O brilho fugidio de um momento: Mnemografias, de Lívia Natália

Lívia Natália é poeta de Salvador, na Bahia, desde muito tempo, conforme ela mesma afirma no texto de orelha de seu segundo livro, Correntezas e outros estudos marinhos (2015): “... quando criança não tinha grandes narrativas a contar na volta das férias, então inventava. Nasce aí a ficcionista. A poeta vem desde sempre, descosendo o mundo”. Enquanto poeta, Natália exerce o fino movimento da vida em pausas, registrando pequenas sutilezas de seu caminho: cheio de faces, prismas, idades, cores. Em versos que se mostram afetuosos e também ríspidos, Natália transita sempre entre multipolos, ora transbordando grandiosidade, traçando pontos que nos levam à imagem de um olhar esperançoso, ora simplesmente com o cansaço humano de saber de si a pequenez diante da ferocidade da vida, mas, ainda assim, dotado de força para resistir.

A poeta é o indivíduo que se encontra em uma paisagem, ou entre paisagens, e é tomada de assalto por isto, de modo que seus sentidos sejam completamente emprestados a essa “entidade” por um momento – o momento lírico. A este estado de entrega, Staiger (1977) chama de “disposição anímica”.

Em sua múltipla poética, Lívia Natália cinge questões transcendentes à pura experiência humana. Cruzando as margens dessas possibilidades, desdobrando abas, há a marca abrasadora do desejo, da memória; o crescimento de uma anomia no que diz de si, eu lírico, dentro de um deslumbramento com as percepções capturadas pela experiência – que nem sempre se alojam no plano cotidiano, visível, táctil; às vezes uma vertigem, um déjà-vu, um “delírio”.

Uma temática que perpassa toda a lírica de Lívia Natália é a memória: o resgate de lembranças. É dentro desse labirinto que Natália tece sua lírica, entre pontos e contrapontos, oscilando, refletindo – em seu duplo significado – sobre a fugacidade do instante sob a luz que incide das estrelas. Neste plano vasto, esse trabalho pretende se endereçar a uma fração particular da “correnteza” torrencial de Lívia Natália: como a recordação trabalha entrelaçando fatos recorrentes a acontecimentos da vida e, quem sabe, anteriores a esta própria. Talvez a poesia desmitifique os mistérios insondáveis da existência, porém sem suspirar sequer intenção em pronunciar palavras. E, nessa perspectiva silenciosa, é que iremos buscar o que compõe esse eu lírico, relacionando ideias, entendimentos, teorias e até mesmo – por que não? – as próprias recordações despertadas pelas frestas abertas entre os versos do poema Mnemografias, de Lívia Natália.

Já é para nós, a este ponto, convidativo lembrar que mnemografia quer dizer, em uma interpretação mais direta, escrita de memórias. O título dá boa margem para o restante do poema, que se traduz em nostalgia contemplativa, a falta de algo que não se pode definir precisamente, algo abstrato, mas significante da experiência do eu lírico que se rende à consagração de instantes fugazes. O gatilho para este acontecimento, a fugacidade lírica, não se apropria de conteúdos sólidos, concretudes, encontros limítrofes, a menos que seja furtivamente. A captura do instante é equivalente ao próprio instante; sem a pretensão de pensá-lo eterno, cristalizado. A contemplação enxerga, mas não vê. Eis o truncamento do desapercebido: a poeta empresta os olhos por um instante ao ânimo da ocasião, quando os tem de volta, toda a visão já foi esvanecida. Esse movimento não é considerado em relação ao tempo e a paisagem não caberia totalmente nos delineamentos de um espaço definitivo, mapeado – pois não é, em si, objetiva, mas paisagem para o eu lírico. De acordo com Staiger (1977, p.21):

[...] para o poeta lírico não existe uma substância, mas apenas acidentes, nada que perdure, apenas coisas passageiras. Para ele, uma mulher não tem “corpo”, nada resistente, nada de contornos. Tem talvez um brilho nos olhos e seios que o confundem, mas não tem um busto no sentido de uma forma plástica e nenhuma fisionomia marcante. Uma paisagem tem cores, luzes, aromas, mas nem chão, nem terra como base. Quando falamos na poesia lírica, por essa razão, em imagens, não podemos lembrar absolutamente de pinturas, mas no máximo de visões que surgem e se desfazem novamente, despreocupadas com as relações de espaço e tempo.

