LITERATURA SANGUISSEDENTA
Foi com gozoso prazer que li recentemente o livro Drácula, do escritor Bram Stocker. E por experiência empírica e certificada, credito a esta obra o aspecto que lhe é mais peculiar: Revolucionária! Não há em seus vinte e sete capítulos, ou melhor, páginas, algo que não provoque no leitor visão ímpar e da literatura. Esse livro merece o status que conquistou.
A obra literária, que à moda epistolar, se faz de sutil ambivalência como um romance e novela. Toda ela é narrada através de cartas, diários, telégrafos etc. A narração em primeira pessoa dá a sensação de que o próprio leitor em pon-tos cegos protagoniza a história junto de seus companheiros, a depender do rumo podem ser Mina, Jonathan, Lucy, Helsing, Quincey, Morris ou Godalming.
O terror banalizado e a violência exacerbada das obras atuais podem fazer o leitor pensá-la como uma obra de aventura simples. Entretanto, seu terror con-siste no embate psicológico e na evocação das míticas figuras que a sociedade humana já produziu, tão bem representadas no Sono da Razão de Goya. Conde Drácula e suas amantes são o arquétipo do temor da morte pelo homem.
O vampiro como arquétipo, traduz o ideal de imortalidade que muitas religi-ões preconizam. Mas a eternidade aqui não é condição de transcendentalismo, mas sim uma prisão. A não-morte como sinônimo de tortura nos faz refletir nossa própria condição humana. Todos inclusive o Conde são de certa forma vítimas, encarcerados em seus corpos esguios e pálidos.
O neologismo nosferatu, designação esta usada pelo autor para classificar os vampiros, tem origem etimológica no grego nosphorus, ou seja, aquele que contamina ou trás doenças. A manutenção da vida através da morte ou absor-ção de outras é tido aqui como uma doença. O louco Renfield demonstra essa visão claramente no livro consumindo vidas de seres menores.
O livro tem em si diversas histórias que se cruzam, ou ocorrem em simultâ-neo. Cada uma com o seu protagonista, seu roteiro e sua resolução. Indo mais além, seria como uma obra em fix-up, que ao longo dos seus capítulos, vemos um enredo protagonizado sob um ponto de vista e tendo como mote um pro-blema a ser resolvido na iminência de ocorrência mais grave às personagens.
As imagens sacras que permeiam o livro são de influência puritana, sendo este lançado em era Vitoriana (1837-1991) na Inglaterra, época em que as es-crituras da Bíblia tinham peso literal. Lucy e Mina representam a visão frágil da mulher cristã, e os personagens como Helsing são os que lembram ao homem que a religião ainda tem valor em época de grande avanço científico.
Indo mais à fundo nesta pesquisa dos signos, o Conde Drácula representa o patriarcalismo cristão e a aristocracia burguesa. O harém e o castelo do vampi-ro são metáforas para as coisas velhas e passadas da sociedade cristã ociden-tal, representada aqui como as nações europeias. O foco desta simbologia é contrapor a atual sociedade progressista e o conservadorismo inglês.
Embora ao longo dos anos a concepção dos vampiros tenha mudado, sua incorporação na cultura foi um grande avanço por unir o terror à aventura. O sangue novo que este trouxe acabou se diluindo no espírito dos homens em todo mundo. Drácula junto com outras obras já foi eternizado e agora Bram Stocker se encontra ao lado dos imortais da literatura universal.