A VEROSSIMILHANÇA E O NARRADOR IMPASSÍVEL EM A METAMORFOSE DE FRANZ KAFKA
RESUMO
O presente trabalho tenciona compreender a obra A metamorfose de Franz Kafka, revestida de verossimilhança e solidez, bem como analisar a presença de um narrador imparcial dentro da obra. A narrativa escrita em 1912 e publicada três anos depois é ainda hoje alvo de inúmeras leituras e interpretações no que concerne à coesão estrutural e construção de sentido. Tal estudo baseia-se e edifica-se nos estudos de Aristóteles (2007), Bejamim (1987) e Compagnon (1992).
Palavras-chave: Verossimilhança. Narrador. Narrativa.
1 INTRODUÇÃO
Publicada em 1915, a obra A Metamorfose narra a história de Gregório Samsa, um caixeiro viajante que depois de acordar de sonhos intranquilos percebe-se transformado em um inseto que ele mesmo julga não saber qual. A partir de então se inicia a triste história do homem metamorfoseado, que antes de ser mais uma literatura do absurdo reproduz as contradições da existência humana e os interesses que pautam a convivência.
As causas da transformação não nos são apresentadas, nem mesmo o narrador deduz quais sejam. Na verdade a imparcialidade do narrador e a própria isenção de comentários acerca da condição de Gregório são uma constante na narrativa e tendem a tornar a obra mais complexa, o que exige uma maior atenção por parte do leitor, que já não possui mais aquele como guia.
A rejeição dos pais frente à transformação sofrida pelo rapaz que antes fora a figura provedora da família traz à tona a veia capitalista na qual estamos inseridos, veia essa que reifica o homem e o reduz a uma mera máquina de trabalho. Somente a morte é capaz de eliminá-lo do seio familiar e assim acontece trazendo consigo o alívio para os Samsa.
A coesão estrutural da obra justifica a sua estranheza e não há como subjugá-la pela leitura insuficiente de suas primeiras linhas. Faz-se necessário uma leitura penetrante na busca do sentido da obra, ainda que esse possa se esconder.
Na primeira seção do artigo busca-se apresentar a estruturação da verossimilhança no conto A Metamorfose, percebendo-o inteiramente coeso, ainda que se trate de uma narrativa desembocada no fantástico.
Na segunda seção analisa-se o narrador do conto, revestido de impessoalidade e frieza frente a desgraça ocorrida com a personagem central Gregor Sansa, deixando a mercê do leitor a busca pela verdade do texto.
Espera-se com tal estudo contribuir para um maior entendimento da literatura kafkiana, bem como da produção literária contemporânea.
2 A ESTRUTURAÇÃO DA VEROSSIMILHANÇA EM A METAMORFOSE
A presença do insólito que abre o conto A Metamorfose “Numa manhã ao despertar de sonhos inquietantes. Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto”(KAFKA, 2003, p. 1) daria margem a precoce interpretação de mais um conto desembocado no grotesco. No entanto é com o desenrolar da narrativa que se percebe tratar de uma das grandes obras literárias do século XX.
É de todo inconcebível que alguém durma humano e acorde inseto, mas a narrativa delineia-se de forma tão coesa que aquilo que parece impossível ganha a opinião e passa então a ser aceito pelos leitores. Estamos diante da afirmação de Aristóteles quando diz em sua poética “Quando plausível, o impossível deve se preferir a um impossível que não convença” (ARISTÓTELES, 2007 p. 49).
Percebe-se a partir de uma leitura mais apurada da obra que os fatos em nenhum momento apresentam-se ilógicos ou incoerentes. A metamorfose sofrida pela personagem não faz a narrativa inverossímil, pelo contrário. A transformação de Gregório é sem dúvida o elemento guia da história, pois é ela quem comanda a guinada dos acontecimentos.
O verossímil como insistirão os teóricos, não é, pois aquilo que pode ocorrer na ordem do possível, mas o que é aceitável pela opinião comum, o que é endoxal e não paradoxal o que corresponde às normas do consenso social. (COMPAGNON 1999, p. 103)
Pode-se dizer que a obra a metamorfose atingiu sua finalidade quando da leitura conseguiu penetrar no âmago do leitor e ao invés de um asco que poderia se imaginar frente à recepção da história se instaura um misto de compaixão diante da dolorosa realidade vivida pela personagem central.
Faz-se necessário salientar que mesmo metamorfoseado em inseto Gregório possui pensamentos e atitudes humanas o que faz com que perceba e entenda a repulsa que sente agora sua família por ele.
