ENTRE A CRÔNICA, O CONTO E A MEMORIALÍSTICA: REVENDO CENAS DE ARACAJU ATRAVÉS DA LENTE DE ANDERSON NASCIMENTO

_ Tânia Maria da Conceição Meneses Silva_

Chronos é o tempo e a palavra que deu origem ao gênero crônica. Para esta ocasião, dispensamos análises aprofundadas sobre o texto literário que conta histórias, quer propriamente históricas, quer jornalísticas, quer ficcionais, contendo as divagações, abstrações e criação de mundos a partir do poder do uso da palavra pela palavra transformada em Belo literário. De toda forma, tomamos emprestadas as palavras de Antônio Candido (1996, p. 24) com a afirmação de que a crônica, “amiga da verdade e da poesia”, “pega o miúdo” (não entendamos a palavra miúdo com o sentido de coisa pequena, sem valor, mas com o sentido de detalhe) que, tantas vezes passa despercebido pela maioria dos olhos e dos ouvidos) “e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas”.

No que diz respeito ao aspecto histórico da crônica, queremos tão somente lembrar com Siebert (2014, p. 5) que

A falta de precisão histórica, ou de um consenso entre os pesquisadores, sobre a origem do termo em terras brasileiras não nos parece difícil de entender; afinal, a crônica, nas primeiras décadas do século XIX, era um gênero discursivo novo, sendo constituído pelos discursos da história, do jornalismo e da literatura, que se entrecruzavam e teciam, aos poucos, o novo gênero: a crônica brasileira. Outro fator que dificulta a identificação do gênero pode estar ligado à sua autoria, pois na primeira metade do século XIX era escrita por jornalistas que não ganharam reconhecimento no campo literário. São os textos de José de Alencar, Francisco Otaviano de Almeida Rosa e Joaquim Manuel de Macedo que dão à crônica sentidos da esfera literária.

Pensando em conceitos e definições, lembremo-nos de que, para o poeta português, Fernando Pessoa, escrever nada mais é do que esquecer. Entretanto, cronistas e memorialistas escrevem porque se lembram e não desejam se esquecer.

Os tipos textuais são multivariados e de complexa identificação, constituem uma miríade de estrelas e, como se tal não bastasse, eles se multiplicam sem cessar, ainda mais agora, em um tempo marcado pelas transformações textuais impulsionadas pelo uso da tecnologia da comunicação.

Nos suportes virtuais, a leitura também se transforma e adquire novas estruturas, significados e ações, promovendo mudanças nos modos de ler, analisar e entender um texto. O leitor passa a interagir com o autor e com o próprio texto, e sua atuação também interfere nos processos de interpretação. (PEREIRA, 2012, p. 5).

A crônica tem a sorte, digamos assim, de ser, vez por outra confundida com o conto, pois ambos contam histórias. Entretanto, sabemos das distinções entre um e outra. Os estudiosos da literatura relacionam crônica à história, ao jornalismo e à mídia em geral.

O cronista é visto socialmente como um contador de histórias e um repórter do cotidiano. Só para exemplificar, Machado de Assis e o poeta e jornalista Olavo Bilac publicavam crônicas nos jornais do Rio de Janeiro. Dito por Santana (2013, p. 17),

Bilac foi um dos mais importantes (se não o mais) intelectuais de sua época. Com seu livro Poesias (1888) obtém sucesso precocemente, sendo já aos vinte e três anos de idade um intelectual reconhecido no Rio de Janeiro. Contudo, na maturidade, ele abandonará os versos para adentrar no jornalismo, atividade à qual se empenhará durante quase vinte anos. Era ele quem assinava as crônicas dominicais do principal jornal da época, a Gazeta de Notícias, substituindo nesse posto Machado de Assis.

O sergipano Tobias Barreto de Menezes “atuava como jornalista, publicando estudos filosóficos no Jornal do Recife e produzindo crônicas literárias para o Jornal do Commercio” (ATAÍDE e SÁ, 2015, p. 8-9).

Pedro da Silva Nava, nascido em 5 de junho de 1903, na cidade mineira de Juiz de Fora, o antigo Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais, na década de 1920 mudou-se para Belo Horizonte. Era um médico reumatologista e professor universitário que, ao aposentar-se, passou a se dedicar aos estudos da literatura e,

Em 1972, publica pela Editora Sabiá seu primeiro volume de memórias: Baú de ossos, em que narra a história de seus antepassados portugueses, italianos, cearenses e mineiros. (...) o livro não se limita a descrever episódios vividos pelo autor: revela o ambiente social, político e cultural do Brasil na primeira metade do século, levando o leitor a compreender, mais do que o homem, a época em que viveu. Para ele, como em Proust, a busca do tempo perdido, através de fatos e personagens, é antes de tudo um modo de chegar ao conhecimento de si mesmo. (SILVA, s/d. Revista Cult) .

