O DESENCLAUSURAMENTO DO SILÊNCIO DE STELA DO PATROCÍNIO EM "REINO DOS BICHOS E DOS ANIMAIS É O MEU NOME"

Inaê Silva Pereira Sodré - inaesodre@gmail.com

RESUMO: Este artigo intenciona evidenciar a fala poética de Stela do Patrocínio, uma mulher negra e poeta, que passou trinta dos seus cinquenta e dois anos no manicômio Juliano Moreira no Rio de Janeiro. Sua fala foi gravada, durante dois anos, transcrita e organizada para o papel por Viviane Mosé. Stela denuncia, em linguagem poética, a crueldade que acontecia dentro do espaço Manicômio para silenciar e mortificar o sujeito, a custo de violência, em nome da razão e sob a nossa conivência. A cisão da linguagem, por Descartes, coloca a razão como soberana e a loucura como subalterna dentro de uma cultura. Uma cultura que isola os “doentes mentais” para marcar os “normais”, enquanto tais, por estarem fora dos muros excludentes do manicômio.

PALAVRAS-CHAVE: razão; loucura; literatura; representações identitárias.

RÉSUMÉ: Cet article entend montrer le discours de Stèle do Patrocínio, une femme noir et poète, qui a passé trente, des cinquante-deux ans, dans un asile, le Juliano Moreira, à Rio de Janeiro. Son discours a été enregistré pendant deux ans, transcrit et organisé pour le rôle de Viviane Mosé. Stela dénonce dans un langage poétique, les atrocités qui se sont produites en l'espace d'asile le silence du sujet, au coût de la violence, au nom de la raison et sous la connivence de la société. La scission de la langage, pour Descartes, met la raison comme souverain et la folie comme subordonné à l'intérieur d'une culture. Une culture qui isole le «malade mental» pour marquer des «normaux» en tant que telles, parce qu'ils sont à l'extérieur des murs d'exclusion de l'asile.

MOTS-CLÉS: raison; folie; littérature; représentations identitaires.

No início de tudo era a Palavra, que se tornou Fala. E que tomou Corpo. E, que, por sua vez, se encorpou Linguagem. As palavras nomeiam as coisas, traduzem os sentimentos, delimitam um pedaço da intensidade da vida, representam o mundo. Mas as palavras utilizadas para compreender e interpretar o nosso mundo, de verdades palpáveis e prováveis, podem diminuir as possibilidades de sentido que a palavra pode nos dar. A linguagem, como um rio no tempo, num dado momento, se parte e segue por duas vias na história do pensamento. Uma parte desemboca no dicionário e a outra parte desemboca na poesia. Será que as palavras exatas do vocabulário da razão são suficientes para compreender e interpretar o nosso mundo?

Segundo Viviane Mosé, a razão se caracteriza pela capacidade que todo o ser humano tem de criar e articular palavras e pensamentos, quer dizer, pensar por causa e efeito, por identidade, de forma organizada, esclarecida, contida, sem contradições, sem excessos, sem emoções (MOSÉ, 2012, p. 112). Na modernidade, ou idade clássica, como diz Foucault, século XVII, o matemático e filósofo francês René Descartes inaugura a Razão como modelo de pensamento filosófico fundamentado na exatidão matemática. “Penso, logo sou” é a máxima célebre do pensamento cartesiano encontrada em sua obra Discurso sobre o método para bem conduzir a razão na busca da verdade dentro da ciência, na qual a dúvida é eleita como ferramenta para investigar e compreender o mundo. Isso porque, para ele, ainda que se duvide ao máximo, não se pode duvidar daquele que duvida, porque a dúvida é um ato do pensamento, de modo que esse pensamento não pode acontecer sem sujeito.

