Mordor: agora cor de rosa!

Linha fina: A mistura entre bem e mal está cada vez mais profunda na literatura fantástica e torna difícil distinguir quem é o herói, quem é o vilão e por quem devemos torcer. Qual é a sua escolha?

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Na literatura fantástica talvez não exista um lugar tão emblemático sobre os riscos do mal forte, ameaçador e sem controle do que as pacatas paragens de Mordor. Para quem não conhece esta bucólica região retratada na série de livros e filmes do "O Senhor dos Anéis", basta saber que se refere a um lindo latifúndio administrado por Sauron, personagem de caráter duvidoso, criador do UM anel e carrasco dos povos da Terra-Média. Um ser poderoso, cruel e que na trilogia escrita por J.R.R. Tolkien era retratado como um assustador olho sobre a torre de Barad-dûr, uma órbita dia a dia a garantir que seus escravos orcs continuassem a trabalhar incansavelmente para que ele dominasse o mundo e subjugasse homens, elfos, hobbits e anões.

Sauron é um exemplo claro do mal a ser combatido, um mal que une em batalhas épicas os “bons”, os heróis, os covardes, os falsos e até mesmo os hipócritas. É o Mal com “m” maiúsculo, um ser sem piedade, sem escrúpulos e que fará o que for preciso para alcançar seus objetivos assustadores, uma encarnação do que em nosso mundo seria rapidamente reconhecido como: demônio. Naturalmente ele não está sozinho na literatura, há outros personagens clássicos, como por exemplo, a Feiticeira Branca do livro "O Leão, a feiticeira e o guarda-roupa", da série As Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis.

Ainda que os personagens sejam diferentes em seus objetivos: Sauron busca o extermínio de seus desafetos que não aceitam seus intentos autoritários de dominação e subjugo irrestrito de toda a vida, enquanto a Feiticeira procura a manutenção de seu poder contra os “filhos de Adão” - crianças de nosso mundo levadas à Nárnia para derrubá-la do trono -, ambos os vilões têm em comum algumas características ruins, consideradas o pior da natureza humana, são: assassinos, cruéis, mentirosos, manipuladores, torturadores etc.

Em complemento, como não apresentam bondade em qualquer nível, também acabam por não gerar piedade por parte do público, que sedento, devora páginas e mais páginas, minutos e mais minutos de filme, para rir do esperado e justo fracasso final desses personagens.

E é nessa dança, no conflito permanente entre o bem e o mal, que por séculos, a literatura, artes e religiões se desenvolveram. E, mais atualmente, o cinema, os quadrinhos e as séries de televisão.

Só que as coisas mudaram e basta ser um observador minimamente atento para perceber que a fronteira entre os representantes do mal e os humanos e/ou heróis está cada vez mais difícil de ser definida.

Mesmo assim um bom leitor destacaria sem dificuldades, e com razão, que o conflito “mocinhos” x “bandidos” não é uma regra regada a puritanismo. A “Sociedade do Anel” e os “filhos de Adão”, são grandes exemplos de grupos de heróis com todo o tipo de fraqueza humana. É o que os torna mais reais, afinal, humanos perfeitos não são o padrão e nunca serão. E em tempos de público mais crítico, se fossem caricaturas da bondade, a chance de serem rejeitados, por demasiada perfeição, seria imensa. Uma humanização que alcança seu ápice em séries do gênero grimdark, ou anti-tolkien, em que difícil é se topar com uma nobre alma em meio a tanta depravação.

Assim, também não é novidade a humanização de personagens maléficos ou o caminho contrário, a deturpação de personagens com potencial bom. Frankestein, de Mary Shelley, é um exemplo clássico desse segundo caso. Um ser criado pela arrogância do homem que incapaz de se integrar e adaptar a uma sociedade que o rejeita, decide morrer levando consigo seu criador. E para isso inicia um plano regado a muito derramamento de sangue, mas que leva o leitor a torcer por seu sucesso, ou seja, contra as vítimas ou “vítimas”.

Então? Se não é uma novidade “heróis” com características maléficas e vilões com características heroicas, qual é o ponto? Simples! Hoje vivenciamos uma situação ímpar no nível de aproximação, mistura e inversão entre o que é mal e o que é bom e/ou heroico. Basta uma rápida olhada, temos bruxos bonzinhos e dignos na série Harry Potter, vampiros que não tomam sangue humano em Crepúsculo, demônios que lutam pela proteção de humanos em filmes como Hellboy e, até mesmo, zumbis mais humanos do que os próprios humanos em filmes como Fido. Ok! O último exemplo é uma sátira do começo ao fim, mas onde está o mal com “m” maiúsculo?

Hoje nossos heróis são assassinos que matam os inimigos ao invés de detê-los, são torturadores de prisioneiros ou potenciais fontes na busca por informações e vivem sob a lógica de que os fins justificam os meios, ou seja, que se o objetivo é bom, o que for feito para ser alcançado, por mais baixo e errado que seja, é desculpável.

