A LUXÚRIA CHEGA AO LEITO CONJUGAL: UMA ANÁLISE DO ROMANCE SENHORA, DE JOSÉ DE ALENCAR.
A LUXÚRIA CHEGA AO LEITO CONJUGAL: UMA ANÁLISE DO ROMANCE SENHORA, DE JOSÉ DE ALENCAR.
Carolina Antunes da Silva
RESUMO
O século XIX representou uma explosão em vários sentidos. Se por um lado a igreja ainda dominava o cenário, impondo seus dogmas milenares, de outro a arte e a literatura buscavam subterfúgios para apresentar as pessoas um lado menos pecador da vida e, porque não, da sexualidade. Através da análise do romance Senhora, de José de Alencar, busca-se revelar as nuances do que estava por detrás das cortinas que revestiam o casamento por conveniência, o erotismo e a luxúria feminina, sempre reprimida. O embasamento teórico fica sob a pena de Mary del Priore e Focault com contribuições significativas para o trabalho que, de modo algum, se mostra conclusivo.
Palavras-chave: Senhora. Romance. Erotismo. Sexualidade
1 INTRODUÇÃO
Publicado em 1875, já representando uma ruptura dos padrões românticos, considerando que carrega contornos realistas na construção de enredo e personagens, Senhora é um dos mais populares romances folhetinescos do dramaturgo e escritor José Martiniano de Alencar. Em sua trama, vemos descrito o idílio amoroso de Aurélia, moça pobre e formosa que se vê obrigada a buscar um casamento (ainda tido como taba se salvação e caminho mais curto para ascensão social) para não ser relegada a desgraça da orfandade solitária, sem apoio de um irmão ou parente próximo que lhe pudesse socorrer e Fernando, rapaz dado a boemias e caçador de oportunidades. Dois perfis de caráter completamente diferentes que se cruzam, temporariamente, em um namoro romântico que perdura até que Fernando firma compromisso de casamento com Adelaide Amaral, levado pela certeza de receber um dote de 30 contos de reis. Aurélia, arrasada pela traição, guarda dentro de si a chama da vingança que acaba por poder levar a cabo quando, inesperadamente, recebe uma milionária herança. Agora rica, dona de si e impelida pelo desejo de subjugar e maltratar o homem que espezinhou seu amor, ela o condena a desgraça de amarrar-se a um casamento que, embora lucrativo, lhe conduz ao eterno purgatório de não possuir o amor dessa mulher por quem nutre sinceros sentimentos, embora ela não os creia existentes.
Habilmente, Alencar levanta em sua trama questões que vão desde a crítica velada a um nascente “feminismo e empoderamento feminino” a revelação do absurdo tratamento que se dava ao matrimônio que, até fins do século XIX e começo do XX, era concebido como negócio entre famílias e troca de sobrenomes e brasões. Criticado em sua época por criar perfis femininos fortes e carregados de significado, expondo as controversas de uma sociedade conservadora e hipócrita, Alencar tornou-se atemporal ao demonstrar como a frase: “por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher” tem lá seu fundo de verdade, considerando que fora graças a quase crueldade de Aurélia, que expunha seu marido ao desgosto do casamento por conveniência e sem amor, que Fernando dignificou-se, tornando-se trabalhador e esposo dedicado, embora por obrigação de “escravo”. A realeza dessa mulher descrita, ao mesmo tempo, como santa, deusa e detentora de beleza satânica foi que conduziu o jovem rapaz, fruto podre de uma quase Babilônia, ao perfil ideal do que seria um homem romântico. Fernando iniciou a trama como um “traste indispensável as mulheres honestas” e a findou como herdeiro universal da riqueza e da paixão dessa mulher sublime.