Percebi que, quando pensava que tudo era falso, necessário se tornava que eu - eu que pensava- era uma cousa e, notando que esta verdade - penso logo sou - era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não eram capaz de abalar, julguei que podia aceitá-la, como escrúpulo como primeiro princípio da filosofia que procurava (DESCARTES, 2011, p. 50)

O que a razão quer é, desde o seu nascimento platônico, rejeitar uma parte da vida, a que muda, a que delira, a que morre. O que a razão quer é produzir um mundo de identidades e verdades, um mundo previsível e claro (MOSÉ, 2001. p. 22). Michel Foucault acusa René Descartes em dividir a linguagem em duas partes: Razão e Desrazão. De um lado, a Razão como verdade, consciência, claridade, normalidade, lucidez e, do outro, a Desrazão como erro, obscuridade, desordem (FOUCAULT, 1997. p. 45).

A principal preocupação de Descartes, diante de uma tradição escolástica em que as espécies eram concebidas como entidades semimateriais, semi-espirituais, é separar com exatidão mecanismo e pensamento, o corporal sendo inteiramente reduzido ao mecânico (SARTRE, 2008, p. 13).

Segundo Viviane Mosé (2012), Descartes reduz a existência ao pensamento, valoriza o mundo das ideias, busca a verdade e exclui o corpo como possibilidade de interpretação de mundo. Desse modo, excluindo da vida as intensidades, a linguagem artística. E pensar cartesianamente é pensar por causa e efeito, por identidade, por não contradição. Para que o pensamento racional tenha sentido, as coisas precisam se opor, fixamente, uma à outra: o belo oposto ao feio, o certo ao errado, o claro ao escuro, o normal ao anormal, a razão à loucura. Ele acredita que o corpo, as sensações e as emoções são as fontes dos erros e da desordem (MOSÉ, 2012, p. 130). Posto isso, o homem precisa se opor às sensibilidades e percepções e buscar a verdade como essência das coisas que vêm com o pensamento e ideias. Portanto, a razão não é natural, ela foi inventada num determinado tempo de nossa história, quer dizer, foi construída pela cultura e é um produto da nossa civilização.

A razão, como tradição inventada, foi fundamentada por um conjunto de práticas reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas. Essas práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamentos por meio da repetição do discurso (HOBSBAWM, 2012, p. 12). A gramática normativa serve de exemplo de como o discurso da razão perdurou no tempo. Pois a gramática normativa se sustenta na ideia de sujeito e predicado, em regras, normas, na não contradição, na “lógica da exclusão”. Para Viviane Mosé,

Este absoluto, centrado na noção de Ser, fundamenta a crença na identidade, razão de ser de toda a gramática, fazendo com que se instaure em todo o texto uma lógica da identidade que sempre exclui as diferenças e que encontra suporte na posição de um sujeito estável, único, sem afetos e sem corpo (MOSÉ, 2012, p. 53).

Para que o pensamento racional pudesse se manter como modelo de discurso verdadeiro, além de repetir o discurso “verdadeiro” do “falar certo” e “falar errado”, procurou-se internar os que se lhe opõem, quer dizer, todos os que fossem de encontro a ele: os que deliram, os que se excedem, os que se desequilibram, os que ultrapassam as normas estabelecidas. Como diz Foucault, “a dúvida de Descartes desfaz os encantos dos sentidos, atravessa as paisagens dos sonhos, sempre guiada pela luz das coisas verdadeiras; mas ele bane a loucura em nome daquele que duvida, e que não pode desatinar mais do que não pode pensar ou ser” (FOUCAULT, 2012, p. 47).

Michel Foucault, em seu livro A ordem do discurso, defende que a cisão da linguagem está no domínio do discurso. É por intermédio das palavras que se reconhece a loucura do louco. Afirma que desde os arcanos da Idade Média que o louco é aquele cujo discurso não pode transmitir-se como o dos outros: ou a sua palavra nada vale e não existe, não possuindo nem verdade, nem importância, não podendo testemunhar em matéria de justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo sequer, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; ou, como reverso de tudo isso, e por oposição a outra palavra qualquer, são-lhe atribuídos estranhos poderes: o de dizer uma verdade oculta, o de anunciar o futuro, o de ver, com toda a credulidade, aquilo que a sagacidade dos outros não consegue atingir (FOUCAULT, 1970; p. 10). Segundo Roland Barthes, em seu livro Aula, a linguagem é o objeto em que se inscreve o poder (BARTHES, 1980, p. 11). E a razão impõe, julga, controla, adoece, silencia, isola, exclui, tortura e mata.

