CRÍTICA E PROFISSÃO DE FÉ EM “AUTO DA BARCA DO INFERNO”, DE GIL VICENTE

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar a obra Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, atentando simultaneamente para os aspectos da crítica e da ortodoxia doutrinária. Defendemos que a crítica em Gil Vicente apresentada ao comportamento social no período de transição da Idade Média à Idade Moderna não se limita à apreensão do ridículo das situações, como uma mera crítica aos males da sociedade, mas busca defender a “verdadeira teologia”. Seu objetivo não é apenas rir à custa de um tipo social, mas “reconstruir”, tendo em vista os dogmas de sua Fé. Baseamo-nos, dentre outros autores, em Moser [19–], cujas ideias destacam o espírito reformador de Gil Vicente; Müller-Bochat (1969), para a compreensão do contexto entre a Idade Média e o Renascimento e questões próprias do Humanismo; Saraiva & Lopes (2010) e Moisés (1999), quanto às origens do teatro em Portugal, à história da literatura portuguesa, e aos procedimentos de análise literária.

PALAVRAS-CHAVE: Gil Vicente. Auto da Barca do Inferno. Crítica. Ortodoxia.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo busca compreender a obra de Gil Vicente através da análise de uma de suas criações mais conhecidas e importantes, "Auto da Barca do Inferno", atentando simultaneamente para os aspectos da crítica e da ortodoxia doutrinária. Ao contrário do que possa parecer, a obra de Gil Vicente não se esgota no caráter puramente satírico, de provocar o riso do público ou de abstrair de tipos sociais, de seus vícios e dramas, o ridículo e o engraçado. Mais do que isso, Gil Vicente revela o quanto acredita na verdadeira missão da Igreja e na ação purificadora de sua crítica.

A princípio, procuramos apresentar um panorama geral da realidade social da época, focando o contexto social e histórico de produção do "Auto da Barca do Inferno". Esta obra foi escrita em 1517, período da história que corresponde à transição da Idade Média para a Idade Moderna. Transição marcada por grandes mudanças: de um lado estava o avanço da ciência, e das navegações ultramarinas, desenvolvimento do comercio e ascensão da burguesia mercantilista; do outro a decadência da Igreja Católica e o “surgimento” de novas religiões.

Embora alguns autores digam que Gil Vicente se enquadra nesse momento de transição, estando ligado tanto ao medievalismo quanto ao humanismo renascentista, uma vez que Gil Vicente pensa em Deus, característica do mundo medieval, e, ao mesmo tempo, critica de forma impiedosa todas as camadas da sociedade de seu tempo, adotando uma postura moderna, defendemos, por outro lado, que a crítica em Gil Vicente está a serviço de sua fé católica, e não propriamente de uma atitude e sentimentos novos de liberdade social e individual. Consideramos que o argumento que exalta as afinidades de Gil Vicente com outros humanistas, com Erasmo, por exemplo, “[...] na defesa da integridade, do bom senso e da Verdade” (MOSER, [19–]), só tem sentido se relacionado exclusivamente aos dogmas da Igreja Católica. Diferentemente do espírito humanista, que buscava harmonizar o pagão com o cristão, juntamente com influências judaicas, árabes e orientais, o dramaturgo português exalta a observância da ortodoxia católica.

Na segunda seção deste trabalho, procuramos apresentar as origens do teatro em Portugal, suas características primordiais e transformações ao longo do tempo, bem como as influências, a formação e as particularidades do teatro de Gil Vicente. A seguir, na terceira seção, faremos de início uma apresentação da obra "Auto da Barca do Inferno" através da exposição do resumo e da análise das microestruturas(ação, cena, personagens, expedientes de linguagem etc.) que constituem a obra; e, posteriormente, faz-se uma sobre os aspectos específicos da crítica e da ortodoxia presentes na obra em questão.

Adotamos a abordagem qualitativa de pesquisa, que se caracteriza pelo aprofundamento da compreensão de um determinado objeto, e a modalidade bibliográfica, visto lidarmos com dados de diferentes contribuições científicas disponíveis sobre o tema em questão. Assim, através dos estudos de Moser ([19–]), cujas ideias destacam o espírito reformador de Gil Vicente, Müller-Bochat (1969), sobre o contexto entre a Idade Média e o Renascimento,Saraiva & Lopes (2010) e Moisés (1999), sobre as origens do teatro em Portugal e questões próprias da literatura portuguesa, pretendemos desenvolver ideias relevantes e que contribuam para o desenvolvimento do assunto.

Faremos, portanto, uma análise da obra "Auto da Barca do Inferno" tendo em vista a reflexão dos aspectos específicos da crítica e da ortodoxia trabalhados por Gil Vicente quanto à consideração do comportamento social no período de transição da Idade Média à Idade Moderna.

2 ENTRE A IDADE MÉDIA E O RENASCIMENTO

No final do século XV e início do século XVI vários países europeus lançaram-se ao mar, em especial Portugal e Espanha. Esses países tinham objetivos em comuns: conquistar novas terras e descobrir nova rota marítima para as Índias. Tal período ficou conhecido como Era das Grandes Navegações e Descobrimentos Marítimos, que exerceria influência decisiva nas crenças e costumes da época.

Durante o século XV, os países que tinham interesse em comprar especiarias, como pimenta, cravo, canela, gengibre e outros temperos, necessitavam recorrer aos comerciantes, principalmente venezianos e genoveses, que possuíam o monopólio desses produtos. Esses burgueses tinham acesso direto ao oriente e cobravam altos preços por tais especiarias. Como os italianos dominavam o canal de transporte dessas mercadorias, os portugueses tinham que se submeter a esses preços exorbitantes.

Dentre os fatores que impulsionaram Portugal a se lançar no mar estava o desejo de cessar a necessidade do intermédio italiano e negociar diretamente com as fontes orientais, bem como conquistar novas terras e, consequentemente, conseguir matérias-primas e metais preciosos escassos no continente europeu. Não só os comerciantes, mas também reis, e mesmo a Igreja, tinham interesse nesse comércio, pois significaria mais poderes, além da expansão da fé cristã.

Portugal foi o primeiro país da Europa a singrar os mares nesse período das Grandes Navegações. Isso se deu mediante vários motivos, um deles foi por ter uma burguesia enriquecida e atuante que investiu nas navegações com intuito de comercializar em diferentes partes do mundo.Outro fator não menos importante foi a centralização política com a Revolução de Avis, ocorrida entre 1383 e 1385, que consolida a força da burguesia mercantil, fazendo com que Portugal obtenha o título de primeiro país unificado da Europa.

Além desses fatores supracitados, Portugal tinha uma posição geográfica favorável, como também o estudo náutico realizado na Escola de Sagres sob o comando de D. Henrique, o que posteriormente fez Portugal tornar-se um dos mais importantes entrepostos comerciais durante a Era das Grandes Navegações Marítimas.

Durante esse período os portugueses realizaram importantes navegações. Dentre as quais, a mais conhecida é sem dúvida aquela que Vasco da Gama empreendeu rumo as Índias. Imortalizada por Camões no poema épico "Os Lusíadas", a viagem trouxe consigo novidades em vários campos do saber, possibilitando o contato com ideologias diversas e a confluência com novas concepções surgidas na Europa e que contrariavam aquilo que se acreditava até então. Mitos e lendas deixavam de ser a única explicação para o desconhecido, “o mundo das trevas” da Idade Média começava a ser esclarecido pelo uso da razão e questionado em suas bases, inclusive espiritualmente quanto aos ensinamentos difundidos pela Igreja Católica.

Com isso o ser humano começava a se perceber como um ser racional, curioso sobre sua existência e capaz de intervir no mundo em proveito próprio. Há uma espécie de humanização da cultura, o que insere Portugal no movimento denominado Humanismo – movimento de compreensão antropocêntrica e racionalista que compreende a transição da Idade Média para a Idade Moderna –difundido em toda a Europa.

O Humanismo surgiu na Itália entre os séculos XIV e XV, e se espalhou posteriormente pelo resto da Europa. Era um movimento que colocava o homem e suas potencialidades como o centro de interesse e de importância entre todas as coisas do universo. Os humanistas eram estudiosos letrados admiradores da cultura antiga, devido seus exemplos de grandeza e humanidade; procuravam sempre traduzir e divulgar textos de escritores clássicos, o que possibilitou a ampliação do conhecimento sobre a antiguidade entre os cidadãos (conhecimento este restrito aos membros da Igreja), abrindo assim novas perspectivas para o desenvolvimento intelectual na Europa.

Nessa época, a política, a economia, as artes eram de competência direta da Igreja Católica. Grande parte da vida econômica estava organizada em torno dos interesses do Papa. No entanto, muitos monarcas não estavam satisfeitos com esse enorme poder que o Papa exercia no mundo, ao mesmo tempo, que muitos teólogos criticavam a doutrina e as práticas da Igreja, sua atitude para com a fé e seu feitio organizacional.

O primeiro a mostrar-se insatisfeito com os rumos morais que a Igreja adotava foi Lutero. Este contestou fortemente diversas práticas exercidas pela Igreja naqueles tempos, principalmente a venda de indulgências, propondo, por fim, a fundação de uma nova vertente do cristianismo, conhecida nos dias atuais como luteranismo (ou religião luterana). Este movimento teve o apoio de príncipes e nobres que ansiavam apoderar-se dos bens materiais que a Igreja Católica possuía; os camponeses, por sua vez, queriam se livrar dos impostos que até então pagavam para o clero, e a burguesia buscava e apoiava uma religião que não interferisse em suas atividades comerciais.

Gil Vicente, que nasceu provavelmente em 1465 e morreu em 1537, vive nessa época de grande euforia na Europa, testemunhando lutas políticas, conquistas de terras e ainda o início da decadência do reinado de D. João III. Escreve suas obras numa época em que Portugal atravessa por um momento crucial na sua história. Ele busca inspiração nas realidades do momento histórico, retratando de maneira fidedigna uma sociedade que estava se submergindo aos vícios e imoralidades, fazendo uma rigorosa crítica aos indivíduos - que se deixavam corromper por tais desmoralizações, sendo alvo principal os membros do clero e a fidalguia.

3 GIL VICENTE E O TEATRO EM PORTUGAL

As obras de Gil Vicente estão situadas no período conhecido como Humanismo. Esse movimento compreende a nomeação de Fernão Lopes para o cargo de Cronista-mor da Torre de Tombo, em 1434, até o retorno de Sá de Miranda da Itália, quando introduz Portugal a uma nova estética clássica no ano de 1527.

Esse período, além do desenvolvimento político, religioso e econômico, é marcado também pelo desenvolvimento da prosa “literária” graças ao trabalho de Fernão Lopes, assim como também o teatro popular com a produção de Gil Vicente.

O teatro é de origem francesa datado em meados do século XII. A princípio esse teatro consistia em breves apresentações de cunho religioso, encenados em datas festivas como Páscoa e Natal.

Na Idade Média podemos distinguir dois tipos de encenações: as religiosas ou litúrgica e as profanas. A primeira subdividia-se em mistérios-representações de passagens da vida de Cristo, sendo realizada geralmente na época do Natal e Páscoa; milagres – encenações de milagres operados por santos; e moralidade – representação dramática com intuito de moralizar os costumes. As encenações profanas dividiam-se em arremedilho ou arremedo – que eram imitações de pessoas ou acontecimentos; monos – encenações carnavalescas de temáticas muito variadas, apresentando personagens marcados; e entremezes – representação teatral jocosa, de curta duração que serve de entreato da peça principal.

A princípio essas encenações aconteciam no altar das igrejas e com um número reduzido de atores, mas com o passar do tempo o “povo entrou a apresentar suas peças, já agora de carácter não-religioso, num tablado erguido no pátio defronte à igreja: daí seu carácter profano, isto é que fica fora, diante (pro) do templo (fanu)” (MOISÉS, 1999, p. 40, grifos do autor), facilitando, assim, a disseminação por toda a Europa.

Segundo Moisés (1999), o teatro português foi introduzido por Gil Vicente seguindo o exemplo de Jean del Encina, escritor espanhol, o qual escrevia obras de carácter religioso e pastoril.

Gil Vicente é considerado o pai do teatro em Portugal, no entanto não podemos afirmar com convicção que não houve representações cênicas anteriores a ele. Certamente o que o diferencia é o teor literário perceptível em suas obras, como corrobora Spina (s/d, p. 84):

Antes do aparecimento de Gil Vicente, não podemos falar num teatro em Portugal, não obstante possamos respingar algumas notícias de dramaturgia religiosa durante a Idade Média e alguns documentos de teatro alegórico na época de D. João II, um teatro à base de pura cenografia e em que a palavra literária esteve quase inteiramente ausente.

Pouco sabemos sobre a origem de Gil Vicente. Acreditamos que nasceu por volta de 1465, e que morreu em 1536. Viveu a maior parte de sua vida servindo a corte, possuía bons conhecimentos da língua portuguesa, bem como do castelhano, do latim e de assuntos teológicos. O certo é que iniciou sua carreira de artista renomado em 1502, mais precisamente em 07 de julho, quando recitou o "Monólogo do Vaqueiro" no quarto de D. Maria de Castela, esposa de D Manuel, em comemoração ao nascimento do futuro D. João III. Como consequência da boa impressão causada pela apresentação, Gil Vicente foi intimado a recitá-la novamente nas festas de Natal. A partir daí o teatrólogo dedica-se a escrever e representar suas peças para o divertimento da nobreza e da fidalguia.

A produção total de Gil Vicente constitui-se de 46 peças, entre farsas, moralidades e comédias. Segundo Moisés (1999, p. 41), didaticamente para melhor compreensão, podemos dividi-la em três fases. A primeira fase corresponde ao período de 1502 a 1514, período de forte influência do escritor castelhano Juan delEncina, sendo visivelmente na temática religiosa e pastoril; a segunda fase de 1515 a 1527 é o período onde se encontram as melhores peças vicentinas, dentre as quais a "Trilogia das Barcas" (sendo o Auto da Barca do Inferno a primeira das três peças); e a terceira fase, que vai de 1528 a 1536 (data de encenação de sua última peça,Floresta de Enganos), fase em que é perceptível influências do classicismo renascentista.

Quanto aos temas das obras vicentinas, podem ser divididos em dois tipos, em tradicional e de atualidade. “O primeiro diz respeito àquilo que é de evidente e predominante inflexão medieval [...], o teatro de atualidade caracteriza-se por conter o retrato satírico da sociedade do tempo, em seus vários estratos, a fidalguia, a burguesia, o clero e a plebe” (MOISÉS,1999, p. 41).

O teatro vicentino situa-se em meio a uma sociedade em grandes transformações, refletindo em suas obras as ações dos indivíduos que a compunha: de um lado as conquistas ultramarinas, desenvolvimento do comércio, ascensão da burguesia mercantilista, progresso da ciência; por outro lado uma cultura em crise, acarretando uma quebra na unidade religiosa. É um momento de transição entre a Idade Média e o Renascimento, sendo perceptível certa oscilação entre o teocentrismo, característico da Idade Média, e o antropocentrismo ascendente da Idade Moderna.

Apesar do acentuado caráter medieval de algumas obras de Gil Vicente, seria pouco elucidativo afirmar simplesmente que o dramaturgo rejeita tudo aquilo que representa a nova sociedade, em prol de sua ortodoxia. Como também não podemos dizer que Gil Vicente tenha sido um adepto consciente do mundo moderno. Nessa perspectiva é observável que Gil Vicente quis corrigir os vícios da sociedade de sua época, especialmente aqueles que contaminavam a real missão do catolicismo, exaltando a observância aos princípios cristãos através de uma crítica severa, independente de classe social; e que, por isso mesmo, foi capaz de aliar crítica (sinal dos novos tempos) e ortodoxia (prevalência dos princípios doutrinários da Igreja): “[...] é um teatro que tem, na exata medida do tempo, olhos voltados para trás, contemplando um mundo que morria (e a que Gil Vicente pertencia por ideologia e formação), e para frente, na intuição feliz do novo rumo tomado pelo embate das ideias.” (MOISÉS, 1999, p. 44). Não se trata, como se poderia pensar, de um Gil Vicente plenamente consciente dos valores apregoados pelo mundo moderno, mas de alguém que soube se utilizar de um aspecto fundamental desse novo mundo (a crítica, o embate de ideias), para defender e exaltar aquilo que lhe era mais caro: a fé cristã.

As práticas religiosas criticadas pelo dramaturgo não estão relacionadas com o “corpo místico e corpo de doutrina”, mas ao elemento humano, “falível e nessa altura particularmente merecedor de vergastadas da crítica, a bem da Cristandade” (MOSER, [19–], p. 109), que exercia a opressão sobre seus fiéis seguidores, bem como a insensatez, a ganância, fator que gera uma série de problemas, como um excesso de frades sem a menor vocação para o serviço religioso. O dramaturgo destaca ainda a venda de indulgências, o sistema de rezas decoradas, sem o menor ato de fé; a cobiça incessante e o esmagamento dos valores cristãos, e uma sociedade que se deixava levar pela avareza, ignorância, interesse materialista, desejos carnais, a soberba, a vaidade, a corrupção, dentre outros “pecados” que afastava o indivíduo do caminho de Deus e da salvação.

