Souzandrade sob a ótica de Humberto de Campos
Podemos observar através deste texto do escritor, Humberto de Campos, que não é de hoje, as dificuldades pelas quais passam as pessoas que se dedicam a escrever, profissionalmente, e pretendam viver do que fazem. Lendo as Memórias inacabadas do escritor memorialista, vejam como conheceu e nos deixou de herança dados sobre o grande, Souzandrade:
SOUZANDRADE - “Considerada um dos primeiros estabelecimentos da praça no seu gênero, e o primeiro pela sua seriedade, demonstrada na excelência e autenticidade dos produtos que fornecia,
a “Casa Tramontina” contava entre os seus fregueses algumas das figuras notáveis, ou simplesmente curiosas, que o Maranhão ainda possuía. Achavam-se entre elas, por exemplo, o poeta Joaquim de Souzandrade, (...) Souzandrade era, sem dúvida, entre eles, o mais considerável pela projeção do nome e pela projeção do nome e pela originalidade do aspecto. Ao vê-lo pela primeira vez, atravessar a rua, vindo da Biblioteca, eu começava a armar no rosto de menino um sorriso de espanto e de mofa, quando vi “seu” encaminhar-se para a porta e recebe-lo entre mesuras respeitosas e de pouco emprego na casa, antes, mesmo, que ele tivesse pisado a orla da calçada. Era um velho alto, carão moreno e rigorosamente escanhoado, colarinho entalando o pescoço, cabeleira grisalha caindo, fofa, para os ombros, cobrindo a orelha, e, sobre essa cabeleira, que dava a impressão de achar-se empoada, uma cartola, cuidadosamente posta e mantida em rigoroso equilíbrio. Calça de casimira escura, e de lista, descia-lhe até aos joelhos uma sobrecasaca abotoada e transpassante. No rosto largo, um sorriso polido, mas deixando à mostra uns grandes dentes cuidados. E, pendentes de um fio negro, um monóculo, que levava de instante a instante, em gestos pausados, à órbita esquerda. Tipo de poeta ou político norte-americano da primeira parte do
século XIX.
– Sabe quem é esse? – Sussurrou a meu lado, Osório Lima.
Eu tinha visto, já, aquele sujeito não sei em que estampa de uma “História do Brasil”. Seria difícil, todavia, identificar esta estampa, depois de transformada em carne, osso, colarinho, cabeleira, sobrecasaca e chapéu de pelo.
– Este é o grande Souzandrade... Dr. Joaquim de Souzandrade... Tornou Osório, compreendo a ignorância revelada pelo meu silêncio. Depois da explicação, fiquei como estava antes dela. Eu jamais, na minha vida, ouvira, ou lera, aquele nome. Os poetas não tinha me interessado nunca. (...) Ele era, entretanto, uma individualidade curiosa, a última relíquia do velho Maranhão glorioso, e o remanescente vivo das altas figuras patrimoniais da velha Atenas agonizante. Surgindo quando a grande geração se extinguia, abandonou a pátria, e foi no estrangeiro, afinar o espírito pelo rugido eólico dos ventos novos. Fixou residência nos Estados Unidos, fez-se, aí, republicano; e, fundando jornais de espírito brasileiro, repetiu, embora apagadamente, a missão evangélica de Hipólito José da Costa, o Paulo de Tasso da Independência, que pregava em Corinto o que devia ser ouvido em Jerusalém. Inteligência investigadora e rebelde imaginou, então, um poema de proporções vastas, interessando a todo o continente, do qual, publicou um volume com os primeiros nove cantos, e que se tornou famoso pela bizarria desconcertante da forma e das ideais. Camilo Castelo Branco, que o considerava o mais “extremado, mais fantasista e erudito poeta do Brasil” no seu tempo, achava que o seu poema “pesa e enfara pela demasia dos adubos”. Silvio Homero apontava-o como o único poeta brasileiro que havia “tomado o faro do século”. Regressara, porém, para o Maranhão, e lá vivia, por esse tempo, isolado em uma velha quinta à margem do rio Anil. Cercadas de grandes muros, essa propriedade tornara-se a gaiola enorme de um velho pássaro que não cantava mais. Lá dentro, à sombra das grandes árvores que rodeavam a casa e se debruçavam sobre o rio, o autor d’O Guesa e das Harpas Selvagens lia Homero e Virgílio, no original. De tempos a tempos, vendia alguns metros dos muros da chácara aos construtores, que aproveitavam o material, de primeira ordem, em novas edificações urbanas. E isso dava oportunidade ao velho poeta, que vivia dessas pequenas transações, para uma frase de fina ironia.
- Como vai o senhor, senhor Doutor? Está passando bem? – perguntavam-lhe.
- E ele, a voz macia, o sorriso inteligente:
- Comendo pedras, meu senhor; comendo pedras...