Entre as mais antigas experiências de internação, temos a construção dos leprosários. Estes foram construídos no século IV d.C. e mantidos como lugar de exclusão até o desaparecimento da lepra no século XV, no fim da Idade Média. Tais espaços acolhiam não somente os leprosos, mas igualmente demais tipos indesejados da sociedade: mendigos, pobres, homossexuais, prostitutas, aleijados, entre outros (FOUCAULT, 2012, p.4). Depois que a lepra desapareceu, a sociedade precisava preencher aquele espaço vazio de exclusão. O manicômio foi o espaço escolhido para excluir os loucos, e todos os tipos diferentes ou estranhos representados na figura do louco.

Quem adentrava o manicômio entrava para o vale da morte. As pessoas morriam de frio, porque dormiam no chão, sem roupas e sem cobertas, ou eram jogadas ao relento. Morriam de fome, de eletrochoque, de infecção por beber água podre ou por comer fezes e ratos. Muitos morriam de pneumonia e outros muitos morriam em cima da mesa cirúrgica, em decorrência de lobotomia. Stela do Patrocínio foi testemunha do que acontecia na parte interna do espaço manicômio e denunciou, poeticamente, os “cuidados” médicos e as formas mais violentas como método de “cura" de quem ousou a desestruturar a Norma. Ou desordenar a Ordem. Ou escapar do Padrão. Stela pôde, por meio de sua fala, dar testemunho de suas vivências, na condição de vítima de um sistema ultrapassado de tratamento manicomial que, segundo palavras de Michel Foucault “usava as formas mais bizarras de violência e tortura para método de controle dos corpos” (FOUCAULT, 1997 p. 141). Segundo Daniele Arbex (2013),

(...) durante décadas, as pessoas eram enfiadas – em geral compulsoriamente – dentro de um vagão de trem que as descarregava na Colônia. Lá, suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apagados. Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até mesmo crianças viravam "Ignorados de Tal”. Eram epiléticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, mendigos, militantes políticos, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns deles eram apenas tímidos. Cerca de 30 eram crianças (ARBEX, 2013, p.14).

Por causa do pensamento excludente da razão, habita em cada um de nós um leprosário vazio. Mas por que a nossa cultura exclui? Por que certos sentimentos são considerados patologia? E o normal, o que seria?

Segundo George Canguilhem (2012), em seu livro O Normal e o Patológico, na perspectiva objetiva se alcança a ideia de normal com base na regularidade estatística. Ou seja, a partir da medida de comportamento e experiência de uma determinada população se tem um parâmetro de normalidade. E os que desviam desse padrão são considerados fora do Normal. Por outro lado, de uma perspectiva subjetiva, já é sabido que todos os seres humanos são dotados de uma mente, quer dizer, de uma vida subjetiva, que regula a sua relação com os outros e com o meio ambiente, de modo que essa relação com os outros implica prazer e desprazer, frustrações e sofrimento. Sofrer, assim como alegrar-se e entristecer-se, é inerente à condição humana. Para Canguilhem, se relacionar normalmente com alguém implica um indivíduo tratar o outro como sujeito ético, ou seja, como um sujeito igual a si. E quando, de alguma maneira, ele destitui aquela pessoa da condição de sujeito, passando a tratá-la como instrumento do seu prazer, estará, dessa forma, ultrapassando o limite e desembocando para o campo da patologia. E, portanto, qualquer julgamento que aproprie ou qualifique um fato em relação a uma norma, essa forma de julgamento está subordinada àquele que institui as normas (CANGUILHEM, 2012, p. 80). Nesse sentido, é dubitável se a normalidade está fora ou dentro dos muros excludentes dos manicômios.