Talvez pela sua profunda religiosidade, o tipo mais satirizado nas obras vicentinas é o frade, que se entrega aos pecados carnais, aos amores proibidos, à ganância decorrente da venda de indulgências; concomitantemente, condena os pecados cometidos pelos burgueses; o misticismo, o mundanismo, à depravação dos costumes também não passam despercebidos. Tudo aquilo que é estranho à “verdadeira teologia” (e incluímos a liberdade social e individual para desfrutar um mundo ainda virgem, atitude típica do humanismo) deve ser extirpado da Igreja e, consequentemente, da sociedade.

Mesmo escrevendo para uma corte que na época tinha todo o poder de comando sobre as outras classes sociais, Gil Vicente não deixou de impor suas críticas, embora tivesse que suavizar sua ousadia satírica. O dramaturgo exerce uma função moralizadora, ao mesmo tempo, que consegue divertir a corte com o pitoresco e a espontaneidade, pondo “[...] em prática o lema do castigatridendo mores (rindo, corrige os costumes), realizando o princípio de que a graça e o riso [...] exerce ação purificadora, educativa e purgadora de vícios e defeitos”(MOISÉS, 1999, p. 44).

Além da sátira que faz à sociedade daquela época, o teatro vicentino é caracterizado também pela sua popularidade nos temas, nos atores e na linguagem. Diferente do modelo clássico, não seguiu rigidamente o princípio do teatro grego das três unidades: espaço, ação e tempo, expressas por Aristóteles. Segundo estas, o texto teatral deveria transcorrer em um único lugar – no máximo nos limites de um a cidade –, em um tempo limitado – período que não excedesse 24 horas –, e apresentar somente uma ação.

Gil Vicente não trabalha propriamente com conflitos psicológicos, ou seja, com caracteres individualistas, mas sim com tipos sociais, tais como: tipos humanos – a alcoviteira, o escudeiro; e figuras sobrenaturais – o Anjo e o Diabo. Como corrobora Saraiva &Lopes (2010, p. 1998):

Diferentemente do que sucede com o teatro clássico, o teatro vicentino não tem como propósito apresentar conflitos psicológicos. Não é um teatro de caracteres e de contradições entre (ou dentro de) eles, mas um teatro de sátira social ou um teatro de ideias. No palco vicentino não perpassam caracteres individualizados, mas tipos sociais agindo segundo a lógica de sua condição fixada de uma vez para sempre; e outro antes personificados.

É relevante salientar, que a maioria dos personagens das obras vicentinas não é conhecida pelo nome, mas sim pela profissão ou pelo papel social que ela representa.

4 ANÁLISE DO “AUTO DA BARCA DO INFERNO”

4.1 RESUMO E ANÁLISE ESTRUTURAL DA OBRA

No emanar de sua vida, Gil Vicente soube aproveitar a oportunidade para expressar sua opinião de maneira ousada sobreos vícios sociais, especialmente os relativos à nobreza e ao clero. Essa crítica foi exposta em várias obras, entre elas estão oAuto da Barca do Inferno, apresentada pela primeira vez em 1517, na câmara da rainha D. Maria de Castela, que estava enferma.

A obra "Auto da Barca do Inferno" faz parte da "Trilogia das Barca"s, sendo a primeira a ser escrita por Gil Vicente. Tem como cenário imaginário um porto, onde estão ancoradas duas barcas: uma com destino para o inferno, e outra como destino para o paraíso. Os comandantes das respectivas embarcações são o Diabo (que traz consigo um companheiro) e o Anjo, ambos responsáveis pelo julgamento das almas de representantes de variadas classes sociais e de algumas atividades diversas. Cada personagem é julgado e condenado pelos atos cometidos em vida, sendo posteriormente conduzido ao seu destino, embarcando em companhia do Diabo, na Barca do Inferno, ou do Anjo, na Barca do Céu.

Este auto é denominado por Gil Vicente de “auto da moralidade”, por representar simbolicamente os vícios e/ou virtudes encarnados nas personagens.

Quanto à estrutura interna da obra, podemos afirmar que a obra não segue um enredo, pois as cenas são muito semelhantes. Nada mais é do que a apresentação de cada personagem onde elas argumentam com o Diabo e com o Anjo a respeito de seus feitos em terra, e dependendo de suas ações, embarcam no batel divinal ou na barca do inferno. Geralmente o trajeto das personagens também são similares, exceto o judeu que já vai na certeza de embarcar no batel infernal e nem isso consegue de primeira instância.

Quanto ao estilo, podemos dizer que todo o auto é escrito em tom coloquial, numa linguagem que s e aproxima da fala daquela época, revelando assim a condição social das personagens.

Quanto aos versos, todos são redondilhas maiores, sete sílabas poéticas, obedecendo, geralmente, a rima ABBAACCA:

Olá, ó demo barqueiro! (A)

Sabeis vós no que me fundo (B)

Quero lá tornar ao mundo (B)

E trarei o meu dinheiro (A)

Aqueloutro marinheiro (A)

Porque me vê vir sem nada (C)

Dá-me tanta borregada (C)

Como arrais lá do barreiro (A)

Segundo Moisés (2012, p. 246) “[...] as partes principais que integram uma peça de teatro recebem o nome de atos [...], caracterizam-se pelo fato de entre eles suspender-se a representação, baixar as cortinas e oferecer-se um intervalo”, no caso da peça Auto da barca do Inferno,podemos assegurar que é uma peça constituída por apenas um ato, pois o enredo sintetiza-se na condenação ou a glorificação das almas, sendo que não há mudança no cenário.

As partes que dividem um ato recebem o nome de cenas, “cuja caracterização é menos simples que a do ato” (MOISÉS, 2012, p. 246). Sendo assim, podemos ainda fazer a correspondência a cada entrada das almas na estória a uma cena, constando assim, onze cenas.

A identificação dos personagens é dada pela classe social a que pertencem ou pela função que desempenham em um determinado grupo.

Na primeira cena do auto, o Diabo e o Anjo dividem o cenário, sendo cada um em uma barca esperando as almas para serem julgadas. Ao contrário do Anjo, o Diabo e seu Companheiro mostram-se eufóricos nesse momento, pois esperam que sua barca partirá repleta de condenadas (almas). Com isso é perceptível as posições assumidas por ambas as partes, acentuando a posição existente entre o Bem e o Mal.

O Anjo apresenta-se como uma figura neutra, quase estática, o qual não fala muito durante o enredo, porém este é o único personagem que tem o poder de absorver as almas dos seus pecados. O Diabo, por sua vez, é alegre e sempre rebate com ironia as tentativas de defesa das almas, é um conhecedor consciente sobre os vícios e fraquezas dos demais personagens, fazendo com que estes reflitam sobres seus atos desonestos cometidos durante suas vidas, tornando-se assim o centro das atenções.

Talvez por pertencer a classe social mais elevada, o primeiro a aparecer no julgamento é o Fidalgo - representante da nobreza - que tem por nome D. Anrique. Ele chega vestido com uma roupa cheia de acessórios (requinte), acompanhado por um pajem - representa o povo, vítima da opressão da nobreza, e da tirania, este carrega uma cadeira - elementos que simbolizam seu status social. É recepcionado pelo Diabo que o convida para entrar, mas este recusa o convite pois acredita que é merecedor da salvação por ter deixada alguém que rezasse por ele na terra.

Ao procurar a outra barca argumentando ser um bom candidato é surpreendido pela recusa de ali embarcar, devido seus apetrechos, símbolos da luxúria e tirania. Este personagem é severamente criticado, como é perceptível na fala do Anjo:

Não se embarca Tirania

neste batel divinal

[...]

Para vossa fantasia

mui estreita é esta barca.

[...]

Essoutro vai mais vazio:

a cadeira entrará,

e o rabo caberá,

e todo vosso senhorio.

Vós ireis mais espaçoso

com formosa senhoria, cuidando da tirania

do pobre povo queixoso.

E porque, de generoso,

desprezastes os pequenos (VICENTE,1998, p.14-15)

Convencido do mal que fez, o fidalgo segue a barca do inferno afirmando: “confiei no meu estado/e não vi que me perdia.” (VICENTE,1998, p. 15)

Gil Vicente utiliza esse personagem para criticar a luxúria, a pompa, a tirania, o orgulho e a infidelidade existentes na sociedade e as pessoas que acreditam em orações encomendadas e decoradas.

O segundo personagem é o onzeneiro - agiota que empresta dinheiro a juros de 11%. Este personagem simboliza a ganância e a ambição por dinheiro, sendo que para isso precisasse enganar os mais necessitados à custa dos altos juros sobre o dinheiro que emprestara. É relevante salientar, que essa classe tinha em comum com a classe judaica o amor pelo dinheiro.

Sabido do rumo da barca comandada pelo Diabo, ele dirige-se ao Anjo e argumenta sobre seu merecimento naquela barca, porém o Anjo afirma que não pode o levar devido a bolsa que ele carrega, este, por sua vez, jura que está vazia, mas o anjo argumenta “[...] não já no teu coração”(VICENTE,1998, p. 19), ou seja, devido a vida pecou pela usura, ambição e por isso não poderia embarcar. Nisso vai ter com o Diabo e reclama de como foi “ofendido” pelo Anjo e crê que a consequência disso é por falta do dinheiro que não trouxe da terra, e pede a permissão para pegá-lo, mas o Diabo não deixa e sugere que o mesmo entre no seu batel para servi-lo, usando o argumento que sempre lhe ajudou. Com isso Gil Vicente critica a inutilidade do dinheiro e a exploração dos altos juros.

O parvo, chamado Joane, é a terceira alma a entrar em cena. Esse personagem não representa nenhum tipo social e também é caracterizado por não argumentar em nome da sua salvação. Sua presença é um fator relevante para que a peça não se torne monótona. A linguagem utilizada pelo parvo é simples, e muitas vezes cômica devido sua ingenuidade.

Joane é recepcionado com o convite de entrar na barca do inferno pelo Diabo, porém ao saber o destino daquela barca o parvo xinga o comandante da barca sem piedade até injuriá-lo, em seguida dirige-se a barca do céu, onde ali embarca devido sua humildade e modéstia, sendo considerado assim um pecador sem maldade alguma, como é percebível na fala do anjo:

Tu passarás, se quiseres;

porque em todos teus fazeres

por malícia não errastes.

Tua simpleza te baste

para gozar dos prazeres. (VICENTE,1998, p. 22)

Este aparece posteriormente em outras cenas criticando personagens que querem se passar por “inocente”.

