IARARANA - Sosígenes Costa / pequena análise
Sosígenes Costa, que nasceu em Belmonte, em 14/11/1901, viveu muitos anos em Ilhéus, e depois no Rio de Janeiro, onde faleceu, em 5/11/1968. Deixou apenas um livro publicado Obra poética (1959), que recebeu o primeiro Prêmio Jabuti de poesia, em 1960.
Identidade em Iararana
Iararana de Sosígenes Costa é uma alegoria escrita em 1930, que narra a formação étnico-cultural do Sul da Bahia, partindo de elementos formadores da identidade nacional, com elementos que remetem à formação brasileira, como o branco Tupã-Cavalo, a Iara e o índio, abrindo uma discussão através do potencial literário descrito numa narrativa que retrata a cultura local do sul da Bahia, fazendo uma relação com a identidade brasileira, sobretudo na representação segundo os conceitos dos Estudos Culturais de Stuart Hall, Bhabha e Canclini, refletindo a dinâmica imbricada no processo de formação das identidades culturais.
A obra Iararana traz na literatura uma reafirmação dos traços contidos no panorama modernista, com a valorização do nacionalismo, com os elementos mais representativos da cultura brasileira na alma-do-mato, a história da chegada de Tupã-Cavalo à região cacaueira e aspectos amorosos de Iara, figura mitológica que habita as águas dos rios também conhecida como mãe-d’água – materialização da divindade. Partindo da narrativa de cunho mítico, o poeta expõe como teria se originado o cacau e apresenta marcas relevantes da cultura regional que auxiliam no processo de composição da identidade local.
E Tupã-Cavalo brotou a mataria
E as sementes nasceram e se viu que era cacau
E o cacau já estava crescidinho
e saía com uma força...
e saía com um forção
que benza-te Deus meu pé de feijão!
mas ele dava na gente a tirar broto de cacau
deu facão a caboco para tirar broto de cacau
e o cacau desbrotado ficou parrudo
e bonito como danado.
(COSTA, 2001, p. 444).
Através da representação literária é possível, assim, ter-se conhecimento sobre elementos da cultura não apenas no que diz respeito às suas manifestações festivas, expressões folclóricas e outros costumes, mas também sobre a organização social e econômica da região firmada sobre o cultivo do cacau.
Seguindo a lógica da literatura modernista, Iararana se apresenta como uma saga, com exaltação do índio brasileiro e utilizando na ação, como estratégia, a ‘limpeza de sangue, seguindo o movimento modernista iniciado em 1922, por não privilegiar a apropriação das contribuições exógenas nas representações culturais mas destacando nelas o que é autóctone, através da celebração genealógica de uma linhagem e através das peripécias e façanhas vivenciadas por um clã. (SCHEINOWITZ, 2002, p. 66).
Pela ênfase no que é autóctone, a identidade regional em Iararana é reafirmada através da estratégia da retomada de elementos que expressem a diferenciação com relação às outras culturas, sobretudo àquela que se evidencia como exógena e opressora. A cultura local mostra-se no poema, sobretudo, em seu potencial antropofágico de digerir os aspectos positivos que contribuíram para a região, como a técnica do cultivo do cacau, mas também de renegar os traços que comprometem a identidade quando vista sob a perspectiva de uma unicidade que mantém seu caráter distintivo. Esse fator se evidencia, na poesia, na morte do Tupã-Cavalo, representação do colonizador europeu, causada pelo lobisomem
E o Lobisome com boca de fogo
Atacou Tupã-Cavalo no barranco da Inguaíra
E avançou no pescoço do cavalo
E queria mata-lo de arrocho.
Mas a carne dele já estava chiando no fogo que saía
Da boca do Lobisome
(COSTA, 2001, p. 505).
Há ainda uma associação entre os traços negativos de personalidade com a descendência de Tupã-Cavalo, e entre traços positivos com a descendência da Iara que, após gerar a Iararana e de ser trocada pela loura européia Arancajuba, envolve-se com um aimoré dando origem ao personagem menino do céu.
