O AGONIZANTE (fim de linha)
Sandra Fayad
Ele está morrendo ali fora. Foram nove anos de uma troca perfeita. A comunicação entre nós estava no olhar, no tom da voz, nos cuidados de um com o outro.
Eu procurava me colocar no lugar dele quando percebia que algo o incomodava ou quando ele precisava ir ao médico. Sempre detestou o consultório do Dr. Ricardo.
Mas, pelo menos no mês de dezembro, era obrigado a ir lá fazer exames clínicos, pesar e tomar as vacinas. Por outras duas vezes precisou ir em datas diferentes dessa época. Foi quando teve pancreatite. Mas se recuperou logo.
Agora está ali sofrendo, com muitas dores. Já não pode andar, de ontem para cá ficou ofegante, sem apetite, com o olhar perdido, lacrimejante. Parece pedir socorro.
Ele sabe, tanto quanto eu, que é o fim da linha. Estou inconsolável. Amanhã vamos para mais uma consulta e exames, porque depois de três exames físicos, um RX, dois exames cardiológicos, uma tomografia, duas internações, muito corticoide, analgésicos, medicamento para as articulações, anti-inflamatórios os médicos que o examinaram informam que o diagnóstico ainda está indefinido.
É um fim de linha muito estranho. Há três meses nós brincávamos na varanda da casa, ele corria pelo gramado detrás da Mesquita, acompanhava-me na saída e na chegada, alimenta-se muito bem. Continuava solteirão, mas parecia haver se acostumado à vida de ermitão. É bem verdade que era meio arreliento com qualquer um que ousasse pisar a menos de 20 metros da casa, fosse gente grande, pequena, cachorro, gato e até pombo. Só não implicava com os passarinhos e as borboletas. Detestava jogo de futebol e a procissão da Consolata. Aquele foguetório era um martírio para seus ouvidos. Quando criança andou fazendo umas presepadas como destruir o meu celular, os espelhos retrovisores, o protetor de kart da Strada e outros objetos que lhe caiam à boca. Era também babão. Sempre foi lindo. Todos o admiravam pelo seu porte, por seus pelos macios e dourados, elegância no andar. O Dr. Ricardo sabendo que ele era nobre divulgou uma foto no site da sua empresa. Os clientes da clínica o admiravam.
Pouco tempo depois que ele começou a apresentar problemas de locomoção, chegou à família uma mocinha linda para dividir com ele o espaço. No começo era insegura, medrosa, assustada e só queria ficar escondida pelos cantos. Aos poucos ele foi instruindo-a sobre alguns direitos e deveres. Hoje ela já o substitui quase totalmente nas tarefas. Mas por ser muito jovem quer se divertir principalmente à noite. E ele é o par que ela tem para arrastar para as brincadeiras e trocas de carinho. Por gostar muito dela também ele atendeu aos seus apelos durante algum tempo, mesmo que isto lhe causasse mais dores e desconforto no dia seguinte. Nos últimos dias em que a imobilidade se tornou maior ele se negava a acompanhá-la, deixando-a irritada. Ontem a situação ficou dramática porque, diante da sua insistência, ele acabou ferindo a pata esquerda dianteira que amanheceu inchada e arroxeada. Como já não conseguia usar a pata direita traseira, seu dia foi de muito sofrimento e limitações. Eu abandonei as outras tarefas para ficar ao seu lado, dar-lhe analgésico e anti-inflamatório, acariciá-lo, conversar com ele, ligar o rádio com música clássica para que ele relaxasse. Ela, a Bromélia(1), compreendeu que ele, o Skipie(2), está muito mal. Ficou quietinha ao lado da porta onde ele repousava. Amanhã vamos voltar à clínica do Dr. Ricardo, onde estará nos esperando o Dr. Rafael, que é ortopedista. Eu temo por sua sorte. Há uma terrível sensação de perda e uma angustiante impotência em mim.
(1) Pastor belga, 6 meses
(2) Boxer, 9 anos
Bsb, 17/09/2015
Respeite os direitos autorais. Ao citar ou copiar, informe a autoria e a data da publicação.
