Carolina de Jesus, 100 anos: a força da literatura
O ano de 2014 marcou o centenário de nascimento de Carolina Maria de Jesus, autora, dentre outros, do livro “Quarto de Despejo” (1960), obra precursora da chamada Literatura Periférica. A revista Aventuras na História (Editora Caras) em sua edição 139, de fevereiro último, traz uma matéria sobre sua vida e obra.
“Carolina foi a primeira mulher negra, pobre, favelada, mãe solteira e semianalfabeta – ela não completou o primário – a publicar uma autobiografia: onze mil exemplares de sua obra foram vendidos na primeira semana. Seguiram-se duas reedições, traduções para 13 línguas e venda em mais de 40 países” – escreve no editorial da revista Edgardo Martolio. Esse parágrafo sintetiza os dados principais da biografia da escritora, nascida em Sacramento (MG) em 14/03/1914, de onde, aos 17 anos, partiu numa longa caminhada até São Paulo.
Na capital paulista, trabalhou por um breve período na casa do famoso cirurgião cardiologista Euryclides Zerbini, o qual a autorizou a ler as obras de sua biblioteca durante as folgas. Anos depois, após morar na rua, já mãe de três filhos, estava residindo na Favela do Canindé (local em que hoje está o estádio da Portuguesa de Desportos), às margens do rio Tietê, onde foi “despejada” junto com outras pessoas por um caminhão da prefeitura que recolheu os “mendigos” que habitavam o centro da cidade.
Foi na favela que redigiu, em 28 cadernos, "Quarto de Despejo", no período de 15 de julho de 1955 à 1º de janeiro de 1960, relatando suas dificuldades enquanto trabalhava como catadora de papel para sobreviver: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita, com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. Quando estou na favela, tenho a impressão que sou objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. Ao ser editado, "Quarto de Despejo" manteve o estilo os erros de português da escrita de Carolina, por iniciativa do jornalista que a descobriu, Audálio Dantas.
Dantas estava na favela realizando uma matéria como repórter para a Folha da Manhã (empresa jornalística que atualmente publica a Folha de São Paulo) e testemunhou uma desavença entre Carolina e alguns rapazes que ocupavam o parquinho das crianças. “Eu vou botar o nome de vocês no meu livro” – disse aos mesmos para intimidá-los. Relata o jornalista: “Estava mostrando que tinha força. E o livro era uma grande arma”. Curioso, pediu para ver os cadernos onde Carolina escrevia seu “livro”, e percebeu o potencial e a originalidade da narrativa. “Como é horrível comer e ver o filho perguntar: Tem mais? Esta palavra ‘tem mais” fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais”. Assim surgiu, aos 46 anos, a escritora Carolina de Jesus.
“Quarto de Despejo” fez enorme sucesso e sua autora mudou de vida, saindo da favela, onde passou a ser hostilizada pelos moradores por ter cumprido a promessa de colocar o nome das pessoas no livro. Foi morar por um tempo no bairro de classe média Alto de Santana, que resultou em “Casa de Alvenaria” (1961). Depois, comprou um sítio no distrito de Parelheiros e lá viveu até fevereiro de 1977, quando faleceu, pobre e esquecida.
Hoje, dia 20 de março, inicia o outono. Carolina de Jesus foi uma autora que começou a escrever durante o outono de sua existência, vivendo então um momento de primavera para depois voltar ao inverno que foi a maior parte de sua vida. Mas deixou um legado literário importante, como afirma a pesquisadora Fernanda Miranda, da USP: “Carolina traz o cotidiano periférico não somente como tema, mas como maneira de olha a si e a cidade”. Mais do que isso, deixou um exemplo de luta a ser seguido.
Artigo publicado na seção de Opinião do jornal Portal de Notícias: http://www.portaldenoticias.com.br