A LITERATURA DE CRACHÁ E A GERAÇÃO BOZÓ.
 
Às vezes, constato que venho refletindo numa redundância irrefreável sobre o mesmo tema. É a insubordinação à regra, a busca por mapear o esgotamento de uma única vereda, que me impele na observação de autores contemporâneos que se destacam a partir das Redes Sociais ou que são achados, misteriosamente, pela grande imprensa em meio a profusão infinita de textos da nossa época. Chamá-los de “autores” é uma delicada licença poética, pois a produção que exibem passa longe de qualquer definição de literatura. Mal comparando, são como pequenos empreendedores que abrem uma microempresa recheada com promessas inverossímeis, mas que conseguem angariar um número significativo de investidores e crescem na visibilidade. Assim se comportam os candidatos ao estrelato das Redes Sociais, dedicam-se a formar uma imensa teia de seguidores, divulgam-se intensamente em todos os canais possíveis da Internet, focam diariamente na escrita de aforismos ou sofismam sobre assuntos do momento. Cada degrau que os leva mais próximo ao Sol resulta numa população maior na aldeia virtual que fomentam, o que confirma a nossa carência de pajés. Suspeito que conseguem apoio pelas vias da compaixão e da empatia, em substituição à catarse que são incapazes de despertar. É um método que exige disciplina e sorte, pois nada garante o sucesso a todos que tentam alcançá-lo.
 
O objetivo supremo parece o convite ao sofá do Jô Soares, virar roteirista de TV ou aparecer em algum caderno relevante dos principais jornais do país, não importando de que forma cheguem ali. É inevitável nos lembrarmos daquele personagem do imortal Chico Anysio, que abanava o crachá repetindo o bordão “eu trabalho na Globo”, o inesquecível Bozó. É compreensível que qualquer artista queira ser reconhecido e amado, que deseje suprir sua carência pelo afago à vaidade, mas isso só é legítimo por uma necessidade íntima de se sentir parte de um conjunto e não pela medíocre ambição do status social. Jovens que não usam a pretensão da arte literária para exprimir o pensamento pela lapidação do verbo são apenas alpinistas vulgares que visam a ascensão midiática envernizada por uma suposta intelectualidade. Talvez, tudo seja consequência deste nosso século consumista, de absoluta idolatria pela evidência estampada nas vitrines e pelo dinheiro que permita ostentação. O que mais se multiplica hoje são projetos de escritores que praticam uma espécie de metaliteratura, que serve somente à autoexaltação. Perdem mais tempo correndo atrás de crachá em eventos do que escrevendo seja lá o que for.
 
Alguns desses escribas empresariais se empenham na defesa constante do que chamam de livro de entretenimento. A atitude se justifica, eles devem evitar que se desconstrua a fotografia do produto industrializado, feito para o mercado com objetivos exclusivamente comerciais. Ou seja, precisam defender a escrita plastificada, elaborada por moldes e modelos pré-estabelecidos, para que ela tenha utilidade é crucial que seja considerada literatura. Geralmente, são personagens folclóricos, apolíticos, se apresentam como malditos, iconoclastas, intelectuais precoces, filósofos, mas o que os denuncia é a escandalosa ausência de significado perene. Não se percebe tanto a ânsia de fama, de manchetes em jornais e presença em talk-shows, naqueles que se sustentam pelo valor artístico e pelo talento exercitado que ergueram através de um processo com raízes sólidas e honestas.
 
Tive a oportunidade de conhecer alguns escritores dessa novíssima geração “Bozó”. Travei amizade com um e outro, que nos amam ou odeiam na mesma proporção que os veneramos ou emitimos críticas, o resultado é que a maioria me bloqueou. A imagem imediata que passam é de arrogância. Apesar de jovens, querem demonstrar uma segurança e um conhecimento de causa que exala a impressão de estarmos frente a frente com devotados leitores da Wikipédia, nada mais. Recentemente, li um dublê de autor, num lampejo de vislumbre confessional que não foi autoficção, aconselhar ao escritor que não entende de publicidade desistir da escrita e virar livreiro. Ou seja, se definiu de maneira sucinta e eficaz. É provável que ele não tenha culpa por alimentar uma visão tão equivocada, o mercado editorial se transformou num polo de franquias que possam gerar grande margem de lucro com pouco investimento. Seguindo a trilha da tecnologia, priorizam o imediatismo do descartável que rende cifras e evitam apostar no risco do conteúdo que permanece.
 
Sim, o que você lê aqui é uma visão pessimista. Infelizmente, estamos num país em crise, com um sistema de educação pública que acenou brevemente para a inclusão, mas que já dá sinais de retrocesso; com livros que continuam com preços inacessíveis para o público de baixa renda. Ouço falar em literatura da periferia, mas é preciso filtrar com rigor o que há de realmente bom, excluindo os caricatos que prejudicam aqueles se expressam para trazer à luz a condição dos desfavorecidos em nosso mosaico cultural. Os que renegam a própria a realidade em que vivem são somente uma espécie a mais de ególatras que produzem volumes em série sem considerar que fábricas não almejam a originalidade. No fim, sobrevivem os clássicos que refletem a nossa crua humanidade e que não foram escritos consultando um manual de merchandising.
 
Ninguém com bom senso aposta no ocaso da literatura, é comum ouvirmos que em diversos períodos da história previram o apocalipse das palavras. É óbvio que há uma tendência forte dos gestores das grandes mídias digitais para nos empurrarem a comunicação que contenha a predominância do audiovisual, não creio que terão êxito completo. As editoras, por sua vez, buscam induzir os autores a se comportarem com supremacia diante da própria obra, promovendo o livro como coadjuvante de uma personalidade que também deve servir como incentivo às vendas. Levando em conta que a Internet revelou o maciço interesse da juventude pela escrita, mais até do que pela leitura, vale nos apegarmos à esperança de que a maturidade é capaz de corrigir o rumo das desprezíveis frivolidades juvenis, que o amadurecimento possa reconduzir os interesses e a sensibilidade a propósitos nobres. Afinal, foi com um livro que Darwin nos legou muito mais do que a sacrílega teoria da evolução, ele nos ofereceu um objeto de fé. Somos mais do que macacos.


















 
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 17/07/2016
Reeditado em 18/07/2016
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