Com o livro Reino dos Bichos e dos animais é o meu nome, de Stela do Patrocínio (1941-1992), apresenta-se a voz e a palavra de uma mulher negra, poeta e interna do Juliano Moreira, hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, que passou trinta, dos seus cinquenta e dois anos, internada num manicômio, vítima da exclusão imposta pelo pensamento racional, pela ciência e pela conivência da sociedade. Ela também foi uma das internas que viveu antes e depois da Reforma Psiquiátrica, no Brasil, na década de 1980. Por meio da linguagem poética, a fala de Stela do Patrocínio foi ouvida, gravada e transcrita para o papel. Esse livro nos mostra a quebra de um silêncio secular imposto aos “loucos” pelo poder de um tempo e de uma cultura. A sua produção se deu em um contexto sui generis de oralidade e posterior transcrição dos poemas e textos. E consciente do seu tempo, do seu espaço e de sua condição, Stela falava e falava e falava:

Dias semanas meses o ano inteiro/ minuto segundo toda hora dia tarde a noite inteira querem me matar/ Só querem me matar/ Porque dizem que eu tenho vida fácil/ Tenho vida difícil/ Então porque eu tenho vida fácil/ Tenho vida difícil/ Eles querem saber como é que eu posso ficar nascendo sem facilidade e com dificuldade/ Por isso é que eles querem me matar (PATROCÌNIO, 2001, p.64).

O que se sabe de Stela do Patrocínio é que ela nasceu em 9 de janeiro de 1941, filha de Manoel do Patrocínio e Zilda Xavier do Patrocínio. Solteira, de instrução secundária, trabalhava na função de empregada doméstica. Morava na Rua Maria Eugenia, número 50, apto 501, Botafogo no Rio de Janeiro. E se prostituía para poder se alimentar. “Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo nenhum” (PATROCÍNIO, 2001, p. 126). Stela se enquadrava perfeitamente fora dos padrões sociais normativos estabelecidos: mulher, negra e pobre. Posto isso, será que Stela do Patrocínio, na condição de subalternizada, dentro da nossa cultura, patriarcal, escravocrata, embranquecida e capitalista, foi mesmo louca, ou foi enlouquecida?

Depois de uma queda, na Rua Voluntários da Pátria, colocaram Stela dentro do Posto do Pronto Socorro. Aplicaram-lhe uma injeção. Deram um remédio. Deram eletrochoque. Mandaram tomar um banho de chuveiro. Mandaram procurar mesa, cadeira, cadeira, mesa. Deram-lhe uma bandeja com arroz, chuchu, carne, feijão, e aí chamaram uma ambulância, assistência e disseram: “Carreguem ela!” (PATROCÍNIO, 2001, p. 49). “Eu estou num asilo de velhos/ Num hospital de tudo quanto é doença/ Num hospício/ lugar de maluco/ louco/ doido” (PATROCÍNIO, 2011, p. 47).

Stela foi internada em 1962, aos 21 anos, permanecendo quatro anos no primeiro manicômio da América Latina, no Rio de Janeiro: o Hospital Pedro II. Depois foi transferida para o Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, onde permaneceu até morrer, vítima de uma infecção generalizada em 1992. Essa personalidade singular é descrita nas palavras de Viviane Mosé, filósofa, poeta, psicóloga e psicanalista, mestra e doutora em filosofia, pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autora de seis livros de filosofia e sete livros de poesia:

Stela foi uma sobrevivente do processo de mortificação característico das estruturas psiquiátricas arcaicas e tradicionais, os asilos. Nestes, há o apagamentos das individualidades, da subjetividade, do desejo e da singularidade. As pessoas ficam reduzidas a um amontoado, sem formas e sem rosto. O uniforme é apenas símbolo da real uniformização. O tempo é o tempo da morte. O tratamento, dito cientifico, se reduz ao controle dos corpos, pela violência daqueles que ousam desafiar a ordem (MOSÉ, 2001, p.13).