Souzandrade entrava na mercearia, inclinava a cabeça, sorridente, num cumprimento a cada um, e, mesmo de pé, fazia a sua pequenina encomenda delicada: uma lata de espargos, um pouco de queijo, sardinhas de Nantes, e tâmaras ou ameixas. Sortimento para oito ou dez mil reis, que um empregado levava à quinta, e que ele, semanas depois, vinha pagar, com as cédulas miúdas e os níqueis rigorosamente contados. A sua freguesia não dava lucro. Mas enchia de orgulho a casa”.[Humberto de Campos, Memórias inacabadas, cap. II, pp 16 – 20]
a “Casa Tramontina” contava entre os seus fregueses algumas das figuras notáveis, ou simplesmente curiosas, que o Maranhão ainda possuía. Achavam-se entre elas, por exemplo, o poeta Joaquim de Souzandrade, (...) Souzandrade era, sem dúvida, entre eles, o mais considerável pela projeção do nome e pela projeção do nome e pela originalidade do aspecto. Ao vê-lo pela primeira vez, atravessar a rua, vindo da Biblioteca, eu começava a armar no rosto de menino um sorriso de espanto e de mofa, quando vi “seu” encaminhar-se para a porta e recebe-lo entre mesuras respeitosas e de pouco emprego na casa, antes, mesmo, que ele tivesse pisado a orla da calçada. Era um velho alto, carão moreno e rigorosamente escanhoado, colarinho entalando o pescoço, cabeleira grisalha caindo, fofa, para os ombros, cobrindo a orelha, e, sobre essa cabeleira, que dava a impressão de achar-se empoada, uma cartola, cuidadosamente posta e mantida em rigoroso equilíbrio. Calça de casimira escura, e de lista, descia-lhe até aos joelhos uma sobrecasaca abotoada e transpassante. No rosto largo, um sorriso polido, mas deixando à mostra uns grandes dentes cuidados. E, pendentes de um fio negro, um monóculo, que levava de instante a instante, em gestos pausados, à órbita esquerda. Tipo de poeta ou político norte-americano da primeira parte do
século XIX.
– Sabe quem é esse? – Sussurrou a meu lado, Osório Lima.
Eu tinha visto, já, aquele sujeito não sei em que estampa de uma “História do Brasil”. Seria difícil, todavia, identificar esta estampa, depois de transformada em carne, osso, colarinho, cabeleira, sobrecasaca e chapéu de pelo.
– Este é o grande Souzandrade... Dr. Joaquim de Souzandrade... Tornou Osório, compreendo a ignorância revelada pelo meu silêncio. Depois da explicação, fiquei como estava antes dela. Eu jamais, na minha vida, ouvira, ou lera, aquele nome. Os poetas não tinha me interessado nunca. (...) Ele era, entretanto, uma individualidade curiosa, a última relíquia do velho Maranhão glorioso, e o remanescente vivo das altas figuras patrimoniais da velha Atenas agonizante. Surgindo quando a grande geração se extinguia, abandonou a pátria, e foi no estrangeiro, afinar o espírito pelo rugido eólico dos ventos novos. Fixou residência nos Estados Unidos, fez-se, aí, republicano; e, fundando jornais de espírito brasileiro, repetiu, embora apagadamente, a missão evangélica de Hipólito José da Costa, o Paulo de Tasso da Independência, que pregava em Corinto o que devia ser ouvido em Jerusalém. Inteligência investigadora e rebelde imaginou, então, um poema de proporções vastas, interessando a todo o continente, do qual, publicou um volume com os primeiros nove cantos, e que se tornou famoso pela bizarria desconcertante da forma e das ideais. Camilo Castelo Branco, que o considerava o mais “extremado, mais fantasista e erudito poeta do Brasil” no seu tempo, achava que o seu poema “pesa e enfara pela demasia dos adubos”. Silvio Homero apontava-o como o único poeta brasileiro que havia “tomado o faro do século”. Regressara, porém, para o Maranhão, e lá vivia, por esse tempo, isolado em uma velha quinta à margem do rio Anil. Cercadas de grandes muros, essa propriedade tornara-se a gaiola enorme de um velho pássaro que não cantava mais. Lá dentro, à sombra das grandes árvores que rodeavam a casa e se debruçavam sobre o rio, o autor d’O Guesa e das Harpas Selvagens lia Homero e Virgílio, no original. De tempos a tempos, vendia alguns metros dos muros da chácara aos construtores, que aproveitavam o material, de primeira ordem, em novas edificações urbanas. E isso dava oportunidade ao velho poeta, que vivia dessas pequenas transações, para uma frase de fina ironia.
- Como vai o senhor, senhor Doutor? Está passando bem? – perguntavam-lhe.
- E ele, a voz macia, o sorriso inteligente:
- Comendo pedras, meu senhor; comendo pedras...
Souzandrade entrava na mercearia, inclinava a cabeça, sorridente, num cumprimento a cada um, e, mesmo de pé, fazia a sua pequenina encomenda delicada: uma lata de espargos, um pouco de queijo, sardinhas de Nantes, e tâmaras ou ameixas. Sortimento para oito ou dez mil reis, que um empregado levava à quinta, e que ele, semanas depois, vinha pagar, com as cédulas miúdas e os níqueis rigorosamente contados. A sua freguesia não dava lucro. Mas enchia de orgulho a casa”.[Humberto de Campos, Memórias inacabadas, cap. II, pp 16 – 20]
O maranhense Humberto de Campos sempre me inspirou. Ao ler seus textos no “Grupo Escolar Gomes de Sousa”, ainda no primário, ficava matutando... Que também eu poderia escrever histórias tão bonitas quanto as que ele escreveu. Em 2004, comprei, em um sebo, seu livro Crítica, 4ª série, onde encontrei a fantástica história de Joaquim Gomes de Sousa. Em 2009 publiquei-a no Recanto das Letras, por imaginar que assim, tal qual eu, muitos conterrâneos conheciam superficialmente, a história do grande cientista brasileiro. O primeiro doutor em matemática da história do Brasil. Catedrático do Colégio Pedro II, aos 19 anos.
Hoje, estudiosos da Academia Itapecuruense de Letras, conseguiram resgatar obras, do ilustre conterrâneo, que se julgavam perdidas.
Desta vez, a surpresa foi seu testemunho quanto à sua convivência com o grande Souzandrade.
Desta vez, a surpresa foi seu testemunho quanto à sua convivência com o grande Souzandrade.