Trata-se de uma realidade em que muitos dos maiores heróis dos quadrinhos e até as série de televisão chutam contínua e alegremente as bases religiosas morais, legais e humanísticas em que se ergue a sociedade ocidental. Padrões que custaram a vida de mártires, soldados defendendo as fronteiras de invasões islâmicas e a profunda reflexão, dedicação e produção intelectual de monges, teólogos, filósofos, reis e incontáveis estudiosos. Homens e mulheres que dedicaram suas vidas a formar a base de valores que se localizam no cerne da Alta Fantasia não-grimdark e têm sido descartados como "tolos" ou mesmo "infantis".

Além disso, ainda no contexto fantástico, heróis de quadrinhos são darks, cruéis, egoístas e em busca de alcançar o que acreditam ser a justiça passam por cima de quem ficara na frente, seja o Coringa, seja a Constituição.

Em contrapartida, os símbolos tradicionais do mal estão “lights”, fofos e conquistam multidões de leitores e cinéfilos, que torcem pela vitória de lobisomens, vampiros ou bruxos. Os mesmos fãs que não escondem, o fervoroso desejo de se transformarem eles mesmos nos tais personagens originários das trevas e “encarnadores” tradicionais do mal e do medo. Pessoas que, um tanto longe da fantasia, mas ainda no universo fantástico, tendem a ser mais simpáticos a Darth Vader do que de Luke Skywalker.

Na prática, o mal com “m” maiúsculo está sendo integrado ao perfil dos heróis e abandonado pelos bandidos. A quem iremos torcer? A que serve essa inversão de valores? Qual o futuro de uma sociedade que se deleita com o mal praticado por aqueles que deviam praticar o bem?

E quais seriam os motivos dessa mudança de preferências, em que o cavaleiro perde a concorrência para o ogro? Seria um contexto social relativista em que certo e errado se tornaram uma questão de conveniência? Uma realidade em que a política mostra ser tão humana e falha como as pessoas que a fazem? Um cotidiano tão cheio de pressões e exigências em que chutar o pau da barraca, ainda que na ficção, por meio de magia, seja uma saída irresistível?

Bom, provavelmente cada um tem sua resposta, mas o fato é que, hoje, muitos leitores abraçariam com carinho um lobisomem desconhecido e mal encarado sem pensar, enquanto um herói, educado e elegante, receberia, apenas por educação, um desanimado aperto de mãos.

E qual será o destino dessa estrada? Aonde a lógica por trás de roteiros e histórias, que optam por descartar o conceito “do mal verdadeiro ou por opção”, e tornar os inimigos e vilões meras vítimas de desequilíbrios mentais, iniquidade social, tecnologias defeituosas, má reputação imerecida entre outros, irá levar o universo do terror, fantasia, ficção científica e afins?

A resposta para o destino da literatura fantástica e suas companheiras audiovisuais (cinema e televisão) não está escrito. Vivemos em um mundo de mudanças rápidas em que a cultura é dinâmica e devora a si mesma o tempo todo. A moda, em todas as suas vertentes, não dá trégua, e o que era “out”, logo vira “in”. Na literatura, os altos e baixos também não são definitivos, tanto que, já há várias linhas e caminhos contrários a uma maior identificação do público com os promotores do mal, e que retoma a oposição entre vilões e heróis.

Um exemplo, desta volta às origens da ficção, é a série de quadrinhos 30 dias de noite, escrita por Steve Niles e pintada por Ben Templesmith, em que vampiros se aproveitam de uma cidade próxima ao círculo polar ártico para fazer um mega lanche humano, já que a região, uma vez por ano durante o inverno, enfrenta 30 dias seguidos de contínua escuridão. Nesta cidade do Alaska, chamada Barrow, um homem e sua esposa, representantes locais da lei, terão de superar o medo, organizando uma “resistência” e enfrentando o inimigo em defesa a outras pessoas.

É o mal na figura do vampiro, que tem uma noite gigantesca como vantagem, contra humanos despreparados, heróis eleitos pela necessidade, que da desesperança, fiéis a suas responsabilidades, desenvolverão a coragem necessária para salvar seus semelhantes.

A produção literária brasileira, nesse contexto, reflete bem a indefinição de rumo do setor. Alguns livros valorizam a tradicional divisão de bem e mal, enquanto outros, sem piedade, com muito uso de liberdades poéticas e muito a desenvolver em narrativa, transformam anjos em sanguinários opressores de um Deus que dorme, vide o grosseiramente escrito "A Batalha do Apocalipse", de Eduardo Spohr.

As fronteiras entre o bem e o mal, o certo e o errado, nas linhas ficcionais do fantástico passam por um momento de profunda neblina, que deverá ser explorada, vencida e dissipada por meio do filtro e crivo dos mais diversos públicos. Ainda sim, uma coisa é certa, houve tempo em que Mordor era sinônimo de mal, morte e perdição, agora, nada impede que se torne um pequeno paraíso cor de rosa repleto de orcs, que com certeza, não escaparão de ser humanizados e perdoados por suas atrocidades.

E você? Está mais para Gandalf ou Sauron?