- Alexandre, o senhor está gravemente diabético.

De supetão, recebo a notícia. A confirmação da suspeita nasce do último exame de sangue. Diabetes, essa maresia de açúcar que oxida o corpo de dentro para fora, fruto dos meus excessos insalubres.

Não posso oferecer nenhuma explicação coerente, afeiçoado colega, mas ao constatar a minha enferma realidade, fui remetido a uma inevitável análise comparativa com a imaturidade da literatura brasileira contemporânea. Sim, venho me manchando com pesadas tintas pessimistas, mas o que é o pessimismo? Um pôr do Sol que nos motiva manter a luz que precede as longas e frias noites.

A literatura também está diabética. Todos os dias surgem novos escritores, novos editores, uma infinidade de títulos publicados física e virtualmente. Isso é ruim? Jamais, reflete a sede ancestral de expressão e reconhecimento. No entanto, essa inundação de letras não encontra a mesma quantidade de leitores habilitados e dispostos a absorvê-la. É como a glicose que se espalha sem controle num corpo com déficit de insulina.

No século 19 fazia-se literatura para ser lida, os textos publicados em jornais, como folhetins, renderam muitos dos nossos maiores e eternos clássicos. Editores eram editores e escritores primavam pela forma e estilo.

No século 21, editores são empresários e autores vivem como caixeiros-viajantes. As exigências contábeis sobrepõem-se às expectativas de qualidade e a intensa exposição íntima do autor em Redes Sociais é usada como ferramenta para atingir metas mercantis. Grandes editoras publicam o óbvio e ganham pela quantidade de livros vendidos. As firmas de fundo de quintal lucram através da quantidade de autores que publicam e adquirem as próprias obras. Antigamente existiam leitores (mesmo que poucos), hoje prevalecem os compradores. A literatura se transformou num produto para consumo e vem abandonando sua vocação como arte.

É a era dos tutores de redação, que pregam fórmulas, padrões, banalizam o vocabulário e predizem os temas propensos a ganharem status de best-sellers.

No facebook, cantores, atores, jornalistas da TV, magistrados, jovens oportunistas, pseudo-intelectuais e celebridades de ocasião disputam espaço e ganham um séquito de discípulos que cultuam a fama. São centenas e milhares curtindo esses personagens travestidos em escritores que exercitam a mídia eficiente e geram um rastro de escravos mentais fascinados por sentenças de sabedoria rasa e plastificada. Produção industrial substituindo o cuidado artesanal e o talento. Reflexos de um mundo dominado e submisso à tecnologia.
Não há cura para a diabetes humana, o caminho é o controle, moderar os exageros, a regra é uma melhor qualidade de vida.
Igualmente, a diabetes literária não tem remédio, nem sequer a possibilidade imediata de controle, a solução virá de um sistema educacional menos frágil e da formação de leitores mais críticos, que irão exigir um mercado editorial qualificado. Ou seja, o futuro e o otimismo são os profetas da esperança.

Brasil, pátria educadora. Tomara...

Numa rotina de tempo escasso, em que são lançados milhares de publicações à nossa vista, sem que seja possível a leitura da totalidade, prevalece a obrigação da seletividade. A propaganda e a repetição que compõem as técnicas de marketing nos empurram para títulos viciados ou ganhadores de prêmios manjados, cabe a nós cultivar o discernimento e um roteiro literário que agregue valor cultural.

Ano passado estive em eventos inesquecíveis na Academia Brasileira de Letras e na presença de autores com Cristóvão Tezza, João Ubaldo Ribeiro, Milton Hatoum, Antonio Carlos Secchin, Antônio Torres, entre outros. Parte da plateia ansiava somente por conhecer os hábitos desses escritores, o sistema de trabalho. Pouco me lembro de alguém levantando o conteúdo das obras e nem arguindo sobre os caminhos da composição.

Diante deste cenário materialista e saturado, o valor do que lemos é crucial para esculpir o pensamento, preencher o nosso vazio, traduzir qualquer mínima compreensão do universo que habitamos e para nos livrar da servidão estúpida aos ídolos de barro.

Nélida Piñon foi breve e essencial quando afirmou, numa brilhante palestra, que hoje se publica o que vende e não o que fica. Portanto, saiba cumprir a escolha do que ler, pois poucos serão os livros que nos trarão grandeza e muitos os que despejaremos pela urina.
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 17/02/2015
Reeditado em 25/01/2017
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