O OLHAR DA EPÍFISE SOBRE A LOUCURA EM REINO DOS BICHOS E DOS ANIMAIS É O MEU NOME de Stela do Patrocínio

Inaê Sodré

inaesodre@gmail.com

A loucura sempre existiu na história das sociedades ocidentais, assim como os métodos de cura ou de exclusão dos loucos e, igualmente, a perversidade humana manifestada para com o diferente. Do ponto de vista cultural, a loucura só existe de acordo com os parâmetros de normalidade de quem e, a partir, de onde se vê. Mas, do ponto de vista espiritual, o que é muito pouco discutida nas academias, muitos dos que possuem o poder da clariaudiência, quer dizer, o poder de ouvir vozes ou o da clarividência, ou seja, o poder de ver espíritos tem a tendência a ser confundido como esquizofrênico.

Em A história da loucura na Idade Clássica, Michel Foucault afirma que a loucura é objeto de discursos em que ela mesma sustenta discursos sobre si; é denunciada, se defende, reivindica para si o estar mais próxima da felicidade e da verdade que a razão, e de estar mais próxima da razão que a própria razão (FOUCAULT, 2012, p. 15). Foucault acusa René Descartes em dividir a linguagem em duas partes: Razão e Loucura. De um lado, a Razão como verdade, consciência, claridade, normalidade, lucidez e, do outro, a Loucura como erro, obscuridade, desordem (FOUCAULT, 1997. p. 45). Nesse sentido, esta é a loucura concebida do ponto de vista psiquiátrico, quer dizer, do ponto de vista cultural. Entretanto, este artigo, tratará de ver a loucura sob a perspectiva espírita. Para isso, teremos como ponto de análise Stela do Patrocínio através de seu livro de poesia, Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, que foi considerada louca e, por isso mesmo internada, compulsoriamente em um manicômio.

Reino dos bichos e dos animais é o meu nome é o título dado por Viviane Mosé a um livro que traz a narrativa de vida de Stela do Patrocínio. O livro não foi escrito, foi transcrito. A fala de Stela foi gravada durante dois anos, de 1986 a 1988, pela artista plástica Neli Gutmacher e pela estagiária Carla Gualhardi que, teve o cuidado de guardar as fitas. Mônica Ribeiro, também estagiária de psicologia, transcreveu boa parte das falas para o papel. Estas transcrições foram selecionadas e organizadas pela filósofa, psicóloga, psicanalista, poeta e escritora, professora doutora em filosofia pela UFRJ, a capixaba radicada no Rio de Janeiro, Viviane Mosé.

Este livro resulta de um processo coletivo, construído, em muitos momentos, no anonimato e nutrido do sentimento de solidariedade com os que não possuem amanhã nem ontem. Foram pessoas que chegavam para romper as amarras do silêncio que o asilo impunha e que tiveram a sensibilidade de reconhecer na fala de Stela o brilho de uma estrela (AQUINO/ MOSÉ, 2001, p. 15).

Segundo Viviane Mosé, Stela foi diagnosticada como portadora de uma personalidade psicopática mais esquizofrênica hebefrênica, evoluindo para ações psicóticas (MOSÉ, 2001, p. 21). Ela também foi uma das internas que viveu antes e depois da Reforma Psiquiátrica, no Brasil, na década de 1980. Por meio da linguagem poética, a fala de Stela do Patrocínio foi ouvida, gravada e transcrita para o papel. Esse livro nos mostra a quebra de um silêncio secular imposto aos “loucos” pelo poder de um tempo e de uma cultura. A sua produção se deu em um contexto sui generis de oralidade e posterior transcrição dos poemas e textos. E consciente do seu tempo e do seu espaço e da dimensão espaço/tempo, Stela falava:

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo/ Eu era ar, espaço vazio, tempo /E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó/ Eu não tinha formação/ Não tinha formatura/ Não tinha onde fazer cabeça/ Fazer braço, fazer corpo/ Fazer orelha, fazer nariz/ Fazer céu da boca/ fazer falatório/ Fazer músculo/ fazer dente/ Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas/ Fazer cabeça, pensar em alguma coisa/ Ser útil, inteligente, ser raciocínio/ Não tinha onde tirar nada disso/ Eu era espaço vazio puro (PATROCÍNIO, 2001, p. 21).