Em Reino dos bichos e dos animais é meu nome, nota-se, desde o título, o olhar lançado para sua condição no hospital psiquiátrico: “Primeiro veio o mundo dos vivos/ Depois veio a vida e a morte/ Depois dos mortos/ Depois dos bichos e dos animais/ Depois do entre a vida e a morte/ Depois dos mortos/ Depois dos bichos e dos animais/ Só fica a vontade/ Como bicho e como animal”. (PATROCÍNIO, 2001, p. 116). Ou então os “cuidados” dos médicos psiquiátricos: “O remédio que eu tomo me faz muito mal/ E eu não gosto de tomar remédio pra ficar passando mal/ Eu ando um pouco e cambaleio/ fico cambaleando quase levo um tombo e se eu levo um tombo eu levanto/ Ando mais um pouquinho/ torno a cair”. (PATROCÍNIO, 2001, p. 54). Num dos poemas, é como se ela descrevesse os passos de uma lobotomia:

Eu já fui operada várias vezes/ Fiz várias operações/ sou toda operada/ Operei o cérebro, principalmente/ Eu pensei que ia acusar/ Se eu tenho alguma coisa no cérebro/ Não, acusou que eu tenho cérebro/ Um aparelho que pensa bem pensado/ Que pensa positivo/ E que é ligado a outro que não pensa/ Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar/ Eles arrancaram o que está pensando/ E o que está sem pensar/ E foram examinar este aparelho de pensar e não pensar/ Ligadas um a outro na minha cabeça, no meu cérebro/ Funcionar em cima da mesa/ Eles estudando fora da minha cabeça/ Eu já estou nesse ponto de estudo/ de categoria (PATROCÍNIO, 2001 p. 69).

Em 1979, o psiquiatra italiano, Franco Basaglia, pioneiro na luta pelo fim dos manicômios e responsável pela reforma psiquiátrica na Itália, conheceu o Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo, presenciei uma tragédia como esta” (ARBEX, 2013, p. 15). Para Vivane Mosé, o embate da reforma psiquiátrica se passa na cultura, no olhar sobre a diferença e como a sociedade lida com o outro (MOSÉ, 2001, p. 16).

Em 1989, o deputado Paulo Delgado deu entrada no projeto que extinguiria, progressivamente, os manicômios e regulamentaria os direitos dos doentes mentais, mas só em 2001 a lei da Reforma Psiquiátrica foi sancionada: a Lei nº 10.216 de 6 de abril de 2001, que também é conhecida como Lei Paulo Delgado (FERREIRA, 2006, p. 77-85). O Hospital Psiquiátrico se extinguiu para dar lugar a um novo modelo de tratamento. A criação do Centro de Atenção Psicossocial- C.A.P.S.- que tem como objetivo evitar que o doente fique enclausurado e esquecido em confinamento, ao mesmo tempo objetiva colocar o doente em contato direto com a família e com a sociedade, como uma forma de ajuste social. Nesses centros, o doente tem um acompanhamento, psicológico e farmacológico, além de uma integração dentro da unidade com pessoas do bairro ou da cidade.

Conforme relatam Gonçalves & Sena (2001); Ferreira (2006), a Reforma Psiquiátrica, no Brasil, ocorreu na década de 1980, na ocasião da implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Stela se beneficiou do momento, pois os portões, que ficaram fechados durante séculos, se abriram. Trata-se de um tempo, não tão distante de nós, em que os doentes mentais eram tratados como animais irracionais e, que por isso mesmo, foram isolados, enjaulados, acorrentados, punidos. E, como animais, foram cobaias para o progresso da ciência. Depois da Reforma Psiquiátrica, inaugura-se um novo tempo. O tempo do dessilenciamento dos silenciados. Stela falava e falava e falava...

As frases de Stela do Patrocínio escapam da construção sintática esperada para entrar num outro ritmo. O ritmo dos olhos esgazeados. Palavras enfileiradas arrumadas sem respirar. E, para essa falta de respiração, a organizadora achou por bem economizar nas vírgulas para dar um ritmo de rio em sua fala. É nesse desaguar no mundo da dita desrazão - dos símbolos, do sonho, da poesia, da arte enfim - que Stela estrutura o seu pensamento. O seu discurso se organiza na tensão entre ordem e desordem. “Stela falou com seu falatório e falando se desdobrava em seu falar. Stela falava de sua fala. E falava de uma forma muito própria. Suas palavras extremamente bem pronunciadas eram sempre carregadas de muita emoção”. (MOSÉ, 2001, p. 28). Ciente do seu Ser e do seu Estar-no-mundo, Stela afirma sua identidade confirmada na perspectiva do outro:

Eu sou Stela do Patrocínio bem patrocinada/ Estou sentada numa cadeira pregada numa mesa/ Nega preta e crioula/ Eu sou uma negra preta e crioula/ Que a Ana me disse/ Nasci louca/ Meus pais queriam que eu fosse louca/ Os normais tinham inveja de mim que era louca (PATROCÍNIO, 2011, p. 66).