2 PUDICA, SANTA E TENTADORA
Uma rápida análise das obras românticas e veremos como os escritores tinham a necessidade de reforçar os valores da época que versavam sobre a necessidade de a mulher manter-se pudica e imaculada, envolta de uma santidade quase ou igual a da Virgem Maria. Se assim não fosse, eram tidas como tentadoras tal como Eva ou, pior, como a sedutora serpente. Aliás, um dos ideais românticos era, justamente, o de demonstrar a beleza que se escondia por detrás da fragilidade pálida e quase doente das amadas, que nem de longe seriam luxurientas ou lascivas. A esse respeito, Mary del Priore comenta:
O homem tenta fazer da mulher uma criatura tão diferente dele quanto possível. Ele, o sexo forte, ela, o fraco; ele, o sexo nobre; ela, o belo. O culto pela mulher frágil, que se reflete nessa etiqueta e na literatura e também no erotismo de músicas açucaradas, de pinturas românticas; esse culto pela mulher é, segundo ele, um culto narcisista de homem patriarcal, de sexo dominante que se serve de oprimido- dos pés, das mãos, das tranças, do pescoço, das ancas, das coxas- como de alguma coisa quente e doce que lhe amacie, excite e aumente a voluptuosidade e o gozo. Nele, o homem aprecia a fragilidade feminina para sentir-se mais forte, mais dominador. Seios interessavam? Ainda não. Eram chamados pelos médicos de “aparelhos de lactação.” ( DEL PRIORE, 2014, p.72)
É nesse contexto que Alencar torna-se pioneiro ao retratar Aurélia não como uma mulher frágil, mas como uma “rainha dos salões” cuja soberba calcava os enamorados que ousavam ultrapassar a tênue linha que os separava. Ela lhes atribuía preços tais como fossem trajes em exposição, objetificando-os, dando-lhes o papel que, naquela época, pertencia as “frágeis” mulheres. Aurélia era o “homem da casa”, a dona de sua independência e controladora de suas finanças. Seu comportamento causava espanto até mesmo nos que a conheciam:
Nas folgas que o apetite deixava à reflexão, D. Firmina admirava-se do desembaraço que mostrava a noiva da véspera, da qual melhor diria um casto enleio. Mas já habituada à inversão que têm sofrido nossos costumes com a invasão das modas estrangerias, assentou a viúva que o último chique de Paris devia ser esse de trocarem os noivos de papel, ficando ao fraque o recato feminino, enquanto a saia alardeava o desplante do leão. ( ALENCAR, 1875, p. 88)
Paris era, àquela época, o centro da civilização. Era de lá que provinham as modas, os costumes. As moças faziam questão de se vestir tal qual as parisienses e os rapazes cantavam em seus versos e viviam a vida segundo a boemia de Paris. Aurélia era, no entanto, um avesso que nada tinha a ver com as modas de Paris, mas, sim, com seu desejo de demonstrar ao seu marido/escravo qual deveria ser, dentro do matrimônio e, portanto, da micro sociedade representada pela casa onde viviam, seu papel. Fernando não sentou a cabeceira, onde deveria estar o dono da casa e, claro, da mulher. Ele sentou-se ao lado, assumindo o “recato da saia”.
3 VIRGEM X BACANTE
Se Aurélia demonstra dominar Fernando no que tange aos papéis sociais, José de Alencar faz questão de demonstrar que também na luxuria e erotismo essa mulher de “beleza satânica” tem o poder de jugular o homem, conduzindo-o por caminhos deveras perigosos. Fernando se encontra preso a um jogo de sedução no qual sua amada e, portanto, objeto de desejo, lhe atiça os sentimentos por meio de truques. A moça que, sendo casada, deveria mostrar-se recatada e cega as tentações do sexo já que a ninguém cabia saber sobre os segredos das quatro paredes, a não ser, no máximo, os padres de confessionário, trazia consigo uma carga erotizante e tentadora que, longe de repugnar, atraia. Era “ a virgem bacante” a “salamandra” que, usando o fetiche masculino pela fragilidade, mostrou-se adoentada para atrair seu marido e fazê-lo deseja-la. Mas, ao mesmo tempo que mostrava-se hábil nos subterfúgios do prazer, carregava consigo uma moral inabalável. Podia galantear, mas jamais permitiria que línguas maldosas zombassem de sua honra de mulher casada e bem casada. Ainda assim, tinha quem o fizesse: “-Requebros com o marido. Queria que ele a carregasse no meio da sala e à vista de todos. Gosta de mostrar que o Seixas a adora e derrete-se por ela. Pudera não! Uma boneca de mil contos!...” Nessa fala da personagem Lísia vê-se que, muito embora o casamento resguarda-se o casal, justificando o que ela chamou de “requebros”, não os livrava das falações e maldades fruto da hipocrisia da sociedade carioca da época. Ainda naquela época o sexo era compreendido como simples caminho para a procriação e não deveria ter qualquer ligação com satisfação de prazeres:
