o texto “Pour un statut sémiologique du personnage”, de Philippe Hamon, no qual o autor estuda a personagem sob a perspectiva semiológica, ou seja, como um signo dentro de um sistema de signos, como uma instância de linguagem.

O estudo apresentado por Hamon considera a personagem como um signo e aponta um ponto de vista que constrói este objeto, integrando-o no interior da mensagem, definida como um “composto” de signos linguísticos. Segundo o autor, tem a vantagem de não aceitar a personagem como dada por uma tradição crítica e por uma cultura centrada na noção de “pessoa humana” e, ao mesmo tempo, torna a análise homogênea a um projeto que aceita todas as consequências metodológicas nele implicadas.

Partindo desta perspectiva Hamon, apresenta a noção semiológica de personagem não como um domínio exclusivo da literatura, mas como pertencente a qualquer sistema semiótico, ainda discutindo os domínios diferentes e os diversos níveis de análise, colocando a questão do herói/anti-herói e da legibilidade de um texto como pontos que divergem de sociedade para sociedade e de época para época.

Brait (1985, p. 47) aponta que, uma abordagem atual da personagem de ficção não pode descartar as contribuições oferecidas pela Psicanálise, pela Sociologia, pela Semiótica e pela Teoria Literária moderna centrada na especificidade dos textos.

Em suma, a personagem deve ser analisada, sempre, considerando a longa tradição do estudo da personagem e buscando encontrar a sua especificidade na íntima relação existente entre essa e as demais instâncias do discurso literário.

5. CHICO BENTO E FABIANO, ATORES DE SUAS PRÓPRIAS HISTÓRIAS

Em “Vidas Secas”, Fabiano é um homem ignorante, vaqueiro que se submete aos maus tratos do chefe e, se pega constantemente pensando na brutalidade que o patrão lhe dispensa. Fabiano não teve oportunidade de frequentar a escola, o que lhe dificulta a comunicação com as pessoas e acentua sua ignorância. Entretanto, admira as pessoas que tem o dom das palavras e por vezes tenta imitá-las.

Fabiano se vê sem rumo na vida no período da seca, sem ter o que comer ou para onde ir, segue com sua esposa sinhá Vitória, seus dois filhos e a cachorra Baleia, em busca de terra que possa lhe oferecer um trabalho para que seja capaz de suprir as necessidades de sua família, no entanto, quando as coisas parecem estar melhorando o período de estiagem volta e os obriga a partir em retirada novamente.

Já em “O Quinze”, Chico Bento, é um homem igualmente vaqueiro, entretanto, mostra-se mais dolente em relação à família, a situação em que se encontra e a sua impotência no que se refere suprir as necessidades dos filhos, casado com Cordulina, pai de cinco filhos, que, adiou o máximo que pode a viagem para outras terras, baseado em sua fé de que a seca teria um fim.

De acordo com Candido et al. (1964, p.9), as personagens de ficção chamam tanta atenção por nos defrontarmos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em medidas transparentes, vivendo situações exemplares, estando integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-social e por tomarem determinadas atitudes em face desses valores.

Partindo deste pressuposto, é possível reconhecer tanto em Fabiano quanto em Chico Bento, uma gama de valores e aspectos emocionais, desde as primeiras linhas dos livros. Entretanto, é igualmente possível estabelecer semelhanças entre as duas personagens, embora, criadas por autores e intenções distintas.

Chico Bento, ao receber a notícia de que estava dispensado da fazenda onde trabalhava como vaqueiro, ficou pensativo, tinha duas possibilidades, partir em retirada ou ficar nas terras secas, mas sem serviço. Esperou vinte e cinco dias além do prazo dado pela dona da fazenda para soltar o gado restante, com esperança de que choveria até o dia de São José, não havendo mais esperanças, o homem partiu em busca de alguém que comprasse suas reses.

Chico pretendia vender um boiote, uma vaca solteira e um garrote, além de sua roupa de vaqueiro, por 40 mil-réis por cabeça, não obtendo o que esperava, propôs então uma troca.

- Se o compadre Vicente quisesse fazer uma troca... Me dava um animal de carga e uma volta em dinheiro... Porque um burro já será mais fácil de vender depois...

(O Quinze).

Em sua postura física, Chico Bento demonstrava grande descontentamento e humilhação durante a negociação das reses.

[…] o vulto curvado do Chico Bento parecia mais corcunda e mais triste como uma interrogação lastimosa.

(O Quinze).

Como não houvesse alternativa, Chico Bento, concordou com a troca dos animais, mas não parava de pensar no que fizera.

Pensava na troca. Umas reses tão famosas! Por um babau velho e cinquenta mil-réis de volta! O que é a gente estar na desgraça...

(O Quinze).

