João Ubaldo - Vila Real - Um pequeno estudo

RIBEIRO, João Ubaldo. Vila Real. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012.

Publicado originalmente em 1979, o livro de João Ubaldo Ribeiro relata uma complexa metáfora dos conflitos rurais na região nordeste, tanto registrado com sangue de brasileiros na história do Brasil.

A preocupação com o enraizamento de um povo que tem como objetivo de se firmar no espaço identitário da sua terra, evitando o êxodo, fugindo da profecia utópica da visão bíblica de buscar a Terra prometida.

Trata-se de um romance carregado de tensão e violência, ambientado numa região próxima de uma pequena cidade fictícia do sertão nordestino, cuja narrativa e os diálogos descrevem a luta de camponeses contra uma empresa mineradora que vem tomar as terras, recebendo dos moradores o nome de “Caravana Misteriosa”, num espaço coletivo onde os indivíduos se reconhecem, construindo ali a sua nação brasileira. A vida e a morte estão em contenda constante, tendo como objeto uma comunidade condenada ao desterro.

Argemiro é o líder dos posseiros expulsos injustamente da Vila Real pela “Caravana Misteriosa”, composta de homens chefiados por Genebaldo, ameaçando os camponeses que se encontram numa grande região de aspectos miméticos, marcada com a luta entre a cultura local e o capitalismo ocidental, na fina linha entre a vida e a morte, num conflito entre o rural e os novos tempos de invasões urbanas do nordeste, onde os agricultores possuem terras deixadas pelos seus ancestrais, mas sem nenhum documento do registro da posse, tentando manter o sustento da família e sua identidade de raiz afetiva, cultural e econômica.

Trata-se de um choque entre os valores da cultura capitalista ocidental que chega aos rincões do sertão para desfigurar a cultura local e promover o deslocamento da comunidade a ser expulsa da sua terra.

Os colonos, condenados ao desterro e à morte, comandados por Argemiro, tentam resistir no acampamento às ações dos invasores, sem as mínimas condições adequadas, numa brava utopia, contada num romance de narrativa descontinuada e um pouco difícil do leitor acompanhar a cronologia, num sangrento embate com o inimigo, contato numa linguagem própria, dentro da tensão social imposta pela política desleal do invasor.

Ameaçados pela expulsão de suas terras, os camponeses vivem sem futuro, numa natureza pobre de esperança, composta de entre-lugares como Jurupema, Aratanha, Japiau e Vila Real, num ciclo de deslocamentos imposto pelo poder econômico e político do país.

Em Aratanha, o autor mostra um lugar assombrado e escuro, morada da morte e de natureza de vida condenada, tornando o espaço em estéril e miserável, sem valor algum.

Euclides da Cunha já havia mostrado essa face perversa que vive o homem do campo, sem direito a terra e paz, no livro Os sertões, condenado a viver em conflito com a Terra e o homem na luta, que o Brasil rural começa a sentir as investidas do Brasil urbano em sua área, com maior poder político e de fogo.

Em Vila Real a força e a opressão massacram o grupo de Argemiro, com a narrativa embalada pelos textos do Apocalipse de São João, ou do Êxodo, tentando levar os colonos para fugir do sofrimento, como o fez Moises, tentando os levar à Terra prometida, mas aquele povo não acha explicações para tantas mortes e sofrimentos.

Ao criar Argemiro como um salvador, João Ubaldo talvez quisesse repaginar Antônio Conselheiro, de Os Sertões, pois nos dois episódios existe uma comunidade em desespero, procurando alguém em quem acreditar, a fim de não perder a terra deixada por seus antepassados, somente por falta da escritura, acabando de vez um resto de esperança pela perda de consciência de possível sobrevivência.

Portanto, Argemiro é um herói solitário, aos olhos do cristianismo, mas não se sente um escolhido por Deus, e sim um desesperado sobrevivente numa luta de resistência pelo seu espaço, que o faz, em momentos de desespero, achar que a morte seria uma oportunidade de ter outra vida depois, oferecendo a sua vida, pela vida daquele povo, ameaçado o tempo todo pela “Caravana Misteriosa”.

Genebaldo e Godofredo comandam as tropas em direção aos colonos.

Os diálogos passam por narrativas que descrevem o tempo e o espaço numa região do nordeste, onde o medo e o sofrimento dos personagens estão envolvidos em tramas de controvérsias, choques culturais e psicológicos, com o herói Argemiro tentando trazer a “palavra nova” que vai abrir a consciência de todos ao entendimento, ao criar o “Evangelho Segundo Nós”, mesmo sabendo que está levando a todos para a morte, numa luta desproporcional, como forma de preservar as suas referências e cultura identitárias do território e comunidade. São mateus confirmou as profecias; São Marcos fez um relatório que só aprofunda a nossa tristeza; São Lucas, que fez das mulheres grandes figuras; e São João, que lembrou os fins dos tempos. Só existe o grande, porque existe o pequeno, o feliz porque existe o infeliz. Concluiu Argemiro.

