O JOALHEIRO E O JORNALISTA

E se eu equiparasse uma profissão meramente técnica com uma aparentemente mais livre, solta, subjetiva? Joalheiros são jornalistas, e a recíproca também é verdadeira. O que me leva a tal absurdo?

Certo fim-de-semana comprometi meus óculos. Rompi a solda de uma das hastes da armação. Não tinha mais o parafuso para prendê-la. A ótica não faz esse tipo de serviço. A ótica só VENDE óculos novos, caros por sinal, afora o tempo que eu precisaria aguardar sem meus utensílios favoritos, em casa, cego para coisas triviais como ver televisão. O que parecia ser um beco sem-saída revelou uma única solução viável: desembolsar quinze reais, misturar-se naquela gentalha do Conjunto Nacional e requisitar ao joalheiro/ourives: “traga meus velhos óculos de volta!”.

Fiquei ali, poucos mas intensos minutos, observando como aquele homenzinho, sentado o dia todo numa cadeira, engastava com toda a precisão aquelas peças de acetato, com detalhes tão mínimos, a princípio invisíveis para a vista humana. Forjava daqui, aparafusava dali, derramava uma cola especial num ponto, torcia outro com um alicate. Tudo estritamente técnico: ele não pode inventar muito; se escapar demais dos rituais de sempre a obra não será terminada, ou não de uma forma satisfatória. Espantei-me ao ver que a haste parecia ser mais parte integrante daqueles óculos do que jamais fora assim que ele terminou. Aquela ótica devia contratá-lo! Agradeci, paguei, e no caminho de volta para casa, de novo no meio da multidão que vendia DVDs piratas e anunciava calcinhas em liquidação aos berros, veio a presente reflexão: com o jornalista não é diferente.

Quem vê de fora pensa que somos sujeitos que escrevem o que pensam, que têm independência e liberdade jamais constatadas em outros setores, donos do próprio nariz, incomparáveis às classes dos médicos e advogados. Laissez faire, laissez passer. Deixe a criatividade fluir, o editor fará passar. Jornalistas, na outra mão, são mais realistas: na melhor das hipóteses, o superior manda de volta sem bravatas: “reescreva”. Uma das primeiras lições que se aprende no curso de Comunicação é: não se apegue demais a seus textos. O melhor jornalista é o mais “encarcerado”, o mais técnico, o mais joalheiro. Escrever, apesar de parecer uma atividade tão ampla (e de fato o é, porém estamos divagando sobre a mass media), que permite infinitas possibilidades para cada linha, é a mesma coisa que soldar uma haste de óculos: está certo que permite a construção de artigos de diferentes formas, mas os limites do possível são bem pequenos. As restrições começam pela impessoalidade: jamais esta crônica poderia ser considerada um artigo jornalístico. Depois, mais e mais proibições vão se acumulando, de modo que mesmo o melhor dos escritores se sentirá podado, desestimulado, de auto-estima baixa para prosseguir. Ah sim, pelo menos virá o dinheiro no fim do mês (isso se o jornal não estiver em crise, se não for daquelas redações que dão até barata...).

Não à toa, o sociólogo Pierre Bourdieu gosta de usar a analogia de “óculos para cada profissão”. Os óculos dos jornalistas são mais pesados que os outros, a responsabilidade social é grande. Não só o grau precisa estar correto como as hastes em dia...

Rafael Cila Aguiar
Enviado por Rafael Cila Aguiar em 18/11/2016
Reeditado em 18/11/2016
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