A POESIA EMBRIAGADORA DE JOSÉ LIMA SANTANA

Tornei-me suspeita para comentar a poesia de José Lima Santana. Dizendo melhor, eu já estava na condição de suspeita. Agora a suspeição dobrou. Suspeita porque o poeta foi meu aluno no Ensino Médio. Aluno da disciplina Língua Inglesa. Então, não se pode dizer que de mim herdou algum tesouro lusitano. A suspeita dobrou porque agora estou em sua obra como revisora e, mais ainda, presenteada com o primeiro poema, Alvorecer. Tem mais: a data desse poema coincidentemente é a do meu aniversário. Assim não vale, poeta, é grande demais pra mim, chega a ser sufocante a emoção.

A partir deste parágrafo me desnudo das roupas de amiga, professora, revisora e dona de um poema, o de abertura da obra Redemoinhos. Penso imediatamente nos críticos. E me vem à mente o maestro André Rieu, que disse por aí jamais haver encontrado uma estátua em homenagem a qualquer um deles. Penso também que críticos perdem tempo em procurar defeitos nas obras que analisam. Aliás, na de José Lima Santana, os críticos perderiam, além de tempo, a fruição poética, o Belo. Crítico parece essa gente chata que fica catando uma vírgula fora do lugar para crucificar revisores. Pior para os críticos e pior para os caçadores de vírgulas, pois só isto sabem fazer.

Quero comentar o poema Alvorecer. Coloco-o, então, aqui: “Da janela / Eu vi / Sonolento / A aurora / Sangrando / O mundo. Vejam comigo que o poeta está olhando o mundo pela janela enquanto faz uma declaração dessa visão. O poeta está sonolento. Quem sabe uma noite indormida, esperando a Aurora. Quantas Auroras teria esperado o insone poeta? E o que viu foi Aurora sangrando, sangrando ela mesma e sangrando o mundo que o poeta via. O poeta nos aceita em sua janela insone e abre o horizonte com as mãos para que vejamos o vermelho da Aurora cortando e tingindo o mundo. Que quadro tão bem disposto em tintas e sangue de palavras. Que tanto de poesia em apenas seis versos. Quanto nos diz cada verso, especialmente aqueles de uma só palavra: Sonolento/Sangrando. O poeta, descubro agora, também sangrou auroras. E tingiu a janela e o mundo. O poema cabe o Cosmos. Cabe a Aurora. O poema amanhece nos olhos sonolentos do poeta.

Difícil é escolher por onde continuar a tecer comentários sobre a poesia de José Lima Santana. Posso dizer a poesia Limense? Santanense? Prefiro dizer a poesia zelimasantanense. Meu Deus! Retorno aos poemas e fico ali, subjugada, sangrando como a Aurora. Preciso de forças para tomar decisões. Tomo-as, enfim e pergunto se você já leu algo tão bonito, uma espécie de presépio à luz do deserto, como Mãe e filho? Há milhões de estrelas sobre os versos de Mãe e filho. Estrelas-lágrimas-diamantes-cristais pungentes, avassaladores.

As palavras na tela do computador! É a primeira vez que as vejo tão catitas em seus vestidinhos de voil e luz, muita luz por onde somem as borboletas. E as manhãs têm asas azuis. Manhãs de asas azuis, como se cria uma figura de tanta força, ó poeta?

E de que forma imaginar um cemitério assim frio e calmo, ó poeta? E depois ir se encher de tangos e magia? Ah, somente os poetas o conseguem, quantos sonham com esse poder! O que somos nós? “Somos noites sem estrelas”. “Somos mangas, cajus, jabuticabas”. E o poeta é Púrpura e ouro. Somos a “lua com cara de espanto” e que depois ficará com “cara de cera” afundada em um “mar de sal e soluços”.