A narrativa se desenvolve e conserva os parâmetros locais do nível de linguagem, costumes, tensão social e política.

Argemiro sente-se tentado e traduz e sua lógica da guerra como uma cisão social apoiado num discurso de que agora somos “nós” contra “eles” em conflito, como uma forma separatista de reagir contra uma nova colonização ou usurpação das suas terras. Ele precisa decidir sempre, para ser valorizado pelo seu povo, e não ser apenas um Sem-nome do Sem-Nome.

A palavra Aratanha toma um aspecto de valor semântico negativo, pelas agruras que ali vão acontecer, num espaço mal assombrado e desumano que fatalmente levará seus habitantes à morte. Na realidade, Aratanha era uma parte das terras de Jurupema.

O “filho de Lourival” é um Santo que aparece como um herói místico de liderança, como uma sombra de esperança no projeto de transformação e melhoria social. Às vezes, esse nome era pronunciado também pelos próprios homens comandados por Argemiro no acampamento.

Godofredo comandava a tropa que os colonos chamavam de Caravana Misteriosa, de homens que varavam as matas a cavalos feitos uns fantasmas, armada até os dentes, com fuzis, facões e todo tipo de armamento que se pode carregar. Ele envenenava o vento com a sua própria raiva. Genebaldo comandava alguns homens decididos a cumprir ordens.

Padre Bartolomeu, que só aparecia uma vez por mês para fazer missa, explicou que a caravana misteriosa era de homens de uma mineradora que queriam aquelas terras para explorar economicamente, e se comprometeu a conversar com eles.

À medida que vai se desenvolvendo o texto, Argemiro sente-se mais envolvido e consciente do que poderá acontecer, descobrindo em si determinadas qualidades humanas, dentre elas a certeza de que nunca iria ser um traidor daquele povo, preferindo a resistência e enfrentamento da morte anunciada.

Num momento de total descontrole, Argemiro gritou agora meu nome á Argemiro Meia-lua, como fogo, como trovão, como Lua, como o que for preciso.

Já na madrugada final, na localidade de Japiau, Argemiro desce a serra para a batalha final, em direção as terras tomadas e ocupadas pelos invasores, onde quem planta, colhe e vive da sua labuta deveria ser o dono. Foi uma batalha sangrenta, com muitos tiros, gritos e gemidos, mas para deixar o tema em aberto até os próximos séculos, o autor não deixa claro o resultado da guerra. A vitória seria da luta dos bravos homens dos sertões? A terra costuma chamar para seus braços aqueles que mais lutam por ela. É um prêmio pela resistência de cada um, mesmo em lutas com vitórias impossíveis. Para a terra, a luta vale, mas é uma pena os outros é quem vão contar os heróis dessas lutas.

(entre-lugar_)

Argemiro, portanto, é a versão atualizada de Antônio Conselheiro, sem o cristianismo arraigado, definindo as ações da população de Vila Real, onde a comunidade resiste através das reflexões dos personagens a respeito da vida, da morte, da condição humana e extinto de sobrevivência, tentando fixar a cultura da sua identidade.

Como acontece no movimento do entre-lugar, estudado por Silviano Santiago, podemos entender esse tipo de exclusão também aconteceu com o índio e o negro, deslocados no plano nacional pelo poder dos latifúndios, o que encontra eco e diálogo no livro O Cosmopolitismo do Pobre (2004), que traz uma visão dos intelectuais e das solidariedades transnacionais criadas a partir dos movimentos sociais e das migrações de trabalhadores, que valorizam a cultura dentro do desenvolvimento econômico integrado à constituição de cidadania, e não uma simples mercadoria.

Em Vila Real, João Ubaldo Ribeiro retrata com pincel de todas as cores um quadro rústico da imposição do poder sobre uma pobre comunidade rural, que vive também entre-lugar, quando foi usada a força econômica do capitalismo no conflito social de expulsão dos habitantes, prejudicando a construção e manutenção da sua identidade, registrado no livro como uma denúncia da injustiça social no campo, deixando um legado de resistência para as próximas gerações que tiverem acesso a leitura da obra, se ocorrer a melhoria das condições de educação e cultura da população rural.

REFERÊNCIA:

RIBEIRO, João Ubaldo. Vila Real. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012.