Este poema caracteriza um olhar para além da visão carnal. Stela enxerga a memória que se desdobra no tempo. Para o Dr. Sérgio Felipe de Oliveira, médico, formado em Medicina e mestre em Ciências pela USP, presidente da AME de São Paulo - AMESP, diretor clínico do Pineal Mind, Instituto de Saúde de SP, ministrante do curso de pós-graduação lato-sensu Neuroanatomia Funcional e Transpessoal, no Pineal Mind Instituto de Saúde e responsável pela implantação da disciplina Medicina Espírita na USP, a epífise é um sensor capaz de ‘ver’ o mundo espiritual e de coligá-lo com a estrutura biológica. É uma glândula, portanto, que ‘vive’ o dualismo espírito-matéria. E vem sendo considerada como o órgão da percepção da razão. Posto isso, como diz Foucault, em História da Loucura na Idade Clássica, numa única frase, em um único parágrafo, como quem tivesse a intenção de destacar, com toda credulidade, o que muitos já sabem: “A alma do louco não é louca” (FOUCAULT, 2012, p.210).

Segundo Sérgio Felipe de Oliveira, em As concreções calcárias da glândula Pineal, uma palestra realizada no 1º - Congresso Nacional Médico Espírita de São Paulo (MEDINESP) - em 1997, o tempo é uma região do espaço, o espaço quadridimencional, na qual o espírito atravessa para manipular a estrutura orgânica. A epífise ou a glândula pineal, comprovada cientificamente como a glândula que se relaciona com a dimensão tempo, é a candidata-mor a se interrelacionar com o plano espiritual, uma vez que ela lida com esta quarta dimensão, desse modo, é a única estrutura no corpo ao qual foi dada essa função. E esse fenômeno só é possível pela glândula pineal. Segue mais um poema de Stela para ilustrar:

Tá respirando/ tá enxergando/ tá ouvindo vozes/ tá com dentes completos e fortes/ tá com um pouquinho de cabeleira/ tá de brinco/ também vestida/ também calçada/ Toda quarta feira você vem/ Já tá com cabeça/ Tá com pele/ tá carne/ tá com ossos (PATROCÍNIO, 2001, p. 105).

A epífise é do tamanho de um caroço de laranja, localizada no centro do cérebro, no epitálamo. É uma glândula que produz hormônio, mas também é um órgão cronobiológico. Esta glândula também chamada de coronarium, integra o relógio cerebral, responsável por todos os ritmos no organismo, como os ritmos da reprodução hormonal, do funcionamento do sistema nervoso autônomo, dos ritmos circadianos, e ainda o estado de humor. Além do mais, é um sensor magnético que converte ondas do espectro eletromagnético em estímulo neuroquímico. Nesta glândula são encontradas concreções calcárias, denominadas cristais de apatita, que possivelmente implica na regulação da captação magnética.

René Descartes, numa de suas correspondências, ao padre Marin Mersenne, em Cartas a Mersenne de 1640, afirma que, no que diz respeito às espécies que servem à memória, não nega, absolutamente, que elas não possam estar em parte na glândula denominada coronarium; pois não teriam tanta facilidade em imaginar uma infinidade de coisas que eles nunca viram, se a alma deles não estivesse junta a alguma parte do cérebro que fosse muito própria para receber todo tipo de novas impressões (DESCARTES, 2003, p. 88). Do mesmo modo, no Art.4º do livro Paixões da Alma, Descartes diz que “se justifica em acreditar que toda a espécie de pensamento em nós existente pertence à alma” (DESCARTES, 2011, p. 226). E diz mais:

Acrescendo que a coronarium se relaciona particularmente com a alma para distingui-la dos outros sentimentos que referimos uns aos objetos exteriores, como os odores, os sons, as cores, e dos outros ao nosso corpo, como a fome, a sede, a dor, acrescento, outrossim, que são causadas sustentadas e fortalecidas por algum movimento dos espíritos, a fim de distingui-las de nossas vontades, que podemos denominar emoções da alma, que se relacionam com ela, mas que são causadas por ela própria (DESCARTES, , p. 228).

Segundo Dr. Sérgio Felipe de Oliveira, a captação mediúnica, ou expressões da alma, que projeta sobre o corpo, chega à região do epitálamo, morada da glândula pineal. As impressões sensoriais, nos quais captamos no meio externo: pessoas, lugares, perfumes, sabores, ligada a questão emocional, é tudo arquivado na região do tálamo. As informações que são arquivadas podem se dirigir para diversas áreas do cérebro. Se forem drenadas para o hipotálamo acontecem reações hormonais, imunológicas, orgânicas. Se essas informações forem dirigidas para o sistema límbico, desencadeia-se reações emocionais como angústias, medos, ira. Se forem dirigidas para o córtex, teremos lembranças ou manifestações do raciocínio, quer dizer, da percepção racional. Esta glândula tem importante estoque de serotonina no cérebro, uma substância amplamente implicada nos comportamentos psíquicos (OLIVEIRA, 2011, p. 4).

Em Ansiedade e Espiritualidade, uma palestra realizada na USP em 2012, o dr. Sérgio Felipe de Oliveira afirma que “Transtorno de ansiedade” se divide em duas perspectivas. Na perspectiva objetiva, a “ansiedade de adaptação” que é provocada, por exemplo, por uma expectativa de numa entrevista de emprego ou numa expectativa de encontrar uma pessoa. Na perspectiva subjetiva o “medo de não se sabe o quê”, que deflagra quando a pessoa acumula, em si, sentimento que se opõe, como numa relação de amor e ódio. Por exemplo, ódio da querida mãe ou do querido pai, pelo qual gera sentimento de culpa. Por isso, pode aparecer sintoma físico, como alta tensão, taquicardia, dor no peito. E sintoma psicológico, como depressão, insônia, perda de concentração, perda de memória, desdobramento, despersonalização, psicose dissociativa do humor, transtorno de atenção, desrealização, transtorno obsessivo compulsivo, fobia e hiperestesia. Esta se controlada, evita-se todos os outros distúrbios.

Na hiperestesia, os órgãos sensoriais estão à flor da pele no circuito sensitivo, qualquer estimulo pode chegar às raias da violência. A hiperestesia já é o status mediúnico que está à mercê da atividade sensorial. Entre a conexão mediúnica que amplifica os fenômenos, o pensamento irradia uma sintonia mental em ondas magnéticas. De modo que o amor, o ódio, a inveja, se amplifica ultrapassando a caixa craniana contaminando todo o ambiente (OLIVEIRA, 2011, p. 12).

A Pineal, além de ser uma glândula que produz hormônio, é também chamada de órgão cronobiológico porque lida com a função tempo. Associa-se a glândula pineal com a memória, pois envolve o registro de um dado, de um fato. Ao resgatar a memória precisa-se de um relógio para localizar o tempo. É o espírito que tem a noção do tempo transferida pela química da glândula pineal. Esta química, enviada pela melatonina, é a responsável pela formação dos cristais de apatita, que em indivíduos adultos facilita a captura do campo magnético que chega e repele outros cristais (OLIVEIRA, 2011, p. 7). Para Stela do Patrocínio “o tempo é o gás, o ar, o espaço vazio, tempo”. Numa de suas falas, ela lembra:

Meu passado foi um passado de areia em mar de Copa Cabana Cachoeira de Paulo Afonso bem dentro da lagoa Rodrigo de freitas no Rio de Janeiro. O futuro eu queria ser feliz e encontrar a felicidade sempre e não perder nunca o gosto de estar gostando. Eu sei que o meu passado eu pretei bem atenção como foi o presente. Eu continuo prestando atenção como é, mas o futuro eu nao sei como vai ser. É dificil eu descobrir como vai ser o meu futuro (PATROCÍNIO, 2001, p. 74).

Para Dr. Sérgio Felipe de Oliveira, quem tem problemas psicológicos, o pensamento irradia uma sintonia mental. Este pensamento vai ter uma diferenciada amplitude de ondas e frequências que vai entrar em fase e acoplar com outras mentes com o mesmo padrão vibratório. O problema psíquico que tem esta proporção vai se amplificar, pela conexão mediúnica, o sintoma. A pessoa pode perder o controle podendo ter uma dissociação mental, sensação de despersonalização ou desdobramento, quer dizer, quando você desliga da realidade e entra em outra dimensão, muito comum nas crianças. Um desdobramento no desdobramento pode-se ter o alargamento da percepção e por isso mesmo, o indivíduo capta a psicosfera do ambiente e tudo que o rodeia.

A Glândula Pineal deve ser o melhor laboratório de estudos da relação espírito-matéria. Suas propriedades de captação de ondas do espectro eletromagnético devem estar implicadas nas funções de senso-percepção mediúnica e telepática (OLIVEIRA, 1997, p. 19). Posto isso, o que muitas vezes foi, e ainda é confundido com loucura pode ser sensibilidade exacerbada, e se for ativada é chamada de hiperestesia ou estese amplificada. Mesmo na área da medicina, no campo do “cientificamente comprovado”, na Classificação Internacional de Doenças – CID-10 e no Sistema de Classificação de Transtorno Mental – DSM- consta que “não deve ser classificado o transe ou possessão, pela mediunidade, como doença”. Segue:

Transtorno de transe e possessão (CID-10) ou Transtorno de Transe Dissociativo (DSM-IV) é um transtorno dissociativo caracterizado por uma perda transitória da consciência de sua própria identidade, associada a uma conservação perfeita da consciência do meio ambiente. Apenas estados de transe involuntários e não desejados são considerados transtorno, não deve ser classificado como doença quando ocorre apenas em situações adequadas ao contexto cultural ou religioso do sujeito (CID-10, F44.3).

Ainda com o Dr. Sergio Felipe de Oliveira, a pessoa que apresenta os cristais de apatita em grande quantidade, normalmente, são médiuns. Elas têm alterações do estado de transe e apresentam fenômenos orgânicos e psíquicos um pouco mais diferenciados. A pessoa sente taquicardia, uma diminuição do funcionamento do aparelho digestivo, aumento do fluxo renal, do fluxo sanguíneo da cabeça e diminuição da circulação periférica. Assim, a interferência espiritual no aparelho mediúnico provoca fenômenos adrenérgicos e a pessoa, muitas vezes, pode ter uma perda de controle de determinados comportamentos. Tais como comportamentos psicobiológicos ou orgânicos: a fome, a sexualidade, o sono, a agressividade. Neste último, faz-se necessário distinguir a auto agressividade que se apresenta como a depressão e a fobia. E a heteroagressividade que se apresenta como a irritabilidade e a violência. Stela do Patrocínio evidencia esta sensibilidade quando expõe seu pensamento diante dos médicos, enfermeiras e toda a corporação, quer dizer, de sua família adquirida:

Eu tenho muito mau pensamento/ Mas não sou eu que faço mau pensamento/ Eu não sei quem é/ mas não sou eu que faço mal pensamento. Se eu pegar a família toda de cabeça pra baixo/ E perna para cima meter tudo dentro da lata de lixo e fazer um aborto/ Será que acontece alguma coisa comigo? Vão me fazer alguma coisa?/ Se eu pegar durante a noite novamente a família toda a cabeça pra baixo/ E perna pra cima/ Jogar lá dentro pra fora/ Lá de cima cá pra baixo/ Será que ainda vai continuar acontecendo alguma coisa comigo? (PATROCÍNIO, 2001, p. 132).

O que se sabe de Stela do Patrocínio é que ela nasceu em 9 de janeiro de 1941, filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio. Solteira, de instrução secundária, trabalhou na função de empregada doméstica. Morava na Rua Maria Eugenia, número 50, apto 501, Botafogo no Rio de Janeiro. Trabalhava como prostituta para poder se alimentar. “Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum” (PATROCÍNIO, 2001, p. 126).

