DE POETAS E POESIA: DO CONCEITO CLÁSSICO À ERA DIGITAL

Tânia Maria da Conceição Meneses Silva

Vera Lucia Maia Santos

Milton Coelho

RESUMO

Este artigo objetiva estruturar um diálogo teórico com outros estudos sobre o texto poético, desde sua abordagem clássica e estendendo-se a questão da era digital e das publicações de textos literários na Web. Diante desta preocupação, estruturamos o texto a partir de dois pensamentos: o primeiro motivado pela declaração de Humberto Eco: Redes sociais deram voz a legião de imbecis; e o segundo, a partir do conteúdo da obra A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov. Para cumprir o proposto, o presente estudo apresenta as seções a seguir: a) o texto introdutório intitulado “De repente, não mais que de repente”; b) o texto fundamental, contendo as subseções: Poeta, quem é você: um imbecil ou um sujeito perigoso para a literatura?; O espaço para as vozes na Rede; Escritor: quem é você?; A responsabilidade dos estudiosos da literatura e dos críticos literários. Considerando as leituras empreendidas e a reflexão elaborada, depreende-se que, as transformações advindas do desenhar-se de um contexto fundado na Era Digital exigem mais leituras e reflexões, pois a realidade virtual impõe mudanças também no âmbito da literatura e da publicação de textos literários, em prosa ou verso.

Palavras-chave: Era Digital. Web. Literatura. Poesia.

ABSTRACT

This article aims to structure a theoretical dialogue with other studies on the poetic text from his classic approach and extending the issue of the digital age and literary texts publications on the Web. Given this concern, structured text from two thoughts: first motivated by the statement of Umberto Eco: “Social network have given voice to legions of imbeciles"; and the second, from the content of the work The danger in literature, Tzvetan Todorov. To meet the proposed, this study presents the following sections: a) the introductory text entitled "Suddenly, no more than suddenly"; b) the basic text containing the subsections: Poet, who you are: a fool or a dangerous subject for literature? The space for the voices on the network; Writer: who are you? ; The responsibility of scholars of literature and literary critics. Considering the undertaken readings and elaborate reflection, it appears that the changes resulting from the drawing up of a context based on the Digital Era require more readings and reflections as virtual reality also imposes changes in literature and publication of literary texts, prose or verse.

Keywords: Digital Age. Web. Literature. Poetry.

“DE REPENTE, NÃO MAIS QUE DE REPENTE”

Algo assim como se, “de repente, não mais que de repente” , uma multidão de pessoas se descobre poeta. Não se quer repudiar o que disse Humberto Eco, poucos dias antes de falecer, que a Internet teria dado voz a muitos imbecis. Entretanto, convém lembrar Todorov (2009) quando pressentiu a literatura em perigo. A preocupação de Todorov foi bem outra, distinta mesmo do que neste texto se coloca, o pensador centrou o seu estudo sobre o perigo da metodologia e estratégias didáticas de ensino da disciplina Literatura, calcadas em um olhar enviesado, priorizando informações sobre a biografia e a bibliografia dos escritores em detrimento de um trabalho focado no texto e no inesgotável manancial de mensagens que dele aflora.

A propósito do que afirmou Eco, de fato, um número nunca imaginado de indivíduos tem agora o direito a se expressar, o que antes seria inimaginável em uma sociedade de vozes seletas, selecionadas, tanto pelos críticos quanto por outras personagens da classe política e da classe intelectual, por quaisquer motivos que lhes convenham ou entendam como critérios de escolha. Um exemplo atual, veiculado em rede, envolve o nome de Temer, vice-presidente do Brasil e autor de uma publicação intitulada Anônima identidade, pela Editora Topbooks, 2013, em São Paulo, prefaciada por um intelectual de reconhecida competência na área jurídica e também poeta.

Refletindo sobre a literatura em perigo, meditamos sobre se causaria algum dano ao fazer literário versos bem distintos dos cultivados pelos clássicos, árcades, românticos, parnasianos. Ou se estariam os poetas modernos desprezando as obras de eruditos como Ovídio, Petrarca, Camões e de outros mais modernos, como Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Fabrício Carpinejar, este em atividade e autor do poema abaixo:

Relógio

Acerto o relógio pelo sol.

