A HIDRA DE ZULEIKA DOS REIS
Os estudos de Paulo Sérgio de Vasconcellos (1998) informam que o segundo trabalho de Hércules teria sido a missão de destruir a Hidra de Lerna, uma espécie de serpente gigantesca e que tinha muitas cabeças com as quais destruía terras, plantações e até pessoas. Com um bafo amedrontador, o animal ameaçava todos, não adiantando decepar-lhe uma ou mais daquelas cabeças, pois elas renasciam com a mesma força e voracidade, além do que a cabeça do meio resistia sempre. Hércules e seu sobrinho Iolau enfrentaram a hidra, cortavam-lhe alguma ou algumas das cabeças. Para auxiliar o tio, Iolau queimava os ferimentos, o que impedia as cabeças de renascerem. Foi uma luta e tanto. Hércules foi o vencedor.
Entretanto, mais para cá, nestes tempos tecnológicos, Zuleika dos Reis (2016) criou a sua hidra inofensiva para heroísmo nenhum. A professora e escritora paulistana definiu a sua obra como um “embrião de romance, coletânea de textos ‘degenerados’... isto é, nada sendo, desde o título...”. Então fiquei curiosa, pois, sendo conhecedora de outras produções literárias de Zuleika, eu já sabia que a obra da hidra inofensiva alguma coisa significaria, ou muita coisa.
Que pequena me senti diante da grandiosidade dessa hidra, realmente inofensiva, mas fatal. Quanto mais eu lia, mais me sentia um Hércules humano, falho e incapaz de desvendar o mistério daquele animal literário. Criando coragem, sem contar com a ajuda de Iolau, tomei uma lança, na verdade um lápis, para tentar cortar as cabeças da serpente mansa. Descobri que todas elas eram imortais. Tomei mais coragem e visitei a mulher aranha. E me deparo com “uma vaca, pastando pacífica, compreendendo tudo com enormes olhos sem história”. Fiquei impactada com aquele olhar e segui o caminho até que encontro a narradora estacionada “junto ao meio-fio, com a precisão” que jamais teve “e a lucidez dos que vão morrer”, lutando sem conseguir escapar dos próprios escombros, misteriosa, galáctica e quântica e que, em duas palavras, criou um filme em minha imaginação: “Reinventar geografias”. Peguei as duas palavras e me julguei capaz de reinventar geografias. Qual nada, isto é coisa para Zuleika dos Reis!
Pude ouvir a voz de São Paulo e perceber tanta luminosidade nas suas alamedas da “maior entrega” quando se dorme, “todos os cansaços saindo do corpo”. E senti a mesma paz. Que poder tem essa hidra inofensiva sobre as palavras, as formas de dizer. Amanhece o dia em São Paulo e a escritora enquadra uma mulher que “vai passando silenciosa pelo homem que toca o violino junto aos mendigos da Estação da República” e o poeta que “atravessa a Rua Direita com o chapéu em uma das mãos e na outra um gatinho que acabou de recolher da calçada”. Cenas de uma humanidade que chocam nossas cabeças, mas não as decepam, então, a hidra é inofensiva sim...
Como foi tocante estar presente e ver aquelas cenas de casamento envolvidas em “dois silêncios corretamente vestidos”.
De silêncios em silêncios, a criadora da hidra inofensiva nos desperta para um mundo da literatura que faz da palavra a seriedade silenciosa que ela exige, da dedicação que é vida, luta, morte e renascimento. Impossível esquadrinhar neste texto atrevido a complexidade e todos os significados entranhados na obra de Zuleika dos Reis, merecedora de estudos aprofundados por parte dos que analisam patrimônios literários de um país que sofre o corte de suas cabeças pensantes.