Em nosso tempo, onde a força midiática que embala a necessidade obsessiva de consumo se uniu à propagação atômica das redes sociais, a vaidade reveste-se numa espécie de religiosidade indispensável. A máxima de René Descartes (Penso, logo existo) se torna anacrônica diante de um mundo onde aparecer é o verdadeiro ato que comprova a existência. O gesto de divergir, antes uma manifestação do intelecto, agora pode ser interpretado como afronta social. O pensamento crítico transforma-se em ferramenta de uniformização. Aceitar é a regra, discordar é preconceito. Estamos na era da submissão da vontade.
 
Reclama-se da falta de leitores no Brasil, no entanto, o mais correto seria reivindicar melhores leitores. Num senso nacional recente, identificaram cerca de 88 milhões de pessoas que leem. Se usarmos esse número para fazer uma equivalência com o total da população brasileira, teremos um quadro crítico. Porém, os 88 milhões de leitores como parte ativa de um mercado consumidor é um quantitativo muito atraente. Dentro desse cenário, revelam que a média de leitura do brasileiro é de 4 livros por ano. Uma estatística magra (apesar de representar uma produção anual que supera os 300 milhões de exemplares) que se agrava diante dos caminhos precários pelos quais os leitores são conduzidos.
 
Percebe-se uma preocupação imediata aumentar o índice de leitores, um zelo que comete o equívoco da precipitação. O que se impõe como urgência é a formação de melhores leitores, indivíduos que desenvolvam capacidade crítica, discernimento, que sejam capazes a reagir às manobras publicitárias e que olhem sem medo para a literatura que desafia e instiga a interpretação.  Não precisamos do leitor de bula, que despreza a química das palavras e só se interessa pela obviedade da posologia. Bons olhos precisam de um cérebro vivo.
 
Há quatro décadas, antes do desmantelamento da educação e da degradação cultural, crianças e adolescentes liam Monteiro Lobato, Machado de Assis, Cecília Meireles, Raquel de Queiroz, Érico Veríssimo, Maria Clara Machado, etc. Hoje, nossos pobres herdeiros estão condenados a uma lista dramática que possui como expoentes J. K. Rowling e Thalita Rebouças. Nada que as desabone, mas a nova geração perde o privilégio de conhecer escritores, pois o mercado editorial prefere o conforto seguro de apostar naqueles que são hábeis comerciantes.
 
Para os adultos, a realidade não é menos trágica, a fama é um deslumbramento universal. Ao nos depararmos com as estantes das livrarias iluminadas pelo neon estelar de Pedro Bial, Fernanda Torres, Lobão, Edney Silvestre, Miriam Leitão, Daniel, não esquecendo R.R. Martin, é irrefreável a nostalgia que nos remete à lembrança de Drummond, Rubem Braga, Raduan Nassar, Vinícius de Moraes, Jorge Amado, Víctor Giudice, etc. Pedantismo deste articulista? Deduzam o que for conveniente, mas é inegável a queda de qualidade que passou a congestionar nossas bibliotecas. Livrarias e editoras padecem de uma síncope literária que abre espaço para a síndrome de celebridade. Porém, mesmo na tragédia, há o consolo, refresca a alma saber que uns poucos bons escritores encontrem público. A explicação do apocalipse reside numa breve frase brilhante de Nélida Piñon: “Publica-se o que vende e não mais a literatura que fica”.
 
Quando levamos em conta a quantidade de blogs e resenhistas que pipocam Brasil a fora, temos a certeza que não faltam leitores. Teoriza-se que o sistema educacional ainda deficiente, somado a covardia das editoras, faça prevalecer os maus leitores, aqueles que são adestrados para uma literatura fácil, que não exige aprofundamento. Esses leitores obtusos são tocados ao ritmo de manada, são vítimas de um marketing que direciona o consumo. Livros são vendidos como objetos ornamentais, dotados de belas capas coloridas, o conteúdo é apresentado como se fosse um DVD. Ao transfigurar a arte que habita o abstrato em elemento decorativo, o ato da comercialização flui com mais facilidade. Impuseram à literatura uma obrigação visual que não integra a prioridade da escrita.
 
A globalização amplia benesses e perpetua perdas, a vida de gado nos engole, resistir é inútil. Cada vez mais, ouvimos críticas a uma literatura que editores e agentes literários chamam de cerebral, é a ela que imputam o afastamento histórico do leitor brasileiro das publicações nacionais. É provável que, num futuro próximo, tenhamos que nos referir à literatura contemporânea como obra intestinal, assim evitaremos melindrar quem quer que seja.
 
Esquecem, os que conduzem a marcha, que a humanidade não é composta somente de rebanhos. As ovelhas negras acompanham de longe, alheias ao berrante e a sedução do pastor. Pensam. Questionam. Conviver não significa aceitar e o não aceitar não é prenúncio da discriminação. Rebeldes são arquitetos da esperança. Quando os vemos bradando, soa na memória, como se fosse um hino, os versos épicos de José Régio:

Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!