O vaqueiro sentia grande pesar por ter que retirar com a família e ao contar à mulher os planos para a viagem, ficou comovido com as lágrimas que esta derramava, tentando animá-la com a confiança que depositara em seu sonho.

Chico Bento, na confiança do seu sonho, procurou animá-la, contando-lhe os mil casos de retirantes enriquecidos no norte.

A voz lenta e cansada vibrava, erguia-se, parecia outra, abarcando projetos e ambições. E a imaginação esperançosa aplanava as estradas difíceis, esquecia saudades, fome e angústias, penetrava na sombra verde do Amazonas, vencia a natureza bruta, dominava as feras e as visagens, fazia dele rico e vencedor.

(O Quinze).

A fé no que ouvira falar, no seu sonho de uma vida digna movia Chico Bento de tal modo que, mesmo com sua esposa tendo milhares de indagações ele sempre tinha uma resposta pronta.

 Mas, Chico, eu tenho tanta pena da minha barraquinha! Onde é que a gente vai viver, por esse mundão de meu deus?

A voz dolente do vaqueiro novamente se ergueu em consolações e promessas:

 Em todo pé de pau há um galho mode a gente armar a tipoia... E com umas noites assim limpas até dá vontade de se dormir no tempo... Se chovesse, quer de noite, quer de dia, tinha carecido se ganhar o mundo atrás de um gancho?

(O Quinze).

É possível notar que mesmo sendo um vaqueiro, nordestino, com pouca ou quase nenhuma instrução, Chico Bento, demonstra em sua voz dolente, medo, receio, mas, sobretudo, preocupação com o bem estar psicológico de sua esposa e companheira.

Já em Vidas Secas, a obra já inicia com a viagem de Fabiano e sua família, cansados de caminhar e famintos, andavam pouco, há horas procuravam uma sombra, a folhagem dos juazeiros aparecia longe, através dos galhos pelados da catinga rala.

Arrastaram-se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, à espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.

Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.

 Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.

Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo.

[…]

- Anda, excomungado.

O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca parecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança o irritava. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.

(Vidas Secas).

Não é possível encontrar na narrativa, alguma docilidade ou dolência na voz e na atitude de Fabiano, muito pelo fato de que crescera sem carinho em um local que a bravura e a rispidez seriam sua única válvula de escape e/ou alternativa para uma colocação profissional.

Já Chico Bento, quando no decorrer da viagem, perde um de seus filhos para a morte, visto que, em decorrência da fome que o acometia, a criança comeu uma raiz crua, Chico Bento se vê desolado, embora o homem tenha se mantido forte, seguro, quando este se encosta à porta para assistir os últimos momentos de seu filho, fica claro ao leitor que, por trás daquele homem sisudo havia um ser frágil, repleto de amor pelos seus.

Chico Bento se encostara à vara da prensa, sem chapéu, a cabeça pendida, fitando dolorosamente a agonia do filho.

E a criança, com o cirro mais forte e mais rouco, ia se acabando devagar com a dureza e o tinido dum balão que vai estourar porque encheu demais.

(O Quinze).

As passagens em que Fabiano e Chico Bento, observam a fome tomando conta de seus filhos, retirando-lhes a força, fornece à comparativa entre as duas personagens, uma discussão relevante, visto que, embora as situações das crianças sejam diferentes e, as características rústicas de seus pais sejam semelhantes, estes agiram de maneira distinta. Chico Bento, não se incomoda em demonstrar sua preocupação, descontentamento, seus sentimentos com a situação, enquanto Fabiano, à priori, tem os piores pensamentos em relação à criança, demonstrando que à austeridade já estava impregnada em suas atitudes.

Embora, os contextos iniciais das narrativas de Chico Bento e Fabiano sejam distintos é possível perceber nos dois vaqueiros, certa ignorância, entretanto, Chico Bento, em todas as situações, à sua maneira, se mostra mais humano, por exemplo, ao preocupar-se em acalmar sua esposa e lhe dar esperanças de dias melhores.

Todavia, irritado com a atitude do filho, Fabiano busca dentro de si, resquícios de compaixão e acolhe a criança nos braços, surpreendendo o leitor que, já esperava uma atitude grotesca e, tornando-se agradável aos olhos da esposa.

Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os arredores. Sinhá vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam pertos. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados ao estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato. Entregou à espingarda a sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos. Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.

(Vidas Secas).

O trecho em questão personifica a personagem, a torna humana, evidenciando sentimentos, desejos, preceitos morais, descontentamento, enfim, uma gama de sensações que leva o leitor a refletir sobre a existência de seres com estas características.

Em contrapartida, “Chico Bento” (O Quinze), ainda que fosse um nordestino, e se assemelhasse a muitas características de Fabiano (Vidas Secas), como o jeito bruto, grosseiro, a ignorância encarnada, tinha em suas atitudes um amor profundo por seus filhos e, consequentemente, um pesar muito grande por não poder proporcionar a eles o mínimo sustento para sobrevivência.