O que não é regulado para a geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe, como não deve existir e à menor manifestação fá-lo-ão desaparecer – sejam atos ou palavras. (FOCAULT, 1976, p.24)
A religião, embora não figurante no romance, aparece como reguladora dos prazeres. O sexo deveria ser, tão somente, com o objetivo de gerar herdeiros, jamais relacionado ao gozo, principalmente feminino. Para que, afinal, iria a mulher querer algo além de ser mãe e esposa? Ora, era somente para esse fim que, acreditava-se, justificava-se sua existência no mundo. Aurélia, portanto, representava uma espécie de anátema social que buscava sim o prazer e deleitava-se em provocar o homem, mas sem perder o recato:
Mas é justamente aí que está o perigo. Esse enlevo inocente da dança, entrega a mulher palpitante, inebriada, às tentações do cavalheiro, delicado embora, mas homem, que ela sem querer está provocando com o casto requebro de seu talhe e transpassando com as tépidas emanações de seu corpo. O que é a valsa, mostrava-o aquele formoso par que girava na sala; e ao qual entretanto defendia os olhos maliciosos a casta e santa auréola da graça conjugal, com que Deus os abençoara” (ALENCAR, 1875, p.137)
É na valsa da qual, em princípio, fugira, que Aurélia deixa transparecer todo esplendor da sua beleza. Fernando não resiste e acaba por beijá-la, o que a leva a desmaiar, rendida ao prazer do contato dos lábios que, embora casto, representa meio caminho para o abismo. O corpo a corpo da valsa é uma metáfora sublime para o ato sexual, em que o turbilhão de emoções culmina no que os franceses, graciosamente, batizaram de “petit mort”. A pequena morte do orgasmo é representada pelo desmaio e a inclinação da moça não para o peito, como se esperava, mas “à espádua do cavalheiro”, que sentira somente na face “um sopro gelado” da alma que dali fugira por um instante.
4 O LENÇO
Lenço, véu, transfiguração. Tudo escondia-se por detrás de convenções, conceitos moralizantes, dogmas e ensinamentos que serviam, apenas, para aterrorizar e “castrar” o que a biologia concebe como natural. Em dos diálogos mais significativos do romance, Alencar metaforiza o lenço, transformando-o em uma representação do sexo como desejo. A necessidade de, tão somente, alimentar o corpo e negar a alma:
- O lenço?
-O lenço?...repetiu a moça maquinalmente.
E apanhando seu lenço de rendas que jazia sobre o sofá, olho-o como se buscasse nele explicação daquela singular pergunta do marido.
Súbito estremeceu com abalo tão forte, que a levantou em pé, soberba de ira e indignação. (ALENCAR, 1875, p.141)
A moça viu-se ferida em sua honra ao ouvir a proposta do marido, que lhe oferecia a oportunidade de apaziguar a sua paixão por meio do sexo destituído de “virtude”, como ela mesma fez questão de deixar claro. O mancebo arrependera-se, mas já era tarde demais. O desejo por esse homem a quem adorava não a destituíra da pudica, nem a fizera esquecer de sua vingança. Ela poderia ter se entregado ardentemente a ele na noite de núpcias, mas isso lhe tiraria o poder sobre esse homem a quem maltratava, justamente, por ter algo que a ele, de algum modo, faltava: honradez. Aurélia funciona como um caminho, árduo embora, para que o jovem encontre a dignidade. É a imperiosidade, divindade, ironia e até maldade de sua mulher que o leva a refletir sobre a dubiedade perigosa do seu caráter.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Longe de buscar elucidar todos os pontos que permeiam o romance eleito como objeto de pesquisa, procurou-se com esse trabalho delinear, talvez superficialmente, uma linha de pesquisa que perpassa, principalmente, por questões que envolvem a mulher, o corpo, o casamento e o erotismo. Todo esse caldeirão de assuntos conduzem o texto para uma análise significativa da obra Senhora, que tem muito ainda a oferecer em termos de pesquisa, dada a sua atemporalidade. Ainda estamos sob os muros da religião, da pudicidade e dos preconceitos em torno do corpo, ainda muito há para ser feito e dito, mas aqui apenas uma parte se fez revelar.