Percorro as dez quadras

de meu mundo.

As ruas são conhecidas

e me atalham.

O poema Relógio, com apenas cinco linhas de versos livres e não rimados apresenta linguagem simples em tom de diálogo interior. “Acerto o relógio pelo sol” é um verso que exprime a intimidade do eu poético com a natureza e o desligamento dos objetos do cotidiano, o próprio relógio que impõe normas, horários a serem obedecidos, encontros marcados, reuniões e burocracias. O mundo do poeta se resume à simplicidade das dez quadras, um contexto que lhe basta e é conhecido. O poeta se sente abraçado por aquele cenário. Todo o jogo poético, ou seja, a chave que torna o texto poético é a cena criada pelo verbo atalhar, que sugere ao leitor as ruas, carinhosamente íntimas, movimentando-se na direção do caminhante, o poeta.

Evidente que não estaríamos correndo risco e nem nos comprometeríamos à não percepção do que vem a ser um texto literário, essencialmente poético, quer seja ele clássico ou de tendências ultramodernas, em virtude da existência de uma pluralidade de moldes e de entendimentos de como se fazer poesia.

Por outro prisma, é suficiente um olhar sobre um soneto nos moldes clássicos para que alguém imediatamente o considere uma joia rara, ainda que esse avaliador da poesia de gramática poética não compreenda o mínimo. Ao ler um soneto, o primeiro encantamento que acomete o leitor é o da sonoridade construída com o esmero da rima e de outros recursos estilísticos inerentes a esse tipo de composição poética, como o é este exemplo parnasiano de Os cisnes, do poeta Júlio Salusse:

Os cisnes

A vida, manso lago azul algumas

Vezes, algumas vezes mar fremente,

Tem sido para nós constantemente

Um lago azul, sem ondas sem espumas!

Sobre ele, quando, desfazendo as brumas

Matinais, rompe um sol vermelho e quente,

Nós dois vagamos indolentemente,

Como dois cisnes de alvacentas plumas!

Um dia um cisne morrerá, por certo:

Quando chegar esse momento incerto,

No lago, onde talvez a água se tisne,

Que o cisne vivo, cheio de saudade,

Nunca mais cante, nem sozinho nade,

Nem nade nunca ao lado de outro cisne...

O soneto Os cisnes, de versos decassílabos, cria uma metáfora em que a vida se compara a um lago azul, mas que, eventualmente se vê sacudido por mudanças que o tornam um “mar fremente”. Dentro desse quadro, o sujeito poético se manifesta e assegura que, ao contrário do que a vida oferece de altos e baixos, aquele casal de cisnes de alvas plumas nada em tranquilidade durante todo o tempo, na constância de duas almas em um só corpo. Os versos suscitam a harmonia do casal em um nado sincronizado de beleza e quietude. As rimas mistas (pobres, como em brumas/plumas, e rara ou preciosa como em tisne/cisne) ajudam a compor o fundo musical para aquela cena amorosa representativa do ideal do amor eterno. O dia amanhece no lago que resplandece ao calor do sol. A paz é sacudida quando vem ao pensamento do eu poético a possibilidade da morte de um dos cisnes, uma morte nada calma, pois a água se avermelhará de sangue, misturando-se ao vermelho do sol. Como o substantivo cisne (masculino) tanto se refere ao macho quanto à fêmea, não se sabe, na composição de Salusse, quem restará vivo, se o cisne macho ou o cisne fêmea. Ficaremos para sempre com esta dúvida em mente.

O Clássico da poesia é, convencionalmente, representado por poetas da Roma e Grécia antigas: “Ao poeta grego antigo cabia o fazer bem, ao poeta moderno toca fazer o novo. São compromissos distintos: o primeiro está de mãos dadas ao gosto social, o segundo age, em certo sentido, contra ele”. (ANDRADE, 2008, p. 62). Os poetas da Antiguidade greco-romana marcaram não apenas a época e a sociedade em que viveram, mas continuam como modelos de virtuosismo poético, estudados e reestudados em suas produções sob todos os pontos de vista técnicos por teóricos da literatura de nomes encrustados na cultura universal. Mas, o nível de exigência da poesia clássica greco-romana não tem a força de subjugar o poeta moderno e nem o impede de frequentar vários estilos produzindo poesia de qualidade vista por parâmetros agora aceitos. Manuel Bandeira é um exemplo clássico de poesia da mais alta qualidade, produzindo em versos livres, como em

Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:

— “Passei o dia à toa, à toa! ”

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!