Tá vendo, poeta, como seus versos nos interpenetram? Tá vendo como seus poemas são as águas de todos os mares? Tá vendo como sua inspiração nos liberta e nos põe em Desalinho feito “faca afiada tão próxima da garganta...”? Aí a gente Espera “no centro da sala de jantar”, mas o homem está morto.

Uma mãe pastoreando estrelas para depois que as fogueiras se apagarem na festa de São João, avistar uma mulher abraçando e beijando o “velho canibal no fim da trilha”. De repente, a alma do poeta solitário retorna “por uma fresta do telhado”. Ouve-se um Blues. Encontramos o vate em busca da liberdade e da partilha, doando-se por inteiro, desde o pão até a morte. Antes do tornar-se pó, já tem “a noite por mortalha”, dissolvido no calor de um regaço, o regaço da mãe terra. Mesmo estropiado, ele tem o samba no pé, o mais rico dos homens contando estrelas e em transe amoroso. Quer “ser como o rio/Somente”, sussurrando um nome.

O poeta também é árvore, renasce da poeira em verde, caminha pelo mundo bendizendo as putas, cravando os brancos dentes na “tenra carne, no frescor da alva...”, sob um luar de fevereiro e um solo de saxofone. Tal qual uma figura quixotesca, combate os poderosos no “mais terrível dos combates”. Segue, poeta, segue com teu tesouro de poesia e, pela estrada de nuvens e estrelas, nem carne, nem osso, nem alma, mas um morto que contempla a própria transformação e se diverte com um palhaço, mantendo no peito um coração translúcido de azuis, arrancando poemas do miolo duro e da opacidade das pedras.

Seria um título helênico O estupro de Diana. Mas veio o silêncio, tão somente o silêncio “num cemitério qualquer”. Diana é o sol sepultado sob as “copas das árvores, /Esbranquiçadas pela neve, (...)/Nas noites de inverno”. Ah, poeta, nem digas que dizes bobagens, “Tu não precisas me dizer nada”, a não ser por esse contundente “canto perdido de um grilo” e “por um furtivo raio de luar”.

“Eu não invento palavras”, recebo-as de ti, “em chamas”. Cada palavra dentro do teu verso é chama “no chão da minha sala”. Arrasto-me em busca dessas chamas de poesia na esperança de escrever um verso, “tento escrever um poema/Que fale de amor e abandono, /Que se derrame em metáforas/Do tamanho do mundo. //Mas o que sei eu de poemas?”, eu não sou Zé Lima, sou uma poeta de quinta categoria e, tal um sapo, olho as estrelas do poeta explodindo em manhãs adornadas de estrelas, pensando prender “entre os dedos/um pedaço do mar”. Sonho imprimir a palavra no ritmo da alma, enquanto “Inquietas lanternas de pirilampos/Nortearão o caminho/Entre brumas e alcatrão” ao tempo em que “passam sonhos e delírios”. Quem mais conseguiria, ó poeta, impedir a cigarra “De libertar-se do próprio canto/Na tarde que se veste de azul/Para engalanar o suicídio?” “Ai de mim, que, em vão, tentei, /Mas não aprendi a cantar desde o berço! /Ai de mim, que, sem voz e sem asas, / Preso nesta vida de silêncios, anoiteço!”.

Ai de mim, ai de nós, “ai de ti, Copacabana”, pois “Seremos, seremos apenas ossos insepultos” sob “a pedra, /Estupidamente, /(...) agachada” sangrando, quem sabe, auroras, translúcidos e opacidades.

Poeta, estou embriagada em redemoinhos de poesia, da mais fina safra. Enfim, disse-o Baudelaire: “ENIVREZ-VOUS”

É necessário estar sempre bêbado.

Tudo se reduz a isso; eis o único problema.

Para não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem tréguas.

Mas – de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.

Contanto que vos embriagueis.

E, se algumas vezes, sobre os degraus de um palácio, sobre a verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:

– É a hora da embriaguez! Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem cessar!

De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor.