O escritor é o avesso - desde a adolescência foi como defini esse personagem mergulhado no vácuo, buscando na própria dissolução construir com as palavras um universo que sempre revela a alma daquele que escreve. Alguns escritores se apressam em dizer que não fazem da prosa ou da poesia um confessionário, quem diz isso é um mentiroso, porque todo escritor mente sobre suas reais intenções. Não há literatura sem algum tipo de confissão, que venha ela criptografada, envernizada ou camuflada. Talvez, escrever seja dizer a sua verdade fingindo que é a verdade do outro.
“O poeta é um fingidor” - sentenciava Fernando Pessoa.
E foi com Pessoa que eu vivi a primeira epifania literária. Adolescente, de férias num sítio em Petrópolis, puxo à revelia um livro da biblioteca e me deparo com quatro versos que agiram em mim como a Pedra Filosofal. Transformaram meu infantil pensamento de jovem burguês numa avassaladora consciência crítica. A implosão de um mundo ilusório deu lugar às ruínas que formam a realidade.
“Os Deuses vendem quando dão,
Compra-se a glória com desgraça,
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!”
Versos clássicos que constam em “Mensagem”. Por anos a fio essa estrofe me assombrou, dela desabrochou uma incurável inquietação. Todo o sentido fugaz que a vida parecia ter na juventude desapareceu diante da desconstrução abissal que a poesia é capaz de causar. Fernando Pessoa me apresentou ao avesso e foi a primeira vez que sonhei a pretensão de ser escritor.
Escrever parecia simples, parecia fácil no início. Na primeira página em branco descobrimos que é preciso adestrar a emoção pela razão, que é crucial domar a palavra. Quando nascem as primeiras linhas, os primeiros parágrafos, o texto ganha o efeito de um espelho nos impondo o sentimento de uma obra incompleta, incapaz, simplória. É sincero quem diz que escrever é cultivar a dor. Mas por que escrevemos? Porque algum livro, num período qualquer, nos convenceu. Quem escreve vicia no isolar-se em si mesmo, habitua-se ao silencioso deslizar da caneta ou ao tique ritmado do teclado costurando nossos fragmentos para nos ampliar em narrativas, versos ou em outros fragmentos que almejam nos trazer sentido. Quem escreve escolhe existir no avesso das coisas que Drummond exaltou.
Acredito que todo escritor nasce de um Big Bang íntimo, sucessivas implosões que o capacitam a criar as maquetes impalpáveis que se erguem nos livros.
A minha segunda implosão viria quando conheci um escritor de fato: Víctor Giudice, pai de um querido amigo. Víctor era a antítese do que eu imaginava de um escritor. Carismático, divertido, um magistral contador de histórias. Éramos um grupo de amigos, todos muito jovens, e passávamos horas ouvindo entusiasmados os causos do Víctor. Meu primeiro contato com a sua obra foi a leitura de um conto chamado “O Arquivo”, uma fantástica jornada ao avesso de um homem.
Até conhecer o Víctor eu pensava em fazer biologia, depois de conhece-lo fiz o vestibular para Letras. Ao ser aprovado, foi o Víctor que me levou para conhecer o campus da UFRJ. Este episódio me recordou um filme americano, repleto de clichês, intitulado no Brasil como “Encontrando Forrester”, Sean Connery fazia o papel de um escritor que tutelava um rapaz talentoso, mas em conflito com sua aptidão. Existem pessoas que podem fortalecer nossa opção por um caminho que hesitávamos seguir.
A terceira implosão veio com duas frases que iniciam a “Hora da Estrela”, de Clarice Lispector.
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”.
Foi quando disse sim e confrontei meu avesso. Que eu seja simplório, inacabado, incompleto, mas literatura remendaria meus retalhos, escrever anunciava a única redenção possível.
Escrever é estar no extremo de si mesmo – ensina João Cabral de Melo Neto.