Passei a vida à toa, à toa…

Andorinha é um poema com apenas duas estrofes, cada uma com dois versos (dísticos). O título suave e forçosamente diminutivo sugere a leveza do pássaro. O leitor pode perfeitamente ver o eu poético, um ser solitário que se encontra dentro de casa, provavelmente cansado de alguma andança, quando comenta para o tu com quem dialoga e comenta estar a andorinha do lado de fora dizendo haver passado o dia à toa, à toa. O verbo dizer está sendo usado para o chilrar da ave enquanto a repetição “à toa, toa” é o recurso da repetição intencional que, mesmo sendo lida em silêncio, traz a voz do pássaro aos ouvidos do leitor. Em seguida, o poeta torna a usar da repetição, desta vez “andorinha, andorinha” para enfatizar que a cantiga dele é mais triste do que o triste chilrar do passarinho. Logo desfecha o pequeno poema com um verso que comprova a magnitude de sua tristeza, pois, enquanto a andorinha passara o dia à toa, ele, o poeta, passara a vida à toa. Consiste em tão pouco uma obra perfeita como o poema de Bandeira, no qual sequer um termo rebuscado aparece.

As formas clássicas de se fazer poesia permanecem em seus tronos de reconhecida idoneidade intelectual e de um fazer literário complexo e só ao alcance de eruditos e inspirados poetas. Em detrimento disto, modernamente, a sociedade se encontra em um momento grave de busca por mudanças de paradigmas, de quebra de protocolos, inclusive científicos. Interessados na fama, mesmo que fugaz, promovem o desmonte de nomes e obras da literatura universal, como se isto fosse uma mera forma de aniquilar o passado.

Depois do Clássico poético sucederam-se, no mundo ocidental, muitos momentos e manifestos em favor de novidades, de modelos ou antimodelos, mas que dialogassem com o tempo em que se vive e de acordo com o contexto onde os sujeitos se encontram inseridos. No Brasil, citamos a mais importantes dessas manifestações, a Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro de 1922, em São Paulo, e que quebrou tabus e incomodou a uma sociedade elitista e seletiva. Versos nunca tentados, personagens jamais mostrados e conteúdos proibidos socialmente foram a tônica da abertura da Semana, no Teatro Municipal de São Paulo. A partir daí muitos puderam expressar suas artes e se dizerem poetas, pintores, artistas plásticos, etc.

Vivemos a chamada Era Digital, ou ainda, Era da Globalização, Era da Informação, Era da Comunicação. Enfim, vivemos o clima da universalização, do respeito à diversidade e aos direitos de cidadania, da inclusão social, nada mais justo então do que o ingresso das diversas vozes no palco social.

Pensamos, sim, que a presente reflexão é necessária e nos posicionamos de tal forma a evitar juízos de valor, mas a questionar, como o fez Todorov sobre a literatura em geral e a respeito dos destinos da sublime arte poética em vista da renovação cultural e das transformações sociais em curso. E até da identidade assumida pelo poeta desta era e seu relacionamento com os irmãos poetas de outras eras.

POETA, QUEM É VOCÊ: UM IMBECIL OU UM SUJEITO PERIGOSO PARA A LITERATURA?

Assumindo a condição de poeta, poderíamos pensar ser imbecis ou perigosos para a literatura no instante em que, como a maioria dos versejadores, queremos saber o que é a nossa poesia, como somos vistos socialmente, se a nossa voz é necessária, se a nossa obra tem algum valor social e estético. Ou se lançamos “versos” por aí, versos free lancers, versos easy riders.

É próprio da alma do poeta não ter a certeza de sua condição de ser inspirado. Essa inconstância tem feito com que poetas importantes destruam poemas, num rasgo de extrema dúvida e autoflagelamento, arrependidos de tê-los dado à luz. David Cohen (2014), em Poemas que desisti de rasgar, alude ao próprio fazer poético. Para David, isto faria parte do trabalho do autor, trata-se de um processo de auto avaliação, quando os escritores selecionam o que consideram válido e o que não consideram, sempre fazendo e refazendo em busca da satisfação quase inalcançável, selecionando o que deve ser guardado e o que merece ser descartado.

O poeta, na Antiguidade Clássica, era considerado uma espécie de deus, um ser misteriosamente superior e com acesso direto às divindades que lhes encarregava de transmitir mensagens em uma linguagem muito diferente da corriqueira, só entendida pelos deuses ou por outros poetas.

A modernidade torna-se reflexo do tempo em que se passa, ou seja, cria-se um estilo de arte, e, consequentemente, de literatura, a ser desenvolvido a partir de meados do século XIX, marcado pelo ineditismo no tratamento de temas literários de representação do homem e da sociedade, assim como pelo uso cada vez mais acentuado da escrita, em detrimento da oralidade marcante da tradição clássica. (FERNANDES, 2008, p. 121).

O poeta na Era Digital é um ser novo, ainda para ser estudado, compreendido, mas é o ser que fala uma linguagem diferenciada e nem sempre bem aceita em uma sociedade afeita a objetividades e exatidões, padronizações e praticidades. A liberdade de que nasce dotado o ser poeta é sempre incompreendida, até por ele próprio, mesmo assim tem consciência sobre os seus poderes de expressão e, até quando se diz em crise por não saber com clareza o que é ou porque é poeta, não perde a superioridade de sua fala. A poesia é capaz de qualquer coisa com a palavra oral ou escrita, com o gesto e as imagens.

A poesia tem um vocabulário espontâneo, despretensioso e sem julgamentos, onde o poeta cria novos vocabulários ou faz ressurgir outros esquecidos. Esse universo de possibilidades da criação da escrita, e de significado é aberto, subjetivo e, por isso mesmo individual. O vocabulário da poesia é sem pretensão, livre para criar e recriar, inventar e desvendar horizontes desconhecidos do mundo, uma vez que, na poesia lírica, não existe passado nem futuro. O poeta não tem compromisso com o mundo da sua imaginação, sendo ele o criador de um mundo que deveria existir. (LIMA, 2012, p. 38)

Sendo assim, seria plausível compreender que, uma vez criador e dono de sua criação, mas que a distribui, o poeta de hoje goza de ampla liberdade e pode estar criando um novo mundo sem que disto, tanto ele quanto os outros poetas e indivíduos se apercebam. Nessa condição individual e superior, o poeta está imune aos julgamentos de quem não é poeta, fazendo-se único pelo estilo de fazer poesia.

O ESPAÇO PARA AS VOZES EM REDE

O espaço aberto na Rede realmente permite um exercício de participação e compartilhamento nunca sequer imaginado. A abertura praticamente irrestrita gera um minadouro de comentários, textos, som e imagem. Tornou-se acessível escrever, compor, executar, cantar, dançar e ser visto, comentado, criticado, veiculado. Há registros online sobre artistas de diversas áreas, principalmente entre músicos e cantores que, através da simples veiculação de um vídeo, viralizam na Rede e, em consequência disto, além de se tornarem famosos, igualmente se tornam ricos, vendendo livros e discos. O sucesso da poesia não é comparável ao da música, ainda que, tanto o arranjo musical e a letra se apresentem despretensiosos, incoerentes, descuidados. A fama, entretanto, é efêmera e a notoriedade não é um sonho facilmente realizável.

Essas situações novas criadas no mundo digital conseguem incomodar críticos exigentes e também plateias tradicionalistas. A inversão de valores artístico-estético-culturais mostra-se muito real e começa a gerar redemoinhos e opiniões as mais diversas. As concepções modernamente produzidas sobre inclusão e respeito à diversidade também trabalham no sentido de valorizar toda e qualquer manifestação das artes, das culturas, quer individuais ou coletivas. Seria, então, o caso de se pensar, no caso do texto poético, que as obras mais antigas teriam por destino serem estocadas em alguma biblioteca, mesmo que virtual, como uma espécie de sacrário a que, querendo ou não se deve respeito? A exemplo de como acontece com a estatuária barroca ou obras protegidas entre as paredes de um museu?