Visite meu site: www.sandrafayad.prosaeverso.net
Sandra Fayad
Ele está morrendo ali fora. Foram nove anos de uma troca perfeita. A comunicação entre nós estava no olhar, no tom da voz, nos cuidados de um com o outro.
Eu procurava me colocar no lugar dele quando percebia que algo o incomodava ou quando ele precisava ir ao médico. Sempre detestou o consultório do Dr. Ricardo.
Mas, pelo menos no mês de dezembro, era obrigado a ir lá fazer exames clínicos, pesar e tomar as vacinas. Por outras duas vezes precisou ir em datas diferentes dessa época. Foi quando teve pancreatite. Mas se recuperou logo.
Agora está ali sofrendo, com muitas dores. Já não pode andar, de ontem para cá ficou ofegante, sem apetite, com o olhar perdido, lacrimejante. Parece pedir socorro.
Ele sabe, tanto quanto eu, que é o fim da linha. Estou inconsolável. Amanhã vamos para mais uma consulta e exames, porque depois de três exames físicos, um RX, dois exames cardiológicos, uma tomografia, duas internações, muito corticoide, analgésicos, medicamento para as articulações, anti-inflamatórios os médicos que o examinaram informam que o diagnóstico ainda está indefinido.
É um fim de linha muito estranho. Há três meses nós brincávamos na varanda da casa, ele corria pelo gramado detrás da Mesquita, acompanhava-me na saída e na chegada, alimenta-se muito bem. Continuava solteirão, mas parecia haver se acostumado à vida de ermitão. É bem verdade que era meio arreliento com qualquer um que ousasse pisar a menos de 20 metros da casa, fosse gente grande, pequena, cachorro, gato e até pombo. Só não implicava com os passarinhos e as borboletas. Detestava jogo de futebol e a procissão da Consolata. Aquele foguetório era um martírio para seus ouvidos. Quando criança andou fazendo umas presepadas como destruir o meu celular, os espelhos retrovisores, o protetor de kart da Strada e outros objetos que lhe caiam à boca. Era também babão. Sempre foi lindo. Todos o admiravam pelo seu porte, por seus pelos macios e dourados, elegância no andar. O Dr. Ricardo sabendo que ele era nobre divulgou uma foto no site da sua empresa. Os clientes da clínica o admiravam.
Pouco tempo depois que ele começou a apresentar problemas de locomoção, chegou à família uma mocinha linda para dividir com ele o espaço. No começo era insegura, medrosa, assustada e só queria ficar escondida pelos cantos. Aos poucos ele foi instruindo-a sobre alguns direitos e deveres. Hoje ela já o substitui quase totalmente nas tarefas. Mas por ser muito jovem quer se divertir principalmente à noite. E ele é o par que ela tem para arrastar para as brincadeiras e trocas de carinho. Por gostar muito dela também ele atendeu aos seus apelos durante algum tempo, mesmo que isto lhe causasse mais dores e desconforto no dia seguinte. Nos últimos dias em que a imobilidade se tornou maior ele se negava a acompanhá-la, deixando-a irritada. Ontem a situação ficou dramática porque, diante da sua insistência, ele acabou ferindo a pata esquerda dianteira que amanheceu inchada e arroxeada. Como já não conseguia usar a pata direita traseira, seu dia foi de muito sofrimento e limitações. Eu abandonei as outras tarefas para ficar ao seu lado, dar-lhe analgésico e anti-inflamatório, acariciá-lo, conversar com ele, ligar o rádio com música clássica para que ele relaxasse. Ela, a Bromélia(1), compreendeu que ele, o Skipie(2), está muito mal. Ficou quietinha ao lado da porta onde ele repousava. Amanhã vamos voltar à clínica do Dr. Ricardo, onde estará nos esperando o Dr. Rafael, que é ortopedista. Eu temo por sua sorte. Há uma terrível sensação de perda e uma angustiante impotência em mim.
(1) Pastor belga, 6 meses
(2) Boxer, 9 anos
Bsb, 17/09/2015
Respeite os direitos autorais. Ao citar ou copiar, informe a autoria e a data da publicação.
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