Tive na avenida Rio Branco/ a rua inteirinha cheia de homens/ e eu me alimentei bem alimentada/ Eles me deram alimentação de vitamina de abacate/ de banana/ de mamão de aveia/ tive na avenida Rio Branco/ Tive na avenida presidente Vargas/ Tive na avenida Nilo Peçanha/ Tive na avenida Nossa senhora de copa cabana/ Em Copacabana tive muitos homens mesmo/ só depois da relação sexual é que eu posso carregar tudo pela língua e pela boca (PATROCÍNIO, 2001, p.100).

Depois de uma queda, na Rua Voluntários da Pátria, colocaram Stela dentro do Posto do Pronto Socorro. Aplicaram-lhe uma injeção. Deram um remédio. Deram eletrochoque. Mandaram tomar um banho de chuveiro. Mandaram procurar mesa, cadeira, cadeira, mesa. Deram-lhe uma bandeja com arroz, chuchu, carne, feijão, e aí chamaram uma Ambulância-assistência e disseram: “Carreguem ela!” (PATROCÍNIO, 2001, p. 49). E quando Stela abriu os olhos, disse: “Eu estou num asilo de velhos/ Num hospital de tudo quanto é doença/ Num hospício/ lugar de maluco/ louco/ doido” (PATROCÍNIO, 2011, p. 47). Será que Stela do Patrocínio não foi mais uma, dentre tantas outras personalidades, que de tão sensível ouviam vozes e sentiam claramente a psicosfera do ambiente? Não seriam espíritos interferindo na comunicação? Stela falava na tensão entre a ordem e a desordem, fazendo sentido:

Eu estava com saúde/ Adoeci/ Eu não ia adoecer sozinha não/ Mas eu estava com saúde/ Estava com muita saúde me adoeceram me internaram no hospital como doente/ O hospital parece uma casa o hospital é um hospital/ (PATROCÍNIO, 2001, 51). Eu vim do Pronto Socorro do Rio de janeiro/ Onde a alimentação era eletrochoque, injeção e remédio/ E era um banho de chuveiro, uma bandeja de alimentação/ E viagem sem eu saber pra onde ia/ Vim parar aqui nessa obra, nessa construção nova (PATROCÍNIO, 2001, p. 53).

Stela foi internada em 1962, aos 21 anos, permanecendo quatro anos no primeiro manicômio da América Latina, no Rio de Janeiro: o Hospital Pedro II. Depois foi transferida para o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, onde permaneceu até morrer, vítima de uma infecção generalizada em 1992. Stela morreu lobotomizada, com uma perna amputada e sem nenhum dente na boca. Stela morreu confinada. Em muitos dos seus poemas, ou recorte de seu falatório, ela diz que “ouve vozes”. De fato, a alucinação auditiva é um sintoma comum em algumas doenças psiquiátricas, como a esquizofrenia. No entanto, nem todos que passam por essa experiência têm necessariamente um distúrbio mental. Se você quer saber, Sócrates, filósofo grego e Joana D’arc, heroinda francesa, diziam ouvir vozes, assim também como o psiquiatra suíço e o artista plástico Andy Warhol (THRAENHARDT, 2007, p. 170).

De acordo com o Dr. Sérgio Felipe de Oliveira, há evidências consistentes que experiências psicóticas e anômalas são frequentes na população geral e que em sua maioria não estão relacionadas a transtornos psicóticos. Frequentemente, experiências espirituais envolvem experiências dissociativas e psicóticas de caráter não patológico. Embora as experiências espirituais não estejam habitualmente relacionadas a transtornos mentais, elas podem causar sofrimento transitório e são frequentemente relatadas por pacientes psicóticos. Nesse sentido, por que não pensar que Stela do Patrocínio, assim como todas estas personalidades citadas, tinham clariaudiência, e que por isso mesmo foi considerada esquizofrênica?

Eu não sei quem fez você enxergar/ Cheirar pagar cantar pesar ter cabelos/ Ter pele ter carne/ ter ossos/ ter altura/ ter largura/ ter o interior/ ter o exterior/ ter um lado o outro/ a frente/ os fundos em cima em baixo/ Enxergar/ Como é que você consegue enxergar? / E ouvir vozes? (PATROCÍNIO, 2001, P. 87).