Acreditamos que não se poderia exercer tal atitude, mesmo porque, em primeiro lugar, as mais representativas obras da literatura estão em repositórios virtuais e, em segundo lugar, os poetas de agora precisariam beber na fonte estética e inspiradora das obras dos mais requintados cultores da poesia, tanto do Classicismo, quanto do Romantismo e todas as outras tendências literárias, manifestando-se em um discurso, além de único, plural nele mesmo e entrecruzando-se em intertextualidades. Passam assim a conviver romance e poesia, ficcional e poético, o narrativo e informativo, “e em mútuas invasões de cuja realidade também não parece poder isentar-se o discurso filosófico. A alma clássica classificaria o universo literário contemporâneo como um imenso hospital de loucos”. (PIMENTEL, 1997, p. 18-19).

Por um lado, temos, nos dias atuais, uma escolarização que, invariavelmente, tem prestigiado, quase que unicamente, a linguagem poética daqueles poetas que inscreveram seus nomes e obras no tempo. Por outro lado, uma nova geração se mostra na Internet com o seu exercício poético cotidiano, misturando-se a outros da geração passada que, durante a juventude, não encontraram espaço para a publicação de suas produções.

A publicação de obras em papel sempre envolveu e ainda envolve orçamentos distanciados da maioria dos bolsos. Além disto, as obras passavam por crivos impiedosos do ponto de vista da crítica literária que, muitas vezes, se negava a dar à luz romances ou livros de poesia. Consta que José Lins do Rego passou pelo constrangimento de ter sua obra recusada por três editoras, sendo depois aceito pela Andersen Editora, que publicou seu primeiro livro, O menino de engenho, com uma tiragem de 2000 exemplares, custeados pelo próprio Lins do Rego. (BRITO, 2008).

Para muitos que ousaram se atrever no campo da produção literária, o sonho de ver seus nomes em capas de livros nunca se tornou real.

Atualmente, a competitividade e o interesse no lucro pela sociedade capitalista, considerando-se, inclusive, as perdas trazidas pela abertura da Rede, no que diz respeito ao parque gráfico, este vem se reinventando e tomando providências no sentido de se manter no mercado. Para tanto, se tem facilitado a publicação em papel, correndo na retaguarda das publicações online (e-books) e proferindo o discurso não muito convincente que tenta salvar o gosto pela anatomia do passar de páginas e pelo cheiro bom do livro de papel novinho em folha. “É importante revermos o conceito de livro para entendermos o processo evolutivo deste. O texto eletrônico não encerra a vida do livro impresso, nem a existência da leitura, mas abrange uma transformação nas formas de construir significados” (PAULINO, 2009, p. 11).

Quanto aos critérios excludentes e pareceres críticos de autoridades em literatura, estes praticamente inexistem neste século de economia agressiva e, para publicar um livro, o suficiente é dispor de alguma quantia ou de um patrocinador. Nesse passo doble, lançamentos de livros são a ordem do dia. O que se sabe da observação dessa avalanche de publicações é que o próprio mercado que a incentiva e vende é o mesmo que logo publica outros livros, esquecendo-se dos anteriores e alimentando o modismo dos eventos de lançamentos de obras. Enquanto isto, tais livros ou são apenas folheados e abandonados logo às primeiras páginas, ou são doados a escolas. Ler tornou-se algo superficial, ligeiro e sem compromissos, apenas uma distração para os que sofrem de insônia.

A poesia da atualidade adapta-se, surpreendentemente à precisão e à velocidade da era digital. Ela é em geral curta e não descarta as possibilidades da utilização do som e da imagem. Escreve-se poesia na tela do computador, na folha do Word e, em apenas alguns cliques, o texto está à vista e recebendo manifestações dos internautas. Talvez isto tenha alguma influência sobre o surgimento de milhares e milhares de poetas online, participando diretamente deste mundo novo e criando nele um mundo de poesia.

ESCRITOR: QUEM É VOCÊ?