O quarto personagem é o Sapateiro, conhecido como João Antão, representante dos mestres de ofícios, este personagem também é recepcionado pelo Diabo. Ao saber do seu destino naquela barca, o Sapateiro defende suas ações antes de morrer indagando: “Como poderá isso ser, confessado e comungado?” (VICENTE,1998, p. 23), mas o Diabo repreende este argumento afirmando: “Tu morreste excomungado, / não o quiseste dizer. / Esperava de viver;/calastes dois mil enganos. / Tu roubaste bem trinta anos/ o povo com teu mister. (VICENTE,1998, p. 23) No entanto, João Antão relembra das missas que ouviu, das confissões que se submeteu e das comunhões que participou, mas o Diabo replica que isso não foi válido devido os roubos que fez durante sua vida. Em seguida, o sapateiro vai tentar embarcar no outro batel, contudo o anjo argumenta contra os bens materiais que o Sapateiro ainda traz consigo – símbolo dos pecados cometidos em terra, afirmando que ali não tinha lugar suficiente como na outra barca para guardar todos aqueles pertences, mesmo assim o sapateiro se recusa desapegar de tais bens e é condenado ao inferno.

Gil Vicente usa esse personagem para criticar aqueles que passam a vida pecando e acreditam que apenas ir à missa, confessar e comungar são atos suficientes para aquisição da salvação.

Em seguida entra o Frade acompanhado de uma moça. Esse personagem é o que chega mais equipado. Chega munido de um escudo e uma espada, vestido com uma capa e um capuz, ao mesmo tempo que canta e dança uma música popular. Este, indigna-se ao ser convidado a entrar na barca do inferno, pois acredita que seus pecados foram absolvidos uma vez que era representante religioso. No entanto, é condenado mediante seu falso moralismo religioso.

Juro a Deus que não entendo!

E este hábito não me val?

[...]

Ah! Corpo de Deus consagrado!

Pela fé de Jesus Cristo,

que eu não posso entender isto!

Eu hei de ser condenado?(VICENTE,1998, p. 26)

Não aceitando tal destino o Frade vai a barca da glória, não deixando de lado nem a dança nem a música. Este é recepcionado pelo Parvo que elogia Florença- namorada do Frade - e percebendo que em tal barca não pode embarcar retoma a barca infernal e cumpre sua sentença.

Como em várias outras obras de Gil Vicente, o Frade é muito satirizado mediante a hierarquia assumida e postura adotada em seus atos, assim como sua insensatez, onde busca constantemente a luxúria e os prazeres mundanos tornando-se, muitas vezes, mais pecador do que outros indivíduos que compunham a sociedade.Como afirma Saraiva e Lopes (2010, p. 199):

Gil Vicente censura nele a desconformidade entre os actos e os ideais, pois, em lugar de praticar austeridade, a pobreza e a renúncia ao mundo, busca a riqueza e os prazeres, é espadachim, blasfema, tem mulher e prole, ambiciona honras e cargos, procedendo como se a ordenação sacerdotal o imunizasse contra os castigos que Deus tem reservados para os pecadores.

Após a entrada do Frade no batel infernal, entra a Brísida Vaz, uma agente da prostituição e práticas de bruxarias, trazendo consigo elementos que sugerem uma continuação dessas práticas após a morte, além do seu maior bem: “seiscentos virgos postiços”, o qual era elemento essencial para enganar os homens que procuravam suas meninas.

Assim como os outros personagens, ela é recepciona da pelo Diabo que a convida para entrar e remar, porém não é o que ela almeja, e argumenta seu merecimento para embarcar no bateu divinal, afirmando que assim como ela todos pecaram em vida, além do mais a sua profissão era muito de boa-fé, pois criava as meninas e que posteriormente ainda arranjava um dono para as mesmas, chegando a comparar-se a uma santa.

Eu sou uma márti tal,

açoites tenho levado,

e tormentos suportados,

que ninguém me foi igual.

[...]

Santa Úrsula não converteu

tantas cachopas como eu:

todas salvas pelo meu,

que nenhuma se perdeu.

E prouve Àquele do Céu

que todas acharam dono. (VICENTE,1998, p. 32)

Contudo, esses argumentos não foram válidos para que sua salvação se concretizasse.

O próximo personagem a ser julgado é o judeu, este traz consigo um bode nas costas, simbolizando o apego a religião (judaísmo). Dirige-se direto à barca do inferno, pois este era descrente do Catolicismo e sabia que não tinha oportunidade de embarcar no batel divinal, porém nem o Diabo quer aceitá-lo em sua barca, empregando a desculpa de não ter espaço no batel para transportar o bode, além de ser elemento desnecessário. Como é observável na conversa:

[...]

DIABO – E o bode há-de cá vir?

JUDEU – Pois também o bode há-de ir.

DIABO – Que escusado passageiro!

JUDEU – Sem bode, como irei lá?

DIABO – Nem eu passo cabrões.

JUDEU – Eis aqui quatro tostões,

e mais se vos pagará.

Por vida de Semifará,

que me passeis o cabrão!

Quereis mais outro tostão?

DIABO – Nenhum bode há de vir cá! (VICENTE,1998, p.33)

Após essa conversa, o Diabo o aconselha para buscar outra barca, no entanto é recepcionado pelo Parvo que o critica severamente, pois além do Judeu ser descrente do Catolicismo, desrespeitava os dias santos, e não cumpriu com os dogmas impostos pela Igreja Católica:

[...]

PARVO – Ele mijou nos finados

na Igreja de São Gião!

E comia a carne da panela

no dia de nosso senhor!

E aperta o Salvador,

e mija na caravela! (VICENTE,1998, p.34)

A participação do Judeu finda quando o Diabo decide aceitá-lo, entretanto ele vai de reboque no batel infernal, pois segundo o Diabo, o Judeu é uma pessoa muito ruim, colocando-o num plano inferior ao dos restantes condenados.

O Corregedor também é criticado por Gil Vicente. Ao ser convidado para entrar na barca do inferno ele julga ser merecedor de outro destino, pois corrobora que sempre agiu com justiça e equidade. No entanto, o Diabo lembra-o das propinas que recebeu para fraudar processos, e o acusado põe a culpa na esposa, pois esta era quem fazia tal serviço e que por isso não poderia responder por esse ato.

