Sem simpatia

Normalmente, ao lermos um livro, sentimos simpatia por algum personagem, mas o bestseller A garota no trem, da inglesa Paula Hawkins, tem uma característica singular: nenhum dos personagens desperta simpatia. Alguns despertam até uma certa raiva pois não entendemos a motivação dos seus atos. Outro problema do livro que foi comparado ao bestseller americano Garota Exemplar, é que há várias incongruências que nos levam a notar que só serviram para prolongar a história até o seu clímax, quando a verdade é esclarecida.

A história é narrada em primeira pessoa por três mulheres: Rachel, Megan e Anna e nenhuma voz é dada aos personagens masculinos, Tom e Scott, talvez para garantir o mistério. Ao terminarmos de ler o livro, concluímos que, mais do que uma história de mistério e suspense, é basicamente a reunião das histórias de três mulheres mal-resolvidas e um tanto desequilibradas, que não fazem com que nos solidarizemos com seus dramas, até porque a trama foi voluntariamente desenvolvida para que o leitor não se envolva emocionalmente com as mulheres.

Rachel, que é a garota no trem, é uma mulher que caminha numa espiral acelerada de autodestruição e sua vida atual se resume a beber, lamentar-se pelo fim do casamento, pegar o trem e... bisbilhotar a vida alheia, chegando ao ponto de se intrometer numa trama de desaparecimento que não lhe diz respeito. Por que uma mulher que já está com tantos problemas, como ela, vai se meter em mais um que pode envolver até assassinato, contando mentiras? E ninguém sente simpatia por Rachel. Para os que a veem, seja no trem ou nas ruas, ela é uma bêbada decadente; para Anna, a atual esposa do seu ex-marido, ela é um estorvo e, para a polícia, ela é uma testemunha pouco confiável, pois bebe demais e tem lapsos de memória. Na verdade, nem Rachel tem simpatia por si mesma. Ela se julga culpada pelo fim do casamento e, em vez de tentar se reerguer,parar de beber e cuidar de si mesma, fica se lastimando e condenando. E comete vários erros durante o livro até que vai vendo que nada é o que parece.

Outra que não entendemos é Megan, a mulher que Rachel bisbilhota e deseja desvendar o seu desaparecimento. Ela vive insatisfeita, embora, aparentemente, tenha um bom marido que dá todos os sinais de ser apaixonado. Mas ela esconde segredos sórdidos e trai o marido até com o próprio psicólogo. Por que ela trai? Qual o problema dela?

Anna, a atual esposa de Tom, o ex-marido de Rachel, com quem tem uma filha, é incapaz de sentir compaixão pela mulher cujo casamento ajudou a destruir, refere-se a Rachel com desprezo e revela que gostava de ser a outra, mostrando que não se importava com o fato de se cúmplice num jogo de traição.

Além de não gostarmos dessas mulheres, podemos nos irritar com muitas incoerências da trama. A polícia se mostra inepta e incompetente em muitos sentidos, pouco ou nada fazendo para desvendar o desaparecimento de Megan. A detetive Riley, aliás, tem uma postura pouco adequada para uma policial. Desde o início, revela-se tendenciosa, o que sabemos muito bem que pode atrapalhar uma investigação, pois supomos que policiais devem lidar com fatos e buscar evidências, não agir se baseando em impressões. Mas Riley tem antipatia por Rachel e vai logo agindo como se soubesse que Scott, marido de Megan, fosse o culpado. Isso mostra que há policiais incompetentes em todo lugar.

O suspense vai crescendo ao longo da trama, mostrando que há muitos segredos sujos que tinham ficado escondidos durante muito tempo, e, quando vemos que ninguém é o que parecia ser, percebemos que Rachel, logo a pessoa menos confiável, pode ter visto algo que seja capaz de revelar o mistério, porém suas ações tresloucadas contribuem para complicar muitas coisas.

Entre um dos momentos que podemos destacar como emocionantes está a agressão e ameaça sofrida por Rachel da parte de Scott após ele saber que ela havia mentido sobre conhecer Megan e, embora a gente concorde que isso servirá de lição para ela aprender a não se meter no que não é de sua conta, sentimos raiva dele e de sua reação exagerada e violenta. Também ficamos com raiva da polícia, que vemos que nada fará para puni-lo após Rachel depor contra ele.

Finalmente, depois que sabemos a verdade e Rachel descobre quem realmente era Tom, o que ela tinha visto no dia do desaparecimento e relembra pontos obscuros do seu passado, como episódios confusos da época em que era casada com Tom, vemos que Rachel foi vítima de um marido abusivo e mentiroso, que queria que ela acreditasse ser a única culpada pelo fim do casamento, o que é mais um furo do livro. Tom nunca agiu de forma abusiva quando ela estava sóbria? Ela não conseguiu lembrar de nada todo esse tempo? E, após tudo se explicar, Rachel caminha para um destino incerto, como o de todos os que passam por este mundo, deslocando-se para muito longe de onde tudo se desenrolou. Será que ela vai se reerguer, parar de beber e retomar sua vida? Quem sabe? Nós nunca sabemos nem como será o minuto seguinte da nossa existência.