A nova era trouxe alterações nos conceitos de escritor, de texto literário, de literatura e de poesia. Durante longos séculos, um escritor seria um intelectual sob todos os pontos de vista, completo. Ou seja, era um indivíduo de muito conhecimento e, mais ainda, de grande erudição, que conhecia muito bem tanto a sua língua como teria domínio sobre outros idiomas. Era alguém que sempre apresentaria uma resposta incontestável sobre os mais diversos aspectos da linguagem e de seus mecanismos mais sofisticados. Para ser aceito como tal, o escritor passaria pelo crivo de críticos e doutos no campo da literatura que lhe avaliariam o desempenho na escrita, a correção, a coerência, a harmonia textual, sua capacidade criativa e originalidade, entre outros itens.

Entretanto, para o eminente crítico sergipano, Sílvio Romero, a expressão da literatura é tão ampla quanto foi considerada pelos críticos e historiadores alemães. Equivale a dizer que, quaisquer manifestações da inteligência de um povo, sejam relativas à política, à economia, à arte, e às criações populares, diferentemente de como se supunha no Brasil, “somente as intituladas belas artes, que afinal cifravam-se quase exclusivamente na poesia”. (ROMERO, 1960, p. 60)

Sobre as características do texto considerado literário:

Entende-se, sim, que um texto literário é bom porque é bem escrito, porque trabalha a linguagem de forma criativa, porque utiliza os interstícios para enriquecer as possibilidades de leitura. O que se pretende evidenciar é que a literatura não é um fenômeno independente, ela é criada dentro de um contexto; numa determinada língua, num determinado país, numa determinada época, onde se pensa de uma determinada maneira, carregando em si marcas desse determinado contexto. (PALMA, 2007, p. 69-70

A sociedade foi evoluindo, mas não necessariamente para melhor. Chegamos a um ponto em que a escrita abandonou o eruditismo, o que, no caso dos exageros foi um avanço, mas em contrapartida, avançou-se para um quadro às vezes caótico do uso da linguagem, transportando, principalmente, as marcas do falar comum/popular e desleixado para o campo da escrita. As críticas não faltaram, mas, a voz mais alta é a da diversidade e do respeito às inúmeras manifestações como sinal de inclusão e acatamento às descobertas de estudiosos da linguística que trataram de valorizar o coloquial.

Praticamente, a geração de jovens nativos digitais domina um quase idioma surgido junto com o uso dos computadores com acesso à Rede, o que também tem sido motivo de muitos debates promovidos por guardiães do vernáculo e apaixonados pela língua portuguesa que defendem o respeito ao modelo muito tradicional e arraigado às suas origens, quer escrita quer falada. Em detrimento desta atitude conservadora, sabemos que o falante é quem comanda a língua, modificando-a livremente pelo uso diário.

Com o surgimento e o avanço inexorável da tecnologia digital, o livro de papel sofreu revezes e tem sido motivo de intensas campanhas que visam a sua valorização e preservação. Por isto mesmo, aquele encanto antigo de ver o nome na capa de uma obra foi perdendo sua razão de ser e dando lugar aos e-books.

Aos autores, cabe o desafio de adaptação do processo de criação de conteúdo editorial ao novo universo digital. Eles passam a dispor de novas possibilidades de expressão e transmissão de suas ideias por meio de um novo produto, que lhes oferece ferramentas de trabalho adicionais, cujo uso e aplicação também vão requerer aprendizado tanto de autores como de editores. Projeta-se uma mudança tão radical, que o conteúdo final da versão impressa, quando houver, será definido depois da concepção do livro digital, ou seja, depois da exploração dos recursos e possibilidades adicionais exclusivas da versão digital. O livro impresso, em muitos casos, passará a ser um produto derivado de um novo produto, o livro digital. (MELLO, 2012, p. 447

Um fenômeno interessante aconteceu, a indústria gráfica conseguiu de alguma forma manter os livros nas prateleiras das livrarias e sob um marketing promocional intensivo e de qualidade. O mesmo acontece com as revistas e os jornais em seus formatos impressos. Entretanto, convivemos com pessoas que ainda acreditam ser escritor aquele que publica e lança livros. Experimente alguém dizer sou escritor e a pergunta virá incontinenti: Onde posso comprar seu livro? Cria-se, nesse impasse, duas situações ainda a serem estudadas com mais profundidade, a de uma nova conceituação de escritor. Mesmo considerando-se que, no atual contexto, livros publicados em papel se encontram também disponíveis online.