E se Stela do Patrocínio vê a sua materialidade em seu desdobramento, ela enxerga por dentro, quer dizer, enxerga pela epífise.

Não tenho cabeça boa não/ Não sei o que tem aqui dentro/ Não sei o que tem aqui dentro/ Não sei o que tem aqui dentro/ Eu sei que tem olho. Mas olho pra fazer enxergar como? Quem bota pra enxergar / Se não sou e que boto para enxergar? Eu acho que é ninguém/ Enxerga sozinho/ Ele se enxerga sozinho (PATROCÍNIO, 2011, p. 89).

Stela do Patrocínio foi uma sobrevivente do processo de mortificação característico das estruturas psiquiátricas arcaicas e tradicionais, os asilos. Nestes, há o apagamento das individualidades, da subjetividade, do desejo e da singularidade. As pessoas ficam reduzidas a um amontoado, sem formas e sem rosto. O uniforme é apenas símbolo da real uniformização. O tempo é o tempo da morte. E o tratamento, dito cientifico, se reduz ao controle dos corpos, pela violência daqueles que ousam desafiar a ordem (MOSÉ, 2001, p.13).

Quem adentrava o manicômio entrava para o vale da morte. As pessoas morriam de frio porque dormiam no chão sem roupas e sem cobertas, ou eram jogadas ao relento. Homens, mulheres e crianças eram espancados e violentados. Morriam de fome, de eletrochoque, de infecção por beber água podre ou por comer fezes e ratos. Muitos morriam de pneumonia e outros muitos morriam em cima da mesa cirúrgica, em decorrência de lobotomia (ARBEX, 2012, p. 14). Stela do Patrocínio foi testemunha do que acontecia na parte interna do espaço manicômio e denunciou, poeticamente, os “cuidados” médicos e as formas mais violentas como método de “cura" de quem ousou a desestruturar a norma ou desordenar a ordem ou escapar do Padrão. Stela tomava constantemente eletrochoque e fez algumas cirurgias na cabeça. Neste poema, Stela descreve conscientemente os passos de uma lobotomia:

Eu já fui operada várias vezes/ Fiz várias operações/ sou toda operada/ Operei o cérebro, principalmente/ Eu pensei que ia acusar/ Se eu tenho alguma coisa no cérebro/ Não, acusou que eu tenho cérebro/ Um aparelho que pensa bem pensado/ Que pensa positivo/ E que é ligado a outro que não pensa/ Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar/ Eles arrancaram o que está pensando/ E o que está sem pensar/ E foram examinar este aparelho de pensar e não pensar/ Ligadas um a outro na minha cabeça, no meu cérebro/ Funcionar em cima da mesa/ Eles estudando fora da minha cabeça/ Eu já estou nesse ponto de estudo/ de categoria (PATROCÍNIO, 2001 p. 69).

Emoções e sentimentos, como ira, pavor, paixão, amor, ódio, alegria e tristeza, são criações mamíferas, originadas no Sistema Límbico, responsável por alguns aspectos da identidade pessoal e por importantes funções ligadas à memória. Em 1935, foi realizada a primeira Lobotomia Pré-Frontal em seres humanos. Foram seccionadas as conexões límbicas, isolando o Córtex Pré-Frontal, que os empobrecia afetivamente (OLIVEIRA, 1997, p. 20). Após a cirurgia não aparecia mais quaisquer sinais de alegria, tristeza, esperança ou desesperança. E mesmo depois de uma cirurgia de lobotomia, a epífise de Stela do Patrocínio enxergava pela memória e nos revela uma EQM, mais conhecido como Experiência Quase Morte.

Não sou eu que gosto de nascer/ Eles é que me botam pra nascer todo dia/ E sempre que eu morro, me ressuscitam/ Me encarnam me desencarnam/ Me reencarnam/ Me formam em menos de um segundo/ Se eu sumir desaparecer, eles me procuram onde eu estiver/ Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto/ Ou pra cabeça deles e pro corpo deles (PATROCINIO 2001, p.79).