A primeira estrofe de Mnemografias é composta dos seguintes versos: “As estrelas são apenas memória de luz. / Seu brilho melancólico e alto/ é o arremedo triste do que se foi. / Um eco para sempre repetido/ – e perdido”. O texto faz referência, inicialmente, à consideração de que as estrelas que conseguimos enxergar no céu à noite são apenas espectros e não mais as estrelas em si. O brilho que nos alcança pode ser, muitas vezes, apenas vestígio do que realmente existiu anos-luz de distância da Terra. Todavia, não é o significado concreto de “estrela” que esse eu lírico está objetivamente abordando. Trata-se de uma imagem poética cujo sentido não se delimita apenas pela referência, mas a extrapola. Para Octavio Paz (1996): “O sentido da imagem [...] é a própria imagem: não se pode dizer com outras palavras. A imagem explica-se a si mesma. Nada, exceto ela, pode dizer o que quer dizer”.

Na respectiva estrofe, as “estrelas” de Mnemografias buscam dizer a respeito do brilho, ao mesmo tempo presença e ausência. O “brilho melancólico e alto”, “memória de luz”. Essa memória de luz diz muito mais da constatação desse eu lírico sobre o que “se foi”, o que passou, o que aconteceu, mas que insiste em se projetar na condição anímica do eu lírico se fazendo presente, repetindo-se em ondas vibracionais universo a dentro, como o brilho das estrelas, que nunca se dissipa, atravessa matérias várias e se perde na infinitude do tempo. Memória de luz, diz de um fato, de uma situação, de uma pessoa – quem sabe? A esse inefável evento fora do âmbito da lírica, chamaremos de “recordação”. Afinal, “O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação”, nos assegura Staiger (1977).

Sobre a estrofe seguinte, podemos fazer o registro de um diálogo com o poema de Drummond, intitulado “Memória”. Em Mnemografias: “As estrelas amam o perdido, / não se confundem”; no poema drummondiano: “Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração”. Enquanto neste, o eu lírico exalta o saudosismo como provocador de confusões, de sentimentos e pensamentos distintos se encontrando e buscando sentidos, naquele, o eu lírico não teme garantir que o firmamento das estrelas se dá no que já está perdido, estabelecendo a relação entre o brilho e a ausência – elementos que ganham força ao longo do poema.

Por já termos compreendido o sentido de “tesouro de recordação” que se insere neste poema, reconhecendo-o como tal, é possível também traçar uma linha que nos guia para o entendimento maior, em perspectiva angular, um foco ampliado: a intenção do “tesouro de recordação” como um desejo inexpressível de consagração daquele instante máximo em que lhe ocorre a junção dos tempos – passado, presente e futuro em um único e “flutuante” momento. A consagração aponta para as extremidades do “querer dizer”; aponta para o dizer que, único, ascende para sua suscetível repetição quando for, por assim dizer, posteriormente acionado. E, assim, toda essa segunda vez será primeira, iniciando-se novamente num ciclo paradoxal de fim-começo que Lourenço (2003) pôde ilustrar desembaraçadamente em Tempo e Poesia: “A segunda vez, o re-conhecimento que a saudade manifesta é a primeira vez, terra de nascimento e não túmulo”. Nessa mesma perspectiva, Octavio Paz (1996, p.53) afirma que:

O poema traça uma linha divisória que separa o instante privilegiado da corrente temporal: nesse aqui e nesse agora principia algo: um amor, um ato heroico, uma visão da divindade, um assombro momentâneo diante daquela árvore ou diante da fronte de Diana, lisa como uma muralha polida. Esse instante é ungido com uma luz especial: foi consagrado pela poesia, no melhor sentido da palavra consagração. Ao inverso do que ocorre com os axiomas dos matemáticos, as verdades dos físicos ou as ideias dos filósofos, o poema não abstrai a experiência: esse tempo está vivo, é um instante pleno de toda a sua particularidade irredutível e é perpetuamente suscetível de repetir-se em outro instante, de reengendrar-se e iluminar com sua luz novos instantes, novas experiências.