Quanto ao livro de papel, não se pode negar que continua, mesmo entre os escritores jovens, mantendo uma aura de importância e de glamour. Como se previa, se harmonizam as duas realidades, a do passado e a do presente. Quanto ao futuro, este parece também passível de uma reflexão diante de um mundo em que a tecnologia se inventa e reinventa trazendo o futuro mais impensável para o presente.

A RESPONSABILIDADE DOS ESTUDIOSOS DA LITERATURA E DOS CRÍTICOS LITERÁRIOS

Mencionamos Todorov (2009) no início deste estudo e isto serve como ponto de apoio para a questão da crítica literária, da preocupação com os destinos da literatura. Para esse estudioso, o professor precisa formar, antes do crítico, o leitor. Ainda propõe que sejam considerados os sentimentos, as emoções, os significados e percepções a partir da leitura. Todo o contexto da obra quanto o da vida do autor importam, mas não em primeiro lugar, a prioridade é para o texto em si, para as distintas mensagens que ele contém e que precisam ser sentidas, traduzidas e apreendidas. Olhando de outro ângulo, o conhecimento e domínio de tantas técnicas de análise de textos literários afugentaria estudantes e não os permitiria a fruição da beleza e dos significados mais profundos do texto, dos sentimentos, como sugeriu Todorov. E nem a leitura transforma estudantes em escritores, em contrapartida, a expectativa por um escritor aumenta na proporção da constante leitura.

No caso da poesia, por exemplo, há diversos moldes, sendo alguns deles de difícil compreensão e domínio, como é o caso do soneto clássico. Os poetas enfrentam dificuldades para acomodar a inspiração dentro dos versos de acordo com a métrica; e estudantes demonstram mais dificuldades ainda, mesmo porque a gramática poética é muito complexa.

No que concerne à poesia veiculada em Rede, observa-se uma profusão de poemas, sendo questionada a relevância de muitos deles, tanto pela magreza do tema, quanto pelo seu trato e distância da linguagem poética, de características muito próprias. Na verdade, muitos que se acreditam poetas estão veiculando suas vozes, confundindo-as com queixumes, dores de cotovelo e simples mensagens amorosas sem qualquer cuidado. Entretanto, nem por isto os autores mereceriam ser chamados de idiotas e nem de perigosos para a literatura. Possivelmente algum fenômeno de acomodação acontecerá, separando o que tem alguma qualidade do que qualidade alguma tem. Não se tirará dos internautas a oportunidade de expressar-se como podem, por certo eles não se propõem a desmentir a afirmação de Humberto Eco.

Diante das novidades desta era, não se tem ainda como pensar ou determinar um futuro para a poesia, trata-se de um exercício de inútil futurologismo. Boa ou má, refinada ou não, rebuscada ou informal, clássica ou futurista, no papel ou na Web, a poesia é, antes de qualquer coisa, sentimento. O tempo segue sua rota inexorável e isto vai impor ainda mais mudanças e realinhamento de conceitos. Da mesma maneira como convivem os livros de papel e os e-books, podemos supor que as diversas formas de fazer poesia convivam democraticamente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“De repente/não mais que de repente” o mundo se transformou e todos os conceitos entraram em debate para uma releitura. Os debates despertam a reflexão e fomentam as inferências. Refletimos sobre a literatura poética no contexto das tecnologias e das mudanças de trato e de abordagens temáticas. Foi possível perceber que, nesse campo, o da palavra, encontramo-nos surpresos e atordoados, assim como o estão em todos os campos do conhecimento humano.