Ainda nos primeiros dias de viagem, a família de Chico Bento, em busca de um juazeiro para que pudessem descansar, encontram homens famintos, e o vaqueiro em um gesto singelo, mais uma vez mostra-se humano, altruísta, ao dividir o pouco alimento que ainda tinha com os homens desconhecidos

Cordulina assustou-se:

 Chico, que é que se come amanhã?

A generosidade matuta que vem na massa do sangue, e florescia no altruísmo singelo do vaqueiro, não se perturbou:

 Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não haverá de deixar esses desgraçados roerem osso podre...

(O Quinze).

Vê-se, portanto que, embora com todas as características de um homem ignorante, xucro, Chico Bento, demonstra solidariedade inacreditável, visto a situação que vivia, levando o leitor mais uma vez a refletir sobre suas ações e seus preceitos morais, além de sua fé em Deus.

De fato, toda a mudança psicológica que um ser humano sofre, decorre de atitudes que desenvolvemos em relação a crenças, valores, opiniões, mas que as atitudes são modificadas a partir de novas situações, comportamentos ou novos afetos.

Neste caso, especificamente, estando Chico Bento, em uma situação humanamente desoladora, sem ter a quem pedir ajuda, sem ter pra onde fugir, passa por sua cabeça vários pensamentos, que se confundem com sentimentos e que, ao mesmo tempo em que o inclina para algo mais sentimental, passional, o leva a realidade bruta, racional.

Não diferente de Chico Bento, Fabiano também tem conflitos internos, encontra maiores dificuldades em externar seus sentimentos, se recriminando até mesmo por bons pensamentos, em relação a si próprio.

Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao binga, pôs-se a fumar regalado.

- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.

Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.

Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:

- Você é um bicho, Fabiano.

Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.

(Vidas Secas).

É notório no trecho acima que, Fabiano tinha receio de igualar-se aos demais homens, julgava-se inferior, assemelhava-se a um animal, acreditando ser este seu real lugar. É possível encontrar no “mundo real”, na realidade nordestina, ainda nos dias atuais, tantos Fabianos, que, sentem-se envergonhados ou desmerecedores de um título peculiar à sua raça “homem”, apesar de um ser racional, Fabiano, trava consigo mesmo uma luta interna para que esse reconhecimento não se dê.

Nos dois livros ainda é possível encontrar outra situação que aproximam as duas personagens aqui analisadas, em “Vidas Secas”, quando Fabiano é preso e sente uma humilhação colossal, mas se põe numa posição de inferioridade em relação a seu agressor e, em “O Quinze”, quando Chico Bento, após vários dias de viagem, sem ter o que comer, encontra uma cabra e resolve matá-la para alimentar sua família e se depara com um homem austero que lhe humilha sem o mínimo de remorso.

[...] O animal soltou novamente o seu clamor aflito. Cauteloso, o vaqueiro avançou um passo. E de súbito em três pancadas secas, rápidas, o seu cacete de jucá zuniu; a cabra entonteceu amunhecou, e caiu em cheio por terra.

Chico Bento [...]. Abriu no animal um corte que foi de debaixo da boca até separar ao meio o úbere branco de tetas secas, escorridas. Rapidamente iniciou a esfolação. [...] Mas Chico Bento cortava, cortava sempre, com um movimento febril de mãos, enquanto o Pedro, comovido e ansioso, ia segurando o couro descarnado. Afinal, toda a pele destacada, estirou-se no chão.

E o vaqueiro, batendo com o cacete no cabo da faca, abriu ao meio a criação morta.

Mas Pedro, que fitava a estrada, o interrompeu:

- Olha pai!

Um homem de mescla azul vinha para eles em grandes passadas. Agitava os braços em fúria, aos berros:

- Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado!

Chico Bento, tonto, desnorteado, deixou a faca cair e, ainda de cócoras, tartamudeava explicações confusas.

O homem avançou, arrebatou-lhe a cabra e procurou enrolá-la no couro.

Dentro da sua perturbação, Chico Bento compreendeu apenas que lhe tomavam aquela carne em que seus olhos famintos já se regalavam, da qual suas mãos febris já tinham sentido o calor confortante.

E lhe veio agudamente à lembrança Cordulina exânime na pedra da estrada... o Duquinha tão morto que já nem chorava...

Caindo quase de joelhos, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas que lhe corriam pela face áspera, suplicou, de mãos juntas:

- Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um tequinho ao menos,

que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! já caíram com a fome!...

- Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha! Cabra sem vergonha!

A energia abatida do vaqueiro não se estimulou nem mesmo diante daquela palavra. Antes se abateu mais, e ele ficou na mesma atitude de súplica.

