O Pequeno Príncipe ( Le Petit Prince )
O professor de latim era um sujeito muito simpático; não era padre, como alguns dos professores do Colégio Santa Cruz, onde eu era semi-interno; chamava-se Roberto. Naquela época, década de sessenta, a língua mãe era obrigatória.
Quando estávamos por concluir o semestre inicial da primeira série do ginásio, acometeu-me hepatite violentíssima, como a muitos outros colegas de classe. Talvez por erva-doce mal lavada. Estávamos às vésperas dos exames ao meio do ano, coisa depois abolida, como o francês. Tive de fazê-los em Agosto, pois fiquei uns sessenta dias na cama.
Por primeira vez senti a morte rondando.
A febre muito alta e o fígado inchado, nem podia me mexer.
O professor visitou-me e trouxe “o Pequeno Príncipe”, um presente.
Fiquei muito contente. O livro e o professor ficariam presentes para sempre na recordação. O gesto da visita e o conteúdo do livro tiveram um significado especial.
Mamãe me deu um pequeno espelho. Olhava-me todos os dias para controlar o amarelão dos olhos. Às vezes acontecia algo estranho: aquela imagem me parecia a de uma outra pessoa. As formas grosseiras, o olhar espantado, era como se eu não pertencesse a este mundo e estivesse vendo, por primeira vez, um ser humano. Sentia certa nostalgia; saudade de um mundo distante, longínquo, meu verdadeiro lar. Num destes momentos tive a sensação de que não morreria nunca.
A gentileza do professor fez surgir um vínculo de amizade; por isso, comecei a aprender melhor o Latim. As lições deixaram de ser frias, pois havia, por detrás delas, a amizade. Ia descobrindo que o essencial era invisível aos olhos.
Do livro ficaram imagens sobre a importância da criança pura que fôramos, e não deveria ser esquecida; a responsabilidade para com as pessoas cativadas por nós.
Sempre me pareceu que o piloto francês, Antoine de Saint-Exupéry, encontrara-se consigo, após o acidente aéreo no deserto da África, noutra dimensão. Ele seria o Pequeno Príncipe, a criança a não ser esquecida.
Na dedicatória escrita à Léon Werth, pede perdão às crianças por tê-la feito a um adulto, ressalvando ser seu melhor amigo, capaz de compreender os livros escritos para elas.
Na verdade, corrige o escritor, ele o dedica à criança que aquele adulto fora um dia, e a que todos fomos; não deveríamos esquecê-la.
No livro Diálogos, do pensador e humanista González Pecotche, encontramos uma importante referência à eterna e pura criança que cada um traz dentro de si:
““Existe um ser a quem todos, sem exceção, temos esquecido; se é recordado uma ou outra vez, tem sido em forma circunstancial, mas essa recordação fugaz não cumpre o que vou assinalar, razão pela qual me sinto movido a declarar seu geral esquecimento. Esse ser é a criança que cada um foi, aquela que brindou os melhores dias da existência e a quem, pode-se dizer, lhe devemos grande parte do que agora somos”.
“Aquele que pensa nessa criança e a contempla através de suas recordações, em seus brinquedos, em seus pensamentos, em suas inclinações e em sua inocência, verá quanto tem de aprender dela e quanto lhe deve; mais ainda: quanto deveria conservar daquele pequeno que hoje, grande em tamanho e em idade, seja-lhe permitido experimentar, pelo menos, algumas daquelas inocentes porém gratas sensações que brindaram a sua vida as melhores horas”.
“Seria bom se cada um recordasse esse menino, o que foi, o que morreu. Que o recorde muito, porque nessa recordação vai implícito o enlace da atual existência com a que foi, pois o esquecimento não somente destrói o vínculo que as une, senão também a própria sensibilidade”.
“Se esquecemos a nossa própria criança, aquela que morreu, cometemos com isso, talvez sem querer, um crime simbólico; morrerá também o jovem, e, sucessivamente, o que fomos ou temos sido em cada idade. Assim se irá esfumando no esquecimento e, sem sentir, morrerá em nós, lentamente, toda nossa vida”.
Nagib Anderáos Neto
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