A arte, em especial, pelas suas características de subjetividade e de liberdade, procura entender-se e descobrir o que faz na sociedade, que papel desempenha. Vivemos em um mundo de violência e egoísmo, de salve-se-quem-puder e a arte concorre para que o homem se sensibilize, tanto pelos fatores externos e estéticos de uma obra de arte, quanto pela capacidade que tem cada arte de resgatar o mais profundo do espírito humano, da capacidade única que tem o homem de construir, criar. O artista faz sua obra tocar os sentidos físicos do homem fazendo-lhe despertar na mente o prazer da fruição do Belo, a consciência de sua dignidade. A arte alimenta a psique do criador e daquele que contempla sua obra.

Tentamos caminhar para a construção de um planeta ético e que respeite a natureza. As obras de arte são potenciais objetos inspiradores do respeito e da admiração pelo Universo. A música apura os ouvidos, a pintura inunda os olhos, a literatura enobrece a inteligência e a poesia é o nosso diálogo com o Criador.

Se a arte se apresenta ora em uma tela, ora em uma partitura, em um arranjo musical ou em um poema, ela cumpre as suas funções e os artistas, por sua vez, se doam à humanidade. As diversas manifestações de doação são visíveis, audíveis e palpáveis por toda parte para onde se lance um olhar. Entendemos, pois, que escritores e poetas, ao criarem suas obras, antes de pensar em gravar seus nomes para a posteridade, eles remetem o pensamento ao outro e à vontade que eles sentem em comunicar-se doando-se. Claro que o fator econômico quebra um pouco a beatitude dos artistas, pois o que a sociedade atual nos ensina é o apego ao “vil metal” que corrompe o artista e a arte. Produz-se arte pensando em quanto seria possível faturar em cima da obra, produz-se em série e sem pensar em qualidade estética, perfeição, Belo.

No caso da poesia, tudo se mostra mais complicado, nesse aspecto relacionado à economia, e já é bem conhecida a constrangedora afirmação de que “poesia não vende”. Independentemente de qualquer coisa, a arte utiliza os meios disponíveis e os artistas continuam produzindo e resguardando seu papel na sociedade.

Quanto aos que se dedicam a estudar as manifestações artísticas e à crítica da literatura e do fazer poético, esses também criam suas obras técnicas, questionam-se e lançam suas preocupações, obrigando-nos a levar adiante, quer no papel de criadores das artes, ou no papel de estudiosos, a estarmos atentos às nuances do novo horizonte ainda um desconhecido a brincar conosco de esconde-esconde.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Flávio Cavalcante de. A transparência impossível: lírica e hermetismo na poesia brasileira atual. 2008. 331 f.: il., quadro. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) – Universidade Federal de Pernambuco.

BRITO, Antonio Cézar Nascimento de. Menino de engenho e a dialética de uma literatura

que se autoquestiona. Dissertação (Mestrado). Brasília: UnB, 2008.

COHEN, David. Poemas que desisti de rasgar. Editora 5W, 2014.

FERNANDES, José Guilherme dos Santos. Teoria do texto poético. Belém. EduFPA, 2008, v.3.

LIMA, Jair Bontempo de. A poesia: sociedade, leitura, interpretação e ensino. Revista Ícone

Revista de Divulgação Científica em Língua Portuguesa, Linguística e Literatura. Volume 09 – janeiro de 2012

MELLO, Gustavo. Desafios para o setor editorial brasileiro de livros na era digital. BNDES Setorial 36, 2012, p. 429- 473.

PALMA, Moacir Dalla. Discurso literário: linguagem intrinsecamente diferenciada ou texto institucionalmente determinado? Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários. Volume 9 (2007). Disponível em: < http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol9/9_7.pdf>. Acesso em 10 abr. 2016.

PAULINO, Suzana Ferreira. Livro Tradicional X Livro Eletrônico: a revolução do livro ou uma ruptura definitiva? Hipertextus, n.3, jun.2009. Disponível em: < http://www.hipertextus.net/volume3/Suzana-Ferreira-PAULINO.pdf>. Acesso em: 08 abr. 2016.

PIMENTEL, Manuel Cândido. Elementos para uma fenomenologia literária do texto filosófico. Philosophica 9, Lisboa, 1997, pp. 7-31.

ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 6ª ed. 5 vols. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.

ROSA, João Guimarães. Tutaméia – terceiras estórias. 2ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio. 1968.

TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Tradução Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.