- Menino do céu, você tem sangue de mãe-dágua.
Teu sangue bom é sangue do rio
Sangue caboco com sangue do rio
Sangue mais limpo que o da falsa iara
Que puxou ao bicho e tem sangue runhe.
(COSTA, 2001, p. 503-504).
Embora a narrativa traga aspectos distintivos da cultura regional, vislumbra-se a presença de outros elementos que não são oriundos desta, mas a compõe através de fenômenos híbridos (Canclini, 2003), reunindo e relacionando aspectos históricos, artísticos, filosóficos, culturais e literários. Essas interferências de outros sistemas culturais caracterizam a cultura como um processo em formação constante. De acordo com Laraia (1997, p. 100) “existem dois tipos de mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio sistema cultural, e uma segunda que é o resultado do contato de um sistema cultural com um outro”.
Assim, identificam-se na poesia marcas desse hibridismo cultural. Inicialmente pela presença do Tupã-Cavalo (centauro) que desencadeia uma mestiçagem resultante da mistura dos povos, representada na obra pelo nascimento da Iararana, caracterizada como a “falsa iara” e de seus outros irmãos. Além disso, constam na narrativa os elementos gregos como os deuses. Além da mistura entre os mitos de tradição indígena e cristã..
Naquela festa do céu
havia um jegue com asas
Qual o nome deste jegue?
- Pégaso
(COSTA, 2001, p. 479).
Se não fosse esse fiasco
Aquela moça copeira seria eleita rainha
naquela festa do céu.
- Qual o nome desta moça?
- Hebe
(COSTA, 2001, p. 480).
Há, portanto, uma abordagem ampla dos traços constituintes da cultura regional, ainda que estes se apresentem hibridizados com elementos de outras culturas. A partir dessa abordagem é possível se ter uma noção das manifestações mais características da cultura popular, expressas e perpetuadas, sobretudo pela oralidade e que são revividos através da narrativa literária.
Ah naquela cana brava
Todo dia pega fogo
no momento em que a mãe-dágua
deste rio Jequitinhonha
é levada lá pra dentro
por esse bicho danado
que espantou a caipora
meteu medo no boitatá
(COSTA, 2001, p. 449).
São evidenciadas nesses trechos algumas crenças advindas da cultura popular como da cobra que mama no seio das mulheres que pariram e a explicação fantasiosa para a ocorrência simultânea de chuva e sol como resultante do casamento da raposa. Os mitos são expressos nos fragmentos que apresentam as figuras mitológicas como o Tupã-Cavalo, a iara, o lobisomem, a mula-de-padre, o boitatá, a caipora, dentre outros que surgem na narrativa, assumindo papéis importantes para o desenvolvimento da história, como o lobisomem que se responsabilizou por matar o Tupã-Cavalo devolvendo a autonomia das personagens que representam a cultura local. Além disso, são retratados os costumes, como o de enterrar os restos do parto na areia e evitar treze pessoas à mesa para não dar azar, expressões regionais, como o “oxente” e também ditados populares.
Moça não casa com cobra
Porque não sabe quem é o macho,
Isso é o que o povo diz
(COSTA, 2001, p. 473).
- Oxente! Você tem namorado, Calunga?
(COSTA, 2001, p. 433).
O poema traz ainda outras manifestações da cultura popular como as danças, canções, ritmos, como o samba, as festas típicas, como o forrobodó na coroa e burrinha, e as brincadeiras infantis. Estes aspectos funcionam como marca da diferença por serem tipicamente regionais, necessitando serem repetidos como práticas inerentes da cultura local para que possam ser perpetuados e possam consolidar a identidade cultural associada a estas práticas.
A festa que se fez foi a festa da Burrinha.
Todos foram cantando receber o cavalo-do-mar
(COSTA, 2001, p. 496).
O samba que é macuíba
É o samba do pau siriba.