O livro não foi escrito por Stela, apesar de sabido que ela escrevia em papelão. Os textos foram falados e gravados durante dois anos, de 1986 a 1988, pela artista plástica Neli Gutmacher e Carla Guagliardi. Depois foram transcritos pela psicóloga Mônica Ribeiro e organizado por Viviane Mosé. Ricardo Aquino, no prefácio intitulado Estrela, diz que “este livro resulta de um processo coletivo, construído, em muitos momentos, no anonimato e nutrido do sentimento de solidariedade com os que não possuem amanhã nem ontem” (MOSÉ, 2001, p. 15). Segundo Viviane Mosé, Stela foi diagnosticada como portadora de uma “personalidade psicopática mais esquizofrênica hebefrênica, evoluindo para ações psicóticas”. E da sua existência, Stela fala:

Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo/ Eu era ar, espaço vazio, tempo /E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó/ Eu não tinha formação/ Não tinha formatura/ Não tinha onde fazer cabeça/ Fazer braço, fazer corpo/ Fazer orelha, fazer nariz/ Fazer céu da boca, fazer/ falatório/ Fazer músculo, fazer dente/ Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas/ Fazer cabeça, pensar em alguma coisa/ Ser útil, inteligente, ser raciocínio/ Não tinha onde tirar nada disso/ Eu era espaço vazio puro (PATROCÍNIO, 2001, p. 21).

O livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome foi lançando em 2001 pela editora Azougue Editorial, intitulado de “poesia brasileira”. A orelha foi assinada por Sérgio Cohn, coordenador da Azougue Editorial. Teve a organização e apresentação de Viviane Mosé. O livro é composto por “agradecimento”; “Epígrafe”; “Sumário”; “Estrela”, “apresentação: Stela do Patrócínio - Uma trajetória poética em uma instituição psiquiátrica”, “parte I- Um homem chamado cavalo é o meu nome”, “Parte II- Eu sou Stela do Patrocínio, bem patrocinada”, “Parte III- Nos gazes eu me formei, eu tomei cor”, “Parte IV- Eu enxergo o mundo”, “Parte V- A parede ainda não era pintada de tinta azul” e “parte VI- Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”; “Stela por Stela- Entrevista” e “Cronologia”. Na entrevista feita por Neli Gutmacher e Carla Guagliardi a Stela do Patrocínio, destacam-se alguns trechos que nos dá uma ideia do que foi a sua experiência no manicômio:

Como é o seu dia aqui na Colônia?

Segunda terça quarta quinta sexta sábado domingo janeiro fevereiro março abril maio junho julho agosto setembro outubro novembro dezembro dia tarde noite eu fico pastando à vontade Fico pastando no pastando à vontade que nem cavalo

Ele já disse um homem chamado cavalo é o meu nome.

Você passa muito mal aqui?

Passo mal porque eu tomo constantemente injeções.

Injeções para o homem e o líquido desce.

Quem te dá essas injeções?

O invisível polícia secreta o sem cor

E para que serve essas injeções?

Para forçar a ser doente mental.

No dia que você parar de tomar injeções você fica curada?

Fico completamente curada se eu não tomar remédio

Não tomar eletrochoque

Eu não fico carregada de veneno envenenada.

Você estudou Stela?

Estudei em livro

Linguagens

Comment allez vous?

Como você está? Thank you very much

O tanque da vera está cheia de mate

Ça va bien, a senhora vai bem?

Você é professora?