Antes da Internet, dos Blogs e das Redes Sociais, a leitora mais dedicada de um aspirante a escritor eram as gavetas. Hoje temos o privilégio que muitos não alcançaram e podemos compartilhar, sem fronteiras, os textos que produzimos. Uma benção. Às vezes, uma tragédia.
“Chego, agora, ao inefável centro de meu relato, começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca?” (O Aleph – J.L.Borges)
Jorge Luiz Borges trouxe o meu desespero, na grandeza absoluta e inquestionável da sua narrativa. O Aleph me mostrava a distância entre escrever e ser escritor, o abismo entre o gênio e o medíocre. O Borges cego, que germinou numa biblioteca, me fez aceitar o inalcançável, mas também me convenci que o único patrimônio de uma vocação é a insistência.
“Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista por um autor que quisesse – isto é, que pudesse – pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa.” (A Filosofia da composição, de E.A.Poe)
No século 19, Poe reclamava do egoísmo didático dos autores eméritos. No século 21, escritores de talento questionável ganham dinheiro ensinando banalidades com seus métodos pasteurizados. Sim, o tempo muda os hábitos e precisamos saber se há benefício nisso. Recebo como afronta quando alguém afirma, com gesto largo e orgulhoso, que faz literatura comercial. Como? A língua é legado e a palavra é um patrimônio, jamais pode servir ao mercado ou à vaidade, a natureza da palavra é partilhar.
Alguém poderá me refutar quando eu disser que nunca me interessei em aprender a escrever dissecando formalmente as obras dos grandes mestres.
“O que tem de bom na galinha assada é que ela não cacareja” – profetizava Quintana em Poemas para a Infância.
A leitura eficiente não quer radiografar o método, quer saborear os temperos e assim decifrar a receita. Não tenho fé em nenhum bom escritor que negue ter brotado de leituras honestas e vastas. Os legítimos escritores foram persuadidos a escrever por algum livro que os arrebatou. Fiz Letras sem nunca me apegar a erudição cirúrgica da autópsia literária.
“A primeira condição de quem escreve é não aborrecer” – me avisa, somente agora, Machado de Assis.
Pois termino aqui meus devaneios com a única máxima que me faz desejar aprender e ir adiante: escrever é seduzir.
“O poeta é um fingidor” - sentenciava Fernando Pessoa.
E foi com Pessoa que eu vivi a primeira epifania literária. Adolescente, de férias num sítio em Petrópolis, puxo à revelia um livro da biblioteca e me deparo com quatro versos que agiram em mim como a Pedra Filosofal. Transformaram meu infantil pensamento de jovem burguês numa avassaladora consciência crítica. A implosão de um mundo ilusório deu lugar às ruínas que formam a realidade.
“Os Deuses vendem quando dão,
Compra-se a glória com desgraça,
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!”
Versos clássicos que constam em “Mensagem”. Por anos a fio essa estrofe me assombrou, dela desabrochou uma incurável inquietação. Todo o sentido fugaz que a vida parecia ter na juventude desapareceu diante da desconstrução abissal que a poesia é capaz de causar. Fernando Pessoa me apresentou ao avesso e foi a primeira vez que sonhei a pretensão de ser escritor.
Escrever parecia simples, parecia fácil no início. Na primeira página em branco descobrimos que é preciso adestrar a emoção pela razão, que é crucial domar a palavra. Quando nascem as primeiras linhas, os primeiros parágrafos, o texto ganha o efeito de um espelho nos impondo o sentimento de uma obra incompleta, incapaz, simplória. É sincero quem diz que escrever é cultivar a dor. Mas por que escrevemos? Porque algum livro, num período qualquer, nos convenceu. Quem escreve vicia no isolar-se em si mesmo, habitua-se ao silencioso deslizar da caneta ou ao tique ritmado do teclado costurando nossos fragmentos para nos ampliar em narrativas, versos ou em outros fragmentos que almejam nos trazer sentido. Quem escreve escolhe existir no avesso das coisas que Drummond exaltou.
Acredito que todo escritor nasce de um Big Bang íntimo, sucessivas implosões que o capacitam a criar as maquetes impalpáveis que se erguem nos livros.