Remexa bem as cadeiras,
Se esqueça da pindaíba.
E todo mundo se peneirou
no samba do pau siriba
(COSTA, 2001, p. 481).
Iararana funciona como uma das narrativas que constituem a identidade também pela estratégia de mito fundacional. Sosígenes Costa parte de uma narrativa mítica para explicar o surgimento de elementos regionais que atualmente são conhecidos como tal devido à presença dos acontecimentos de origem mitológica. Um exemplo se refere ao rio Belmonte que teria esse nome devido a ossada de Tupã-Cavalo depositada no fundo do rio.
E a ossada está lá no fundo do rio.
Mas a mãe-dágua está lá viva e amarrada.
Ela dorme no fundo do rio.
E nem sucuriúba pode quebrar as correntes.
Só quem descende da mãe dágua pode quebrar as correntes.
E os descendentes dos mondrongos
chamam este rio de Belmonte
(COSTA, 2001, p. 506-507).
Além disso, pode-se dizer que a referência a Belmonte funciona como forma do poeta reviver as memórias da sua infância, vivida em Belmonte. Pela organização dessa narrativa também se reafirma a identidade enquanto sentimento de pertencimento à realidade nacional.
Neste espaço intersticial, por Bhabha denominado de inbetweenes (entre-lugar), Antônio Torres instala sua narrativa, “lascando” o discurso oficial da história, desvelando, sobre a homogeneidade do discurso historiográfico oficial, as heterogeneidades agentes na cultura brasileira.
Mudança de local psicológico é metáfora do deslocamento, lugar de cruzamentos, um entre-lugar em que a memória do colonizador permanece resgatada pelo discurso do narrador, dificultando encontrar a referência para pensar a identidade como uma cultura original.
Considerações Finais
Enquanto fonte primordial de sentido para que os sujeitos se localizem socialmente, as identidades funcionam como manifestações móveis pelas quais podem ser construídos os sentidos necessários para a convivência na coletividade. Santos (1999, p. 135) afirma que. “as identidades culturais não são nem rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes processos de identificação”. Portanto, devem ser encontradas formas dos indivíduos irem se identificando com vários contextos sociais e culturais a fim de fornecer sentidos às suas experiências.
As representações têm, então, o papel de produzir uma síntese das características mais marcantes da cultura de um povo para dar suporte à criação das identificações. Estas, por sua vez, são responsáveis pelo sentimento de pertencimento, que permite aos sujeitos vislumbrarem-se como integrantes de um contexto cultural com traços bem demarcados. Através das várias representações a identidade cultural vai sendo edificada como uma narrativa, na qual se pode verificar os aspectos que compõe cada cultura.
No caso da obra Iararana, Sosígenes Costa consegue tecer uma narrativa capaz de reunir os caracteres que mais se evidenciam na cultura popular, formando uma importante referência para a construção da identidade cultural da região sul-baiana. Mesmo que haja um hibridismo na apresentação desses aspectos, que pode ser visto como uma metáfora da constante interação cultural entre diversos povos, é possível demarcar os elementos típicos da cultura local que são valorizados na história como forma mostrar não apenas a diversidade, mas a capacidade de resistência sobre as dominações exógenas, enfatizando a riqueza advinda da produção cultural autóctone e independente.
A identidade é, então, construída a partir de um repertório cultural que se apresenta na sociedade, que pode se expressar como conhecimento científico, práticas artísticas ou religiosas. Mas, “todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e sociedades, que reorganizam seu significado em função de tendências sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo e espaço” com frequência, a identidade envolve reivindicações essencialistas sobre quem pertence e quem não pertence a um determinado grupo identitário, nas quais a identidade é vista como fixa e imutável”. O sentimento de pertencimento e permanência é o pressuposto básico para a construção da identidade individual, ao se referir aos grupos a que pretende fazer parte. No entanto, ver a identidade como fixa e imutável corresponde apenas a uma estratégia para tentar formar nas consciências a sensação de homogeneidade que, na verdade, não corresponde mais ao conceito pós-moderno de identidade, devido aos processos de hibridização cultural.
