A CONDIÇÃO SARAMAGUIANA
(Goulart Gomes)

 
Tomo por empréstimo o título do romance do escritor francês André Malraux – A Condição Humana – para tratar de um aspecto do comportamento social evidenciado durante as últimas paralisações das polícias, em diversas cidades brasileiras: a condição saramaguiana.
 
Durante aqueles movimentos assistimos atônitos, nos noticiários televisivos, hordas bárbaras ensandecidas arrombarem, invadirem e saquearem diversos estabelecimentos comerciais, roubando eletrodomésticos (até mesmo geladeiras!), roupas, calçados, cosméticos, alimentos e outros bens de consumo. Não tive conhecimento de saquearem nenhuma livraria, certamente por não considerarem a educação e a cultura um valor.
 
Pessoas que possivelmente transitam por aquelas ruas, compram os produtos que satisfazem as suas necessidades naqueles estabelecimentos, que talvez até conheçam os comerciários que trabalham naquelas lojas, ou seus proprietários. Homens e mulheres que lutam, de alguma forma mais ou menos lícita, pela sua sobrevivência diária, de repente se transformam em criminosos, e num comportamento anarcovandalista resolvem realizar uma redistribuição da riqueza às avessas, tomando agressivamente o que julga lhe ter sido negado pela sociedade em que vive ou simplesmente exercitando a usual Lei de Gerson, ainda não revogada: ”O importante é levar vantagem em tudo, certo?”
 
A história da literatura nos apresenta a escritores eternos que, com seu talento e genialidade, criaram personagens ou situações que se tornaram universais, passando a integrar o léxico mundial: o universo roseano, que define o sertão mítico representado nas obras do brasileiro Guimarães Rosa; os comportamentos quixotescos, como os do tragicômico personagem Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes; as situações kafkanianas, de fatos surreais nas obras do checo Franz Kafka; as cenas dantescas, retratadas no Inferno da Divina Comédia, do poeta italiano Dante Alighieri e as atitudes maquiavélicas, aludidas em O Príncipe, do florentino Nicolau Maquiavel. Assim também ocorre com José Saramago. Em pelo menos três de suas obras são arquitetadas situações de exclusão, anômalas, non sense,  que colocam em xeque o comportamento humano.
 
José Saramago é um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, vencedor do prêmio Nobel de Literatura, em  1998, autor de obras imortais, como Memorial do Convento e o Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro que provocou tamanha reação em Portugal, que o estimulou a “auto-exilar-se” na Espanha, país natal da sua amada Pilar. Um socialista defensor apaixonado das grandes causas da humanidade, apesar do seu ateísmo (ou, graças?).
 
Em Ensaio sobre a Cegueira - brilhantemente adaptado para o cinema e dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles -, um mal súbito faz com que toda uma população fique repentinamente cega, provocando as mais impensáveis reações. Ao invés de atitudes fraternas, o que constatamos são roubos, crimes, assassinatos, estupros, exclusão, exploração de uns cegos pelos outros, dentre outros abusos cometidos, num deprimente “salve-se quem puder”. Curiosamente, a personagem que não ficou cega, e que poderia tirar proveito da situação, é a mais humana e solidária dentre todos. Já em Ensaio sobre a Loucura, o drama acontece a partir do momento em que todos os eleitores de um país decidem, consecutivamente, votar em branco, provocando um caos nas instituições que se sustentam neste modelo de governo e o pânico naqueles que dele se beneficiam (principalmente os políticos corruptos). Na obra As Intermitências da Morte, é esta quem resolve “fazer greve” e não matar mais ninguém em um determinado país, provocando exageros como o “contrabando de defuntos”, tanto para fora do país, para aqueles que desejam morrer, como para dentro, provocando o surgimento de uma verdadeira máfia, mancomunada com os poderes instituídos. Estas são as condições que considero saramaguianas.
 
O que assistimos no Brasil foi a eclosão destas situações saramaguianas, no momento em que as forças policiais “se furtaram” ao seu papel de servir e proteger. Pessoas aparentemente pacíficas que liberaram o que de pior havia em suas Sombras, utilizando o conceito junguiano, para cometer os delitos mais recrimináveis. Ariano Suassuna, o grande escritor paraibano, referindo-se à obra máxima de Dostoiévski, Crime e Castigo, sempre destaca a ideia de que “se Deus não existe, tudo é permitido”, como propulsora para o seu abandono dos conceitos ateístas. Nietzsche, desde o século XIX, em sua obra máxima Assim Falava Zaratustra, alertava-nos para o fato que Deus está morto. Nestes momentos, os dois aforismos ganham uma insofismável veracidade. Percebemos que, abaixo dos limites impostos aos indivíduos em suas relações, jaz, adormecida, uma índole malévola, que desconhece qualquer princípio, e desperta famélica à menor fissura na estrutura social. Assim, quero entender Deus como esta “função reguladora” do Universo, na ausência da qual se pode tudo, sem querer afirmar que Nietzsche, Jung, Saramago ou Dostoiévski, o percebiam desta mesma forma.
 
Não posso e nem devo fazer qualquer análise psicológica desta situação – tarefa que delego a meus vários amigos junguianos – mas não posso deixar de citar dois trechos do livro O Homem e Seus Símbolos, organizado por Carl Gustav Jung, um pensador que tanto nos alertou para os “males” da civilização contemporânea. Dizia ele: “Não estou querendo negar as grandes con­quistas que nos trouxe a evolução da sociedade civilizada, mas tais conquistas realizaram-se à custa de enormes perdas, cuja extensão mal co­meçamos a avaliar... Para benefício do equilíbrio mental e mes­mo da saúde fisiológica, o consciente e o in­consciente devem estar completamente interli­gados, a fim de que possam se mover em linhas paralelas. Se se separam um do outro ou se ''dis­sociam", ocorrem distúrbios psicológicos.”
 
O que estará acontecendo nos nossos inconscientes – individuais e coletivos – que tem nos levado a atitudes tão torpes? Em um momento, são linchados inocentes publicamente, para “fazer justiça com as próprias mãos”; em outro, se cometem  crimes, com a “inconsciência” tranquila, num autêntico faroeste caboclo. Sobretudo assusta-nos o beneplácito das autoridades, a falência das instituições, a morte dos princípios éticos, o fim do sentimento de humanidade.
 
Não podemos esperar que, como nas obras, de Saramago, em algum momento tudo volte à normalidade, ex machina,  fazendo-nos perceber os equívocos que temos cometido. Angustia-nos perceber que este “lado negro da força” (George Lucas também é junguiano) está movendo as pessoas na direção contrária