Quanto à memorialística, a obra de Pedro Nava, assim como a de Nascimento, este com o foco centrado em Aracaju,

[...] trata de tudo e de todos, de ruas, bairros e cidades, de Minas, do Brasil, do mundo, num amplo esforço de indicar a geografia minuciosa de cada lugar de que dá notícia. É também uma erupção de figuras, de retratos, de episódios, de ambientes, de paisagens, de relatos de modos de vida e de transformações de alguns desses mesmos modos, de crises, de sofrimentos, de festas, de alegrias, de informações variadas como culinária, ciência, moda, literatura, arte, medicina, num encadeamento que faz pensar no interminável. (FÁVERO, 2011, p. 2).

A crônica e a memorialística se encontram representadas na Academia Sergipana de Letras por nomes como os de Lígia Pina, Epifânio Dória, Benvindo Salles de Campos Neto, Garcia Moreno, Manoel Cabral Machado (estes in memoriam). Na atualidade, se elevam no cenário da nossa literatura, e com evidência nacional, nomes como Ana Medina, Jane Nascimento; João Oliva Alves, Estácio Bahia de Sá, José Lima Santana, Murilo Mellins e o Dr. José Anderson Nascimento, presidente da ASL, juiz de direito, professor de direito, pesquisador e poeta da prosa.

Com efeito, as narrativas que Anderson Nascimento nos oferece em crônicas de sua autoria, publicadas em jornal, estão inundadas da poesia que envolve Aracaju, capital do Estado de Sergipe, cantada em verso e prosa por apaixonados poetas, assim como Mário Cabral, Iara Vieira, Hunald Alencar e José Sampaio, o poeta que catava estrelas para adornar seus versos nas retinas dos olhos dos meninos de rua, nos becos, no cais, nas poças d’água e sarjetas de Aracaju.

Respirando mais um ar de crônica, de memorialismo e de poesia, assinalaremos, a partir desta metade de texto, as linhas poéticas que perpassam a prosa de Nascimento em uma amostra de 03 (três) peças da série que vem publicando periodicamente no Jornal da Cidade:

1. A descrição da Rua do Barão (depois Rua João Pessoa e hoje Calçadão da João Pessoa), esquina com a Rua Laranjeiras, não é simplesmente um conjunto de cenas que os aracajuanos conhecem, mas uma ambiência cheia de romantismo e recordações, como tantas outras presentes em inúmeras obras da literatura universal. As pessoas na faixa etária dos 50 em diante vivenciaram momentos definitivos em suas vidas, quando crianças ou adolescentes namoradores. Esses tipos sociais citados pelo autor movimentam-se como personagens que trazem do passado para o presente paisagens que são relíquias, que transbordam boemia, luxo e nostalgia. No Ponto Chic aqueles homens públicos estarão para sempre sentados em nossas memórias, naquelas mesas de tampo de mármore, vestidos como se fossem personagens de Singing in the Rain e Casablanca. Conversavam animadamente, trocando ideias e bebericando uma taça de algum drink colorido ou uma Malzbier. Os nossos olhos de criança se enfiavam pela vidraça da bomboniere onde lindos e brancos suspiros e alfenins nos convidavam ao prazer e às delícias de docinhos. Pai, quero um, e ele metia a mão no bolso da calça, comprava uma sacolinha com os doces, até penso que para ficar bem na fita perante os amigos e companheiros de prosa nos bancos da João Pessoa. E o que é isto tudo senão poesia, senão acordá-la em nossa memória? Cumpre frisar da importância e riqueza documental na crônica Rua do Barão e em todo o conjunto de crônicas que li até esta data. O estilo do cronista e memorialista harmoniza ciência e poética, mantendo uma estrutura narrativo-descritiva equilibrada e cumprindo um fazer artístico-literário de raro alcance pelos maiores cultores das letras do país, a exemplo das crônicas de Epifânio Dória, detalhados scripts prontos para a produção de filmes de conteúdo voltado para a história de Sergipe, assim como na reportagem que faz da visita do Imperador D. Pedro II e a Imperatriz Dona Tereza Cristina a Sergipe. Ana Medina se encarregou, tempos depois, de engalanar a Ponte do Imperador, por onde o monarca adentrou festivamente em solo aracajuano.