A mãe, essa, começou relativamente cedo a pretender visitá-lo, mas o pai e a irmã tentaram logo dissuadi-la, contrapondo argumentos que Gregório escutava atentamente, e que ela aceitou totalmente. Mais tarde, só conseguiam removê-la pela forca e, quando ela exclamava, a chorar: Deixem-me ir ver o Gregório, o meu pobre filho! Não percebem que tenho de ir vê-lo, Gregório pensava que talvez fosse bom que ela lá fosse, não todos os dias, claro, mas talvez uma vez por semana; no fim de contas, ela havia de compreender, muito melhor que a irmã, que não passava de uma criança, apesar dos esforços que fazia e aos quais talvez se tivesse entregado por mera consciência infantil. (KAFKA, 2003, p.18).
A condição física que possui de inseto não lhe subtrai a consciência fazendo com que reconheça o verdadeiro sentimento que sua família lhe nutre agora. E talvez seja este o fio condutor da narrativa, fazendo com que o leitor cada vez mais se interesse pela obra.
“Em Kafka, o inquietante não são os objetos nem as ocorrências, mas o fato de que as criaturas reagem a elas descontraidamente, como se estivessem diante de objetos e acontecimentos normais”. Não é a circunstância de Gregor Samsa acordar de manhã transformado em barata, mas o fato de não ver nisso nada de surpreendente -a trivialidade do grotesco- que torna a leitura aterrorizante. Esse princípio, que se poderia chamar de princípio da explosão negativa, consiste em não fazer soar sequer um pianíssimo onde caberia um fortíssimo: o mundo simplesmente conserva inalterada a intensidade do som. “De fato, nada é mais espantoso do que a fleuma e a inocência com que Kafka entra nas estórias mais incríveis” (ANDERS 1946 apud Barros 2003, p. 4).
Não é o afastamento daquilo que se considera normal que irá atribuir ou não verdade a literatura, mas sim aquilo que consegue fazer que com que construamos sentido onde não se imaginaria haver.
3 O NARRADOR IMPASSÍVEL
O narrador do conto A Metamorfose apresenta–se objetivo e impassível. Com um aparente “desinteresse” pelas personagens ele deixa o leitor a mercê de seu próprio entendimento, tornando a obra mais difícil de ser assimilada. A ausência de um acordo do narrador com o leitor deixa a obra mais complexa, pois as pistas que poderiam ser dadas por aquele na compreensão da história não aparecem. No entanto a curiosidade do leitor não e reprimida. É como se ao perceber tal dificuldade o mesmo fosse instigado a buscar outras maneiras para a compreensão da narrativa.
É bem verdade que a narração constitui uma experiência e não há na história alguém que tenha visto outra pessoa acordar metamorfoseado num inseto. Essa poderia ser talvez a justificativa da distância que apresenta o narrador das personagens e do próprio leitor que é deixado à deriva por ele.
O desconhecimento do narrador pelo destino horrível da personagem central fica claro quando o mesmo parece não saber em que tipo de inseto Gregório transformara-se ao certo.
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar.Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos (KAFKA, 2003, p.1).
Percebe-se ao longo da narrativa a presença de um narrador impessoal desapegado que tem por função apenas nos apresentar o enredo não emitindo opiniões e muito menos esboçando reação frente à animalidade e a rejeição sofrida por Gregório.
[...] As pequenas maçãs vermelhas rebolavam no chão como que magnetizadas e engatilhadas umas nas outras. Uma delas, arremessada sem grande força, roçou o dorso de Gregório e ressaltou sem causar-lhe dano. A que se seguiu, penetrou-lhe nas costas.Gregório tentou arrastar-se para a frente, como se, fazendo-o, pudesse deixar para trás a incrível dor que repentinamente sentiu, mas sentia-se pregado ao chão e só conseguiu acaçapar-se, completamente desorientado ( KAFKA, 2003, p.23).
A narração que segue não apresenta nenhuma condolência por parte do narrador no que concerne ao que se sucedera com a vítima, Gregório. A supressão do subjetivismo do narrador desencadeia uma espécie de desconexão quanto ao destino das personagens deixando restritamente ao leitor o papel de busca da “verdade” do texto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É inegável a dificuldade em se interpretar uma obra kafkiana, pois várias são as linhas interpretativas e as opiniões tendem a se divergirem frente à sua leitura. O certo é que a presença do absurdo em A Metamorfose não lhe subtrai a coerência interna, nem mesmo o discurso do narrador, indiferente diante da espantosa situação de Gregório suprime a vontade do leitor em imergir em tal história, nessa que seria uma das mais consagradas obras da literatura contemporânea.
REFERÊNCIAS
ARISTÓLTELES. Retórica. São Paulo: Rideel. 2007.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica Arte e Política. Obras escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense,
1987.
BARROS, Rodolfo A. L. Esboço para uma leitura de Kafka. São Paulo. 2003. Disponível em:
<http://redundancias.files.wordpress.com> acesso em 04 de maio de 2014.
COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Literatura e senso comum.
Belo Horizonte, UFMG, 1999.
KAFKA, Franz. A Metamorfose. Unama. Universidade da Amazônia. NEAD- Núcleo de Educação a Distancia; 2003