E em Mnemografias, seu eu lírico continua: “Se simulam no céu negro/ imitando a alegria possível/ no teatro semicerrado de nuvens”. O jogo entre opostos – fulgor e ausência de vida, tristeza e alegria – permeia o estado anímico desse eu lírico. As estrelas se simulam porque brilham mesmo quando já deixaram de existir, mesmo quando “perderam” sua luz, transparecendo falsa felicidade em esplendor. O céu faz-se teatro: as estrelas mentem sua luz, bem como o céu mente sua cor e as nuvens mentem sua forma. O plano da recordação é a imitação do céu.

“Algo de mim grita/ nestes astros decaídos” e “Somos apenas parco resquício de alegria e dor, / fresta da festa finda, / algo que se arrasta/ na poeira das ausências” são concomitantemente terceira e quarta estrofes. Nestas, o estado anímico se aproxima muito mais do estado meditativo de que, enfim, somos todos formados pelas partículas que compõem ou compuseram estrelas. O sentimento inevitável de pertença ao ciclo natural de todas as espécies – nascimento, crescimento, morte e dispersão em formas materiais diversas em ambientes vários. No fim das contas, as ausências nos compõem também. E mesmo a dor que pode emergir com a partida, com a perda, nos pertence – não há confusão, a dor e a saudade também precisam ocupar seus espaços como emoções que existem e precisam ser expressadas – muito além disto simplesmente: coexistem.

“Sim, / as estrelas são apenas memória de luz. / Mas como brilham! ” são os versos que finalizam o poema. O primeiro verso de Mnemografias é repetido, reafirmando tudo o que já foi dito anteriormente, como um parêntese que se fecha. O último verso contraria, melhor, complementa tudo que foi afirmado, inclusive o estado anímico de melancolia, substituindo-o, melhor, agregando-se a ele, fortemente, por uma observação esperançosa de que, sim, há muita ausência compondo todos os corpos físicos, mas como há também presença pulsante! mas como há vida! mas como há beleza nesses mesmos fugidios e breves instantes! e como permanecem intensamente, mesmo nas ruínas.

Os termos lógicos que fazem base à construção poética, por vezes caem em debate e viram interrogação perdida entre as estrofes defrontadas. Não há em que procurar alicerces. Não há sequer o toque. A pluma paira sem exigir que o ar exista, a lírica dispensa a fundamentação, já o disse Staiger (1977): “A poesia lírica carece tão pouco de conexões lógicas, quanto o todo de fundamentação” – o poeta é um condutor inconsciente de matéria invisível, intocável, indizível fora do jogo poético. Não se explica por que se escreve, como não se explica por que se entende o que não possui razão segmentária, o que não pede autorização para flutuar entre facas e faíscas, pedras, lenha e fogão; entre a ausência e a presença que cintilam, como uma mesma e única experiência, no brilho-memória das estrelas.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Memória. In: ACHCAR, Francisco. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Publifolha, 2000. p.76

LOURENÇO, Eduardo. Tempo e poesia. In: ______. Tempo e poesia. Lisboa: Gradiva, 2003. p.33-36

NATÁLIA, Lívia. Correntezas e outros estudos marinhos. Salvador: Ogum's Toques Negros, 2015.

NATÁLIA, Lívia. Mnemografias. In: ______. Água Negra e Outras Águas. Salvador: EPP, 2016. p.29

PAZ, Octavio. A Imagem. In: ______. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p.37-59

__________. A Consagração do Instante. In: ______. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996. p.51-62

STAIGER, Emil. Estilo Lírico: A Recordação. In: ______. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977. p. 6-38

Taíse Dourado
Enviado por Taíse Dourado em 12/07/2017
Reeditado em 18/07/2017
Código do texto: T6052330
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