Não sou professora, mas tive trabalho de estudar letra por letra frase por frase folha por folha

Seu nome é Stela, você sabe o que quer dizer, Stela?

Estrela

Estrela do mar

Fala uma poesia pra gente?

Não.

Não tenho mais lembrança de poesia mais nenhuma

Tudo o que você fala é poesia Stela.

É só história que eu estou contando, anedota (PATROCÍNIO, 2001, p.153).

Stela e seus relatos tiveram uma significativa repercussão: O livro Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, organizado por Viviane Mosé, tornou- se finalista do Prêmio Jabuti em 2002 e 2005. Seus textos foram usados em shows musicais, pelo músico e artista plástico Cabelo. Foram adaptadas para o teatro, no monólogo Stela do Patrocínio óculos, vestido azul, sapato preto, bolsa branca e...doida, interpretado por Clarisse Baptista e dirigido por Nena Mubárac. Stela foi para o cinema, em Stela do Patrocínio – a mulher que falava coisas (Documentário, 14 min., DV, RJ, 2006), realizado por Márcio de Andrade. E transformada em ópera pelo compositor Lincoln Antônio. Do título do livro, segue o poema:

Meu nome verdadeiro é caixão/ Enterro/ Cemitério defunto cadáver/ esqueleto humano/ Asilo de velho/ hospital de tudo quanto é doença/ Hospício/ Mundo dos bichos e dos animais/ Os animais: dinossauro camelo onça tigre leão macaco dinossauro girafa tartaruga/ Reino dos bichos e dos animais é o meu nome/ Jardim zoológico/ Quinta da Boa Vista (PATROCINIO, 2001, p.118).

Para Viviane Mosé, o texto de Stela do Patrocínio nasce como um marco na literatura brasileira, revestindo-se da maior importância e significado. Ele se junta a tantos outros livros de depoimentos de escritores que relataram suas experiências em asilos. E chega com vigor e densidade, fazendo-se história. Neste capítulo, intitulado ESTRELA, a organizadora começa, e eu termino, com uma epígrafe do cantor cubano, Paulo Milanez, apontando para a Estrela Stela: “O que brilha com luz própria ninguém pode apagar” (MOSÉ, 2001, p. 13).

REFERÊNCIAS

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CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. Tradução de Maria de Threza Redigde C. Barrocas e Luiz Octávio F. B. Leite. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

DESCARTES, René. Discurso do método. Brasília: UnB, 1985.

FERREIRA, Gina. A Reforma Psiquiátrica no Brasil: Uma análise sociopolítica. Psicanálise e Barroco – Revista de Psicanálise, v.4, n.1, p. 77-85, 2006.

FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Tradução: Lilian Rose Shalders. Coleção Biblioteca Tempo Universitário, Vol. 11, 2ª. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

_______. Vigiar e Punir: nascimento das prisões. Petrópolis: Vozes, 1997.

_______. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2012.

______. A Ordem do discurso. 7ª. ed. São Paulo: Loyola, 1996.

GONÇALVES, Alda Martins; SENA, Roseli Rosângela. A reforma psiquiátrica no Brasil: contextualização e reflexos sobre o cuidado com o doente mental na família. Revista Latino Americana de Enfermagem, v.9, n.2. p. 48-55, 2001.

HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (Org.). A Invenção das Tradições. [edição especial]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.

MOSÉ, Viviane. O homem que sabe. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

PAES, Victor. Stela do Patrocínio - O Tempo é o gás, o ar, o espaço vazio. Em: Confraria – Revista de Literatura e Arte, n°11, 2006. Disponível em: <http://www.confrariadovento.com/revista/numero11/phantascopia.htm>. Acesso em: 02/07/2010. Stela do Patrocínio. Disponível em: <www.steladopatrocinio.blogspot.com/>. Acesso em: 21/08/2010.

PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos bichos e dos animais é o meu nome - Stela do Patrocínio, Viviane Mosé (Org.). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001.

SARTRE, Jean-Paul. A imaginação (1936). Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2008.

Inaê Sodré
Enviado por Inaê Sodré em 15/10/2016
Reeditado em 15/10/2016
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