A apreciação de um poema (pela professora Dalva Molina Mansano)

Livre-arbítrio (republicando)

adoeço a vida

entre mobílias velhas e ácaros

penduro-a no varal

entre pássaros

pensamentos

recordações

faço minha a culpa

salgando alimento com lágrimas

esterilizo o banheiro

me absolvo de tantos pecados

e me farto orgulhosa

do pseudo livre-arbítrio

cuja única porta se abre para o inferno

panelas me chamam pelo nome

íntimas amigas do fogo

destruidor dos vestígios

de sonhos libertários

de devaneios marxistas

de filosofias platônicas

tranco portas e janelas

puxo as cortinas

e me revelo a verdade

sentada no chão da sala

paira no ar a derradeira nota musical

de uma sentida cantiga de ninar ilusões

Tânia M. da C. Meneses Silva

Começo esta análise utilizando palavras de Hans-Georg Gadamer, com as quais afirmou que “a escrita é um auto-estranhamento. Sua superação, a leitura do texto, é, pois a mais alta tarefa de compreensão.” A metáfora está sempre a serviço da função poética e graças a ela a linguagem desprende-se e libera possibilidades de novos significados.

Das observações acima, chegamos ao título do poema, Livre-arbítrio, que aparece no 12º verso, antecedido pelo elemento de composição (grego), pseudo, elemento este que indica algo falso e que parece ter sido utilizado a propósito, com intuito de negar o livre-arbítrio, do qual o eu-poético mostra-se farto e que fortalece essa negativa com veemência.

“e me farto orgulhosa

do pseudo livre-arbítrio”

A palavra, então, divide-se entre o questionamento poético e o apelo doutrinário levando a reflexões sobre sua natureza. Teríamos, portanto, o autoestranhamento entre o texto e um interlocutor imaginário dentro dos fenômenos interiores da linguagem humana.

Surge, assim, uma dúvida platônica frequente quando se analisa um texto: o leitor teria atribuído ao texto algo muito além do que ele pretendia dizer? São percalços com os quais convive a literatura, pois o desligamento do leitor do universo textual, conduz a um entendimento totalmente desvinculado da realidade intencional no momento da criação do texto.

No poema em questão, fica a dúbia interpretação entre a pretensão do título e o que é dito no interior dele. É, sem dúvida, um hábil trabalho que possibilita uma intenção do emissor, sem que o diga abertamente.

Voltando à ideia do próprio estranhamento, isto é, de um comportamento alheio à vontade interior e que se exterioriza, o texto reporta-nos ao filósofo da libertação, Richard Rorty, quando em um debate enfatizou a habilidade de se distinguir a questão de se estar ou não sofrendo, considerando o ponto de partida totalmente diferente e que desencadeia a estratégia da libertação. Este fato aclara-se com os seguintes versos:

“adoeço a vida

entre mobílias velhas e ácaros

penduro-a no varal

entre pássaros

pensamentos

recordações

faço minha a culpa

salgando alimento com lágrimas

esterilizo o banheiro

me absolvo de tantos pecados”

Evidencia-se a libertação do eu-poético na segunda estrofe (terceto), onde se mostram os últimos vestígios dos amigos destruídos pelo fogo, que entra “pela porta do inferno” e dos quais quer libertar-se.

“de sonhos libertários

de devaneios marxistas

de filosofias platônicas”

Na 4ª estrofe (quarteto) é clara a intenção de despojamento dos males que refuta e impedem a invasão de “intrusos”, atirando-se ao chão, como quem deseja o descanso merecido.

“tranco portas e janelas

puxo as cortinas

e me revelo a verdade

sentada no chão da sala”

Após cansativa luta com fatos e sentimentos rejeitados, escusos, a personagem do poema, enfim, diz interromper um ciclo de ilusões, de forma absolutamente lírica, “pairando no ar a derradeira nota musical de uma sentida cantiga...”

Dalva Molina Mansano

24.06.2014

***

Professora amiga, Dalva Molina Mansano,

fico aqui agradecida, orgulhosa e feliz por sua manifestação sobre o meu poema. A sua condição de professora de Literatura e poeta ainda mais me deixa honrada pela sensibilidade demonstrada nesta análise que até me convence de ser mesmo poeta.

Sou uma apreciadora do encanto e do talento que emanam de suas produções, quer em versos ou em prosa.

Receba um carinhoso abraço, minha amiga e colega de magistério.

Tânia Meneses