No decorrer da conversa entra em cena o procurador, que ao ser convocado para ali embarcar também recusa o convite e os dois representantes do judiciário começam a discutir sobre os crimes que cometeram juntos e seguem para a barca do céu. Lá chegando, o Anjo, ajudado pelo parvo, não permite que eles entrem, condenando-os ao batel infernal por usarem o poder judiciário em benefício de si próprio.

O próximo a entrar é o Enforcado, que ainda traz em seu pescoço a corda utilizada em sua morte. Iludido por Garcia Moniz, o Enforcado acredita que daquela maneira estava livre de todos os pecados, mas isso não incide e ele também é condenado ao batel infernal.

Os últimos personagens a entrar em cena são os quatros cavaleiros que lutaram e morreram nas cruzadas em defesa ao Cristianismo. Estes, sabendo que a barca do Anjo era seu destino, passam cantando hinos em que exaltam a transitoriedade da vida e advertem os pecadores, exortando-os à prática das virtudes.

4.2 CRITICA E ORTODOXIA: A ATITUDE REFORMADORA DE GIL VICENTE

As obras vicentinas foram escritas numa época de intensas agitações ideológicas na Europa, derivadas de diversos acontecimentos de teor econômico, social, intelectual e político ocorridos na Idade Média, acarretando posteriormente um movimento conhecido como Reforma dos Protestantes, que tornou-se forte em toda Europa, e Matinho Lutero foi o grande responsável por esse movimento.

No entanto, Gil Vicente, assim como grande parte da Península Ibérica,não se deixou levar pela euforia desse movimento, pelo contrário,

A Península Ibérica mantinha-se numa fidelidade contínua à ortodoxia romana, fidelidade que não exclui- pelo contrário, tinha forçosamente de incluir- uma intensa atividade reformadora, levada ao cabo por vários meios, por iniciativa dos governantes e de eclesiásticos e leigos esclarecidos. (MOSER s/d, p.101)

Essa ortodoxia religiosa é percebida não só nas obras de Gil Vicente, mas também em Camões. Ambos são adeptos à religião Católica, sendo facilmente perceptível em seus escritos a crença e a defesa do Catolicismo puro, contudo, esse desejo de reconstruir a fé cristã é mais enfatizada nas obras de Gil Vicente. Sendo este, considerado por Pestana apud Moser (s/d, p.102) “[...] o poeta da Contra-Reforma; e, fora de Portugal, outro não houve que o excedesse”.

Nas obras vicentinas é observável constantemente a referência que o mesmo faz à religiosidade, e sua crença em Deus. É por acreditar fielmente na Igreja Católica que Gil Vicente repreende as ações imorais do clero - a ganância, a pompa, o luxo, a semonia, eessa crítica sobre a Igreja se dava principalmente pelas atitudes do clero, pois não cumpria com aquilo que pregava como correto e justo.

Esse desejo de reconstrução fazia com que Martinho Lutero e Gil Vicente fossem considerados reformadores, pois ambos ansiavam por uma reformulação nos rumos que a Igreja seguia “[...]quer dentro da estrita ortodoxia, quer em tentativas de reencontro da primitiva pureza da Igreja por via separatistas” Moser ([19-], p.107).

É importante ressaltar que Gil Vicente faz em suas obras uma nítida distinção entre a Igreja e o Clero. Segundo Moser a Igreja é tida como uma doutrina, e Clero como elemento humano, portanto falível.

É nessa perspectiva que Gil Vicente critica severamente na obra Auto da Barca do Inferno o Frade (por acreditar que só por que exerceu tal função em vida é merecedor da salvação) e não a Igreja. É por acreditar fielmente nela que ele busca resgatar os valores perdidos num mundo ganancioso e egoísta que ali emergia. Isso não significa que Gil Vicente fosse admirador do mundo moderno, pois é justamente contra essa lógica niilista que Gil Vicente se põe, com veemência, ao tratar dos problemas. Daí o fato dos personagens como o onzeneiro, o sapateiro e a alcoviteira, serem duramente criticados no Auto da Barca do Inferno, pois todos eles agem de modo a valorizar mais o dinheiro do que qualquer valor moral existente.

No "Auto da Barca do Inferno" é importante atentarmos para certas particularidades de alguns personagens como o Anjo, o Diabo, a Brísida Vaz, o Judeu, o Enforcado,o Parvo e os Quatro Cavaleiros.

Na Idade Média, a vida era considerada apenas como uma passagem efêmera, onde os atos eram definidores do destino de cada pessoa após a morte e a fé teocêntrica era a explicação para todas as indagações sobre os mistérios da vida. Todas as ações eram em função da salvação e libertação do fogo infernal, não incumbindo espaços para o gozo e prazeres mundanos. Como percebemos no personagem Anjo,símbolo do bem, é justamente um exemplo claro desse tipo de vida: estático, calado, sisudo. Ao contrário, o Diabo é sempre alegre e irônico, simbolizando o mal, como um retrato do mundo perdido na ganância, no gozo e nos prazeres terrenos.

Como já foi mencionado, o Parvo é um dos personagens a ser observado, pois este é merecedor do reino do céu por ter vivido na ignorância, no entanto, ele é credor dos preceitos da verdadeira fé cristã e simboliza a humildade. Mesmo fazendo o uso de palavrões para xingar o Diabo é considerado digno da salvação, pois sempre agiu com inocência e sem maldade, concretizando a passagem bíblica (Mateus, 5:3) quando diz que os podres de espíritos serão dignos do reino dos céus.