2. A Rua Divina Pastora, no Centro de Aracaju é motivo da pena caprichosa do memorialista. Com a mesma segurança e simplicidade, evidenciando o domínio de uma linguagem clara, moderna e atraente para os seus leitores, Anderson Nascimento caminha conosco por endereços nobres e endereços populares, nos mostra o luar nos becos, as cenas dos problemas sociais nos bares, no mercado e no cais, fazendo evocar versos de José Sampaio e de Freire Ribeiro, este que cantou os engenhos, sinhazinhas e sinhozinhos, igualmente se dedicando às histórias tristes e dramáticas com a da personagem Bartíria, uma prostituta; e a da suposta amante do rei de Espanha, Pepita Tangil. E o que é isto tudo senão poesia, senão acordá-la em nossa memória? São elementos tipicamente inspiradores dos poetas e indispensáveis à construção de uma lírica encantadora, além do que, estão entranhados no imaginário do aracajuano uma casa de jogatina com o sugestivo nome de Cassino Imperial, dançarinas, prostitutas, o pianista Carlos Rubens e o violonista Antônio Teles; o “crooner” Hilton Lopes, a boemia da noite da pequena capital nordestina, o humilde “Cabaré de Geraldo”, sem orquestra, nem pianista famoso, mas uma vitrola com discos de vinil de cantores brega e seresteiros, como Evaldo Braga, Waldick Soriano, Altemar Dutra, Anísio Silva, Orlando Dias, Agnaldo Timóteo e Nelson Ned, o enigmático Alemão, inspetor de polícia civil, o “Carrossel de Seu Tobias” e a Feirinha de Natal. E o que é isto tudo senão poesia, senão acordá-la em nossa memória?

3. A terceira crônica versa sobre três entre os mais bonitos e importantes bairros da cidade de Aracaju: Grageru, Salgado Filho e Jardins. A palavra surge trabalhada em volteios e pivôs do balé clássico. Há uma música suave e bela entranhada no texto da narrativa e descrições envolvidas em objetividades que pontuam ora o aspecto histórico, ora o contexto político e a legalidade. Postados diante do Iate Clube de Aracaju, em seus tempos áureos, saímos caminhando e arrodeando por algumas quadras. Seguimos em frente enquanto o cronista dissertava, narrava, descrevia praças, objetos e pessoas, desde décadas passadas. Mergulhamos nas belezas e na ambiência poética daquela paisagem ornada pelas águas do Rio Sergipe, em manhãs de azul, sol, garças e o encantamento de pequenas embarcações. Cria-se uma sensação muito nítida de que estamos fora do tempo, em quarta dimensão, até que, de súbito, descobrimo-nos no tempo presente, diante do novo Calçadão da 13 de Julho. Outra vez Anderson Nascimento se destaca na produção de uma literatura de qualidade e com a demonstração de talento que o coloca entre renomados escritores, imprimindo realidade e despertando a imaginação de quantos o leiam. Descrevendo o alvorecer do Bairro Grageru, Anderson Nascimento se enleia à pujança da natureza. E o que é isto tudo senão poesia, senão acordá-la em nossa memória?

Para fechar este breve cenário das crônicas e textos memorialísticos da literatura andersoniana, deixamos registrado que tangenciamos levemente o gosto e o perfume poéticos que emanam dos textos do escritor. Entretanto, são diversas as abordagens possíveis a partir do mergulho nas linhas e entrelinhas dos textos sobre os quais nos debruçamos. Acerca da perspectiva histórica se dedicarão os historiadores, sobre a legislação que envolve posses de autoridades, eleições políticas, inauguração de espaços sociais e elevação de povoados a municípios lançarão um olhar os estudiosos da Lei.

REFERÊNCIAS

Candido, Antônio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras: 1996.

SIEBERT, Silvânia. A crônica brasileira tecida pela história, pelo jornalismo e pela literatura Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ld/v14n3/1518-7632-ld-14-03-00675.pdf Acesso em 30 de jul. 2016

FÁVERO, Afonso Henrique. Um memorialista e tanto. Disponível em: https://ri.ufs.br/bitstream/123456789/652/1/MemorialistaPedroNava.pdf Acesso em: 31 de jul. 2016

SILVA, Sérgio Amaral. O baú de Pedro Nava. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/o-bau-de-pedro-nava/ Acesso em 31 de jul. 2016

ATAÍDE, Regina Alves. SÁ, Vera Borges de. Os bacharéis e a imprensas do século XIX no Recife: a produção de Tobias Barreto. Disponível em: http://portalintercom.org.br/anais/nacional2015/resumos/R10-2982-1.pdf Acesso em: 1 de ago. 2016

SANTANA, João Rodrigo Araújo. A modernização do Rio de Janeiro nas crônicas de Olavo Bilac (1890-1908) Disponível em: http://www.ppgcs.ufba.br/site/db/trabalhos/882013112113.pdf Acesso em: 1 de ago. 2016

PEREIRA, Luana Gomes. Leitura, gêneros textuais e novas tecnologias. Disponível em: http://seer.canoas.ifrs.edu.br/seer/index.php/tear/article/viewFile/25/17 Acesso em: 1 de ago. 2016

taniameneses
Enviado por taniameneses em 03/08/2016
Reeditado em 03/08/2016
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