Acredita-se que as visões da “EQM”, bem como as transformações ocorridas com os experientes têm a participação direta da glândula pineal que, nas manifestações desta experiência, tem ascendência sobre o lobo temporal e o sistema límbico. É interessante salientar que alguns pesquisadores encontraram sobreviventes de EQM em que enredos, do outro lado, envolveram uma retrospectiva de vidas passadas (OLIVEIRA, 1997, p. 22). Posto isso, é possível afirmar que existem outras forças que a compreensão cartesiana, provável e palpável, não prova e não toca. E Stela do Patrocínio sabia disso.

Eu não queria me formar/ Não queria nascer/ Não queria tomar forma humana/ Carne humana e matéria humana/ Não queria saber de viver/ Não queria saber da vida/ Eu não tive querer/ Nem vontade pra essas coisas/ E até hoje eu não tenho querer/ Nem vontade pra essas coisas. Eu não existia/ Eu não tinha uma existência/ Não tinha matéria/ comecei a existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos/ Logo de uma vez, já velha/ Eu não nasci criança, nasci já velha/ Depois que eu virei criança/ E agora continuei velha/ Me transformei novamente numa velha/ Voltei ao que eu era, uma velha (PATROCÍNIO, 2011, p. 80).

A loucura não passa de um movimento vivo na unidade racional da alma e do corpo; é o nível do desatino; mas esse movimento logo escapa a razão da mecânica e, em suas violências, em seus estupores, em suas propagações insensatas, torna-se um movimento irracional; é então que, escapando ao peso da verdade a suas coações, liberta-se o irreal (FOUCAULT, 2012, p.232). A grande maioria dos pacientes, rotulados pelos psiquiatras de “psicóticos” por ouvirem vozes ou verem espíritos, na verdade, são médiuns com desequilíbrio mediúnico e não com um desequilíbrio mental. Muitos desses pacientes poderiam se “curar” a partir do momento que tivesse uma medicina que leva em consideração o Ser Integral.

Stela do Patrocínio representa milhares de gente sem nome que foram consideradas loucas por uma ignorância espiritual e afetiva, por conta de uma interpretação linear imposta pelo pensamento racional. A razão, enquanto um modelo de pensamento vigente desde a modernidade, para não chegar à “Caverna de Platão”, é um modelo de pensamento excludente que impede uma compreensão mais ampla do sujeito enquanto um ser completo no que tange à mente, corpo e espírito.

De acordo com o professor e doutor Sergio Felipe de Oliveira, não existe raciocínio sem emoção. Somente a capacidade de amar constrói a verdadeira identidade das pessoas. Somente após a união definitiva entre a Ciência e a Espiritualidade, a Humanidade poderá encontrar a Paz e o Amor. E este amor, entendo eu, não é o tão vulgar e banal que se usa para ludibriar o outro, mas um amor pleno e consciente no qual respeitar cada ser humano em suas necessidades, direitos e pulsões é respeitar a si mesmo.

REFERÊNCIAS

CID-10, Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento. 10ª edição (CID-10) Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. P. Alegre, Artes Médicas, 1993

DESCARTES, René. Discurso do método. Brasília: UnB, 1985.

DESCARTES, René. Carta de René Descartes a Marin Mersenne de 1640. Scientia Studia, vol.1, Nº 1, 2003, p.87-92.

DESCARTES, René. As Paixões da Alma, trad. J Guinsburg & B. Prado Jr. in Os Pensadores, 2ª ed., Abril, São Paulo, 1979, pp. 213-94. 1ª Parte, § 30-43.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento das prisões. Petrópolis: Vozes, 1997.

_______. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2012.

______. A Ordem do discurso. 7ª. ed. São Paulo: Loyola, 1996

MOSÉ, Viviane. O homem que sabe. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

OLIVEIRA, Sérgio Felipe de. Glândula Pineal: Ciência e Mito. Boletim Médico-Espírita 11. AME-SP, 1997.

PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome - Stela do Patrocínio, Viviane Mosé (Org.). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.

OUTRAS VOZES: espiritualidade, esquizofrenia, mediunidade ou alucinação?

Publicado em: 17 de dezembro de 2010.

Revista Mente & Cérebro 170 - Março 2007

Inaê Sodré
Enviado por Inaê Sodré em 19/10/2016
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