A Brísida Vaz é uma personagem de linguagem lisonjeira, sedutora, hipócrita, característica da profissão que seguia. Rebate diretamente os argumentos do Diabo quando este tenta convencê-la de que o seu destino seria o batel infernal. Isso é nitidamente perceptível quando a mesma se defende das acusações do Diabo, admitindo que pecava como qualquer outra pessoa, e que “Se fosse ao fogo infernal/ lá iria todo o mundo!” (VICENTE,1998, p.32). Brísida Vaz, mesmo sendo conhecedora de suas ações de teor canal, prazeroso e libertino,não admitia que tais ações as afastavam do caminho de Deus. Observamos aqui a posição de Gil Vicente diante de um mundo perdido nos prazeres mundanos.

Outro personagem que merece atenção é o Judeu. Este é condenado simplesmente por não ser adepto a “verdadeira teologia”, sendo rejeitado até mesmo pelo Diabo. O julgamento desse personagem é diferenciado, pois as suas ações nada têm a ver com os princípios de valores tidos como corretos. Percebemos nessa cena o posicionamento de Gil Vicente diante da religião judaica, que na época seus seguidores foram fortemente perseguidos pela Igreja Católica.

O Enforcado é um outro personagem que chama atenção, pois este é condenado por cometer suicídio ao acreditar que esse ato o redimiria dos pecados cometidos. No entanto, não é o que incide na peça vicentina, pelo contrário, o Enforcado é condenado ao fogo infernal.É importante ressaltarmos que segundo os preceitos bíblicos o suicídio é visto como um auto assassinato, ou seja, subtrai a “autonomia” de Cristo no que diz respeito ao período em que o suicida tem de viver.Segundo o site sobre ensinamentos bíblicos, GotQestion,o indivíduo que comete suicídio estará condenado ao inferno por rejeitar a salvação através de Cristo. Talvez seja esta uma das explicações para que tal personagem tenha sido merecedor do batel infernal.

E por fim, outra cena que nos leva a defender a ortodoxia em Gil Vicente é a cena da chegada dos Quatro Cavaleiros, que mesmo cometendo pecados exorbitante como matar o próximo, foram recepcionados pelo Anjo com louvor e embarcados no batel divinal, pois viveram por Cristo e morreram na guerra em seu nome. Ato suficiente para aquisição da salvação, independente da crueldade que isso trouxe para os perseguidos. Observemos que nessa época, na Idade Média os indivíduos que eram antagônicos aos dogmas do Cristianismo eram tidos como seres impuros, e, por isso, indignos da salvação.

Assim como Gil Vicente, outros nomes também pensavam em reconstrução da Igreja Católica. Dentre eles podemos citar o humanista Erasmo de Rotterdam. Este é considerado o maior intelectual Europeu do século XVI, mediante as suas críticas aos abusos eclesiásticos. Dentre as obras de Erasmo podemos destacar O Elogio da Loucura.

Nessa obra Rotterdam critica a Igreja, pois esta, detentora de grandes poderes, é questionada pela loucura devido aos luxos dos bispos e dos padres. No entanto, ele ridiculariza não apenas os sacerdotes e os poderosos da Igreja, mas toda a organização de seu tempo. Erasmo retrata com caráter satírico os pecados absurdos, as mazelas presentes nas mais diversas classes sociais e instituições vigentes. Rotterdam defende a loucura como se fosse uma força determinante nos aspectos da vida do homem, descrevendo-a como a deusa que orienta todas as boas ações da Igreja Católica na vida do homem.

Nessa perspectiva, é observável o que Erasmo e Gil Vicente têm em comum: a “defesa da integridade, do bom senso e da Verdade, contra a loucura e o Vício” Moser ([19-], p. 113) presentes nas ações de indivíduos que compõem a sociedade e principalmente aqueles que fazem a Igreja Católica, ambos os autores satirizam a sociedade, no entanto o objetivo não é por discriminação, descrença, mas sim, um severo anseio pela reconstrução da verdadeira Fé Católica.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo vivido na época dominada pelo desenvolvimento do comércio ultramarino e conquistas de terras, Gil Vicente observou e analisou toda a sociedade corrompida pela ganância, luxo, pompa, ociosidade, tirania, pela imoralidade e a ninguém poupou nas suas críticas, visto que ele não se limitou na exposição da situação na qual a sociedade se perdia, mais do que isso, ele almejava uma reconstrução na “Igreja”, tendo como base os dogmas de sua Fé.

A obra apresenta um valor predominantemente moral e educativo. A sátira vicentina procura mostrar, tocando nas feridas sociais de seu tempo, que é possível haver um mundo melhor, seguindo os preceitos doutrinários, mas que em decorrência da falta de virtudes, a humanidade se perdia em um mundo de ganância.

Nesse sentido, é observável o quão Gil Vicente foi feliz nos seus escritos, que de forma singular conseguiu expor seus pensamentos. Não só o clero, mas toda uma sociedade que se deixava corromper pelos vícios mundanos e afastava-se de Deus é severamente satirizado por Gil Vicente. Essa sátira faz-se em função da defesa de seus valores ortodoxo.Entretanto, não é por rebeldia, por descrença na Igreja Católica, pelo contrário, foi por pura crença nos preceitos doutrinários que ele criticou, pois o principal objetivo era a reconstrução da Fé Cristã.

REFERÊNCIAS

MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. 18º ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 30ª ed. São Paulo: Cultrix, 1999

MOSER, Fernando de Melo. Discurso Inacabado: ensaios de cultura portuguesa. Fundação CalousteGulbenkian. [19–].

MÜLLER-BOCHAT, Eberhard. Entre a Idade Média e a Renascença. Fortaleza, Imprensa Universidade do Ceará, 1969.

SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, 2010.

SPINA, Segismundo. Presença da Literatura Portuguesa. 7ª ed. São Paulo. DIFEL, s/d.

VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Zero Hora, 1998.

Disponível em:www.gotquestions.org/Portugues/suicidio-cristao.html