A minha segunda implosão viria quando conheci um escritor de fato: Víctor Giudice, pai de um querido amigo. Víctor era a antítese do que eu imaginava de um escritor. Carismático, divertido, um magistral contador de histórias. Éramos um grupo de amigos, todos muito jovens, e passávamos horas ouvindo entusiasmados os causos do Víctor. Meu primeiro contato com a sua obra foi a leitura de um conto chamado “O Arquivo”, uma fantástica jornada ao avesso de um homem.
Até conhecer o Víctor eu pensava em fazer biologia, depois de conhece-lo fiz o vestibular para Letras. Ao ser aprovado, foi o Víctor que me levou para conhecer o campus da UFRJ. Este episódio me recordou um filme americano, repleto de clichês, intitulado no Brasil como “Encontrando Forrester”, Sean Connery fazia o papel de um escritor que tutelava um rapaz talentoso, mas em conflito com sua aptidão. Existem pessoas que podem fortalecer nossa opção por um caminho que hesitávamos seguir.
A terceira implosão veio com duas frases que iniciam a “Hora da Estrela”, de Clarice Lispector.
“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida”.
Foi quando disse sim e confrontei meu avesso. Que eu seja simplório, inacabado, incompleto, mas literatura remendaria meus retalhos, escrever anunciava a única redenção possível.
Escrever é estar no extremo de si mesmo – ensina João Cabral de Melo Neto.
Antes da Internet, dos Blogs e das Redes Sociais, a leitora mais dedicada de um aspirante a escritor eram as gavetas. Hoje temos o privilégio que muitos não alcançaram e podemos compartilhar, sem fronteiras, os textos que produzimos. Uma benção. Às vezes, uma tragédia.
“Chego, agora, ao inefável centro de meu relato, começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca?” (O Aleph – J.L.Borges)
Jorge Luiz Borges trouxe o meu desespero, na grandeza absoluta e inquestionável da sua narrativa. O Aleph me mostrava a distância entre escrever e ser escritor, o abismo entre o gênio e o medíocre. O Borges cego, que germinou numa biblioteca, me fez aceitar o inalcançável, mas também me convenci que o único patrimônio de uma vocação é a insistência.
“Muitas vezes pensei quão interessantemente podia ser escrita uma revista por um autor que quisesse – isto é, que pudesse – pormenorizar, passo a passo, os processos pelos quais qualquer uma de suas composições atingia seu ponto de acabamento. Por que uma publicação assim nunca foi dada ao mundo é coisa que não sei explicar, mas talvez a vaidade dos autores tenha mais responsabilidade por essa omissão do que qualquer outra causa.” (A Filosofia da composição, de E.A.Poe)
No século 19, Poe reclamava do egoísmo didático dos autores eméritos. No século 21, escritores de talento questionável ganham dinheiro ensinando banalidades com seus métodos pasteurizados. Sim, o tempo muda os hábitos e precisamos saber se há benefício nisso. Recebo como afronta quando alguém afirma, com gesto largo e orgulhoso, que faz literatura comercial. Como? A língua é legado e a palavra é um patrimônio, jamais pode servir ao mercado ou à vaidade, a natureza da palavra é partilhar.
Alguém poderá me refutar quando eu disser que nunca me interessei em aprender a escrever dissecando formalmente as obras dos grandes mestres.
“O que tem de bom na galinha assada é que ela não cacareja” – profetizava Quintana em Poemas para a Infância.
A leitura eficiente não quer radiografar o método, quer saborear os temperos e assim decifrar a receita. Não tenho fé em nenhum bom escritor que negue ter brotado de leituras honestas e vastas. Os legítimos escritores foram persuadidos a escrever por algum livro que os arrebatou. Fiz Letras sem nunca me apegar a erudição cirúrgica da autópsia literária.
“A primeira condição de quem escreve é não aborrecer” – me avisa, somente agora, Machado de Assis.
Pois termino aqui meus devaneios com a única máxima que me faz desejar aprender e ir adiante: escrever é seduzir.