E o homem disse afinal, num gesto brusco, arrancando as tripas da criação e atirando-as

para o vaqueiro:

- Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!...

A faca brilhava no chão, ainda ensangüentada, e atraiu os olhos de Chico Bento. Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e ir disputar a presa, mas foi ímpeto confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe o ânimo.

(O Quinze).

A humilhação pela qual Chico Bento passou nesta situação, não fora suficiente para que ele atacasse o homem e tomasse para si a carne do animal que, naquele momento serviria para amenizar a fome de sua esposa e filhos, sendo que, além da força que lhe faltava devido à escassez de alimento, seus preceitos morais, sua índole não lhe deixaram agir, visto que, mesmo sabendo que o animal saciaria a fome de sua família, Chico Bento tinha claro que tomar um animal que pertencia a outro não era certo.

Em Vidas Secas, Fabiano também se sentiu humilhado ao ser surrado e jogado na cadeia sem ao menos entender porque.

[...] Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu.

- Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.

Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se no canto, rosnando:

- Hum! Hum!

Porque tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente um fuzuê sem sentido. Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia resistir.

(Vidas Secas).

Após a leitura dos dois trechos é notório que as personagens de Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos têm mais em comum do que o cenário no qual transitam no decorrer das narrativas, mas as semelhanças vão além do vocabulário, da profissão, da fuga, da fé, são muito fortes nos preceitos morais, e deixam para o leitor uma questão para reflexão: Até que ponto o ser humano se assemelha às personagens Chico Bento e Fabiano, no que concerne a força, a moral e a ética?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar a comparação de obras clássicas, cujo tempo não deixou envelhecer, visto o cenário existente, em pleno século XXI, no sertão do nordeste brasileiro, não é tarefa fácil, entretanto, procuramos ao analisar “O Quinze“ de Rachel de Queiroz e “Vidas Secas“ de Graciliano Ramos, encontrar a sensibilidade das personagens Chico Bento e Fabiano, devido a maneira austera com que lhe davam com a vida e seus trágicos acontecimentos.

Para tanto, buscamos em Tania Franco Carvalhal, Antonio Cândido, base para que pudéssemos comparar a personalidade das personagens, assim como, compreender a maneira como enxergam a vida.

Durante todo o processo de pesquisa para conclusão das linhas acima descritas, entramos em conflito com nossos próprios conceitos a cerca das personagens, uma vez que, os altos e baixos de cada uma delas estão presentes em toda a extensão do livro, no entanto, é possível estabelecer uma diferença entre elas, no que concerne demonstrar sentimentos por seus entes queridos, mas, ao mesmo tempo é notório o sofrimento dos dois homens ao ver sua prole suplicando água e alimento.

No contato com as duas obras o leitor, deixa de lado qualquer preconcepção romantesca e, se envolve profundamente no drama social vivido pelas personagens. Em relação a este fato, Cândido (1964) externa que: “a grande obra-de-arte literária (ficcional) é o lugar em que nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparente, vivendo situações exemplares de um modo exemplar (exemplar também no sentido negativo). Como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-social e tomam determinadas atitudes em face desses valores.”

Embora provenientes de famílias e contextos diferentes, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, dão vida a duas personagens que em muito se assemelham, seja pelo contexto em que vivem, pela vida sofrida, seja por seu desejo de um futuro melhor.

Não é possível precisar o que pensavam os autores no momento em que escreviam suas histórias, de um lado Rachel, com seu romance “O quinze” que, embora não tenha como personagem principal “Chico Bento”, por nós aqui analisado, retrata de tal forma a sofreguidão por ele vivido, proporcionando ao leitor base para uma reflexão profunda e uma curiosidade a cerca do desfecho de tal personagem que torna impossível o deixar como mero coadjuvante. Por outro lado Graciliano, com uma história aguçada, tratando meramente de um problema de cunho social, entretanto, dando vida a “Fabiano”, um homem xucro, porém com muitos sentimentos implícitos.

A partir das obras O Quinze e Vidas Secas, pode-se conhecer personagens repletos de realidade, bem como a pureza de personagens tão sofridos, confundindo-os, inevitavelmente, com ser humano, que tendem a modificar suas atitudes, a partir de novas informações, novos afetos ou novos comportamentos ou situações.

Por fim, é possível estabelecer várias semelhanças entre Chico Bento e Fabiano, no que se trata do vocabulário, do cenário no qual transitam durante a narrativa, na moral e nos costumes, no sentimento de inferioridade. Entretanto, é inevitável comparar as personagens fictícias aos seres existentes na realidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. Rio de Janeiro: Editora Record, 2010.

QUEIROZ, Raquel de. O Quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.

BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática, 1985.

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Marcos Ribeiro de Macedo
Enviado por Marcos Ribeiro de Macedo em 25/11/2017
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