O sujeito pós-moderno, segundo Hall (2005, p. 13), é
[...] conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. [...] A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidade possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.
As identidades, como mostra Hall, estão em constante processo de formação a depender dos fatores sociais que agem sobre os indivíduos. Daí a concepção do termo “identificação”, uma vez que, à medida que esses fatores – ‘as interpelações dos sistemas culturais’ – se apresentam, as pessoas se identificam de acordo com cada circunstância. Os processos que desencadeiam as identificações são múltiplos e por isso geram uma dinâmica favorável à não fixação permanente das identidades.
A identidade, de acordo com sua concepção pós-moderna e enquanto resultado das atribuições culturais, é vista como uma manifestação muito mais flexível, uma vez que tem sido mais difícil a tarefa de se situar num ambiente mediado e formado por uma constante hibridização cultural (Canclini, 2003). Os sujeitos passam a assumir diversas identidades que não existem mais como algo unificado, mas que respondem a momentos específicos e a contextos diversificados. Daí a necessidade de se formular estratégias que permitam que, mesmo com a hibridização das culturas e formação múltipla das identidades, sejam construídos aspectos que reúnam os indivíduos em categorias de acordo com algumas características comuns ao grupo e que permitam que esses se sintam como parte de um todo. Deve-se encontrar, portanto, formas de se costurar as diferenças decorrentes das várias identificações, a fim de constituir uma certa homogeneidade capaz de classificar os indivíduos segundo particularidades que os definam. Para Hall “uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura subjacente de ‘um único povo’. A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais – língua, religião, costume, tradições, sentimento de ‘lugar’ - que são partilhados por um povo”(Hall 2005, p. 62).
Dessa forma, a literatura adquire o status de representação identitária cujo funcionamento age como fonte de significados e suscita a abordagem dos aspectos culturais da sociedade a que se refere. A partir dessa abordagem pode-se inferir que a construção de traços característicos que compõem as identidades são provenientes das representações que abarcam e sintetizam os elementos da cultura. A representação literária estudada, por exemplo, apresenta o potencial de retratar com grande riqueza os aspectos da cultura regional, permitindo que a identidade seja consolidada a partir de sua dimensão local.
Outro aspecto relevante que se refere aos produtos culturais que visam a reafirmação das identidades é que estes funcionam, ainda, a partir de algumas estratégias a fim de situar as origens de um povo através de narrativas que agem como mitos fundadores ou lendas de tradição oral, construindo os sentidos que compõem as identidades (Bhabha, 1995). Esse aspecto se verifica, assim, na literatura, na cultura popular e na mídia e através de estratégias discursivas que objetivam gerar a noção de continuidade, de tradição e de intemporalidade. A crença em um passado imaginado (Hobsbawm, 1997) e comum a todos edificado pelas narrativas literárias, e outras formas de representação cultural, orientam os indivíduos na história de formação da sua coletividade e preenchem de sentidos suas identidades. Desta maneira, a partir da produção cultural é possível que as pessoas de determinado local sintam-se agregadas, compartilhando modos de se comportar e pensar, vivenciando um sentimento de cultura partilhada.
Os produtos culturais, como a literatura regional, são vitais no processo de constituição das identidades locais, pois funcionam como forma de representação dos aspectos culturais que as caracterizam tal como se manifestam socialmente. O estudo da obra Iararana permite, deste modo, perceber a literatura como reflexo da cultura retratada e também como uma estratégia narrativa de reafirmação e valorização da identidade sul-baiana.
REFERÊNCIAS
CANCLINI, Nestor García (2003). Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4ª ed. Trad. Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp.
CASTELLS, Manuel (2000). O Poder da Identidade. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra.
COSTA, Sosígenes. Iararana. São Paulo: Cutrix, s/d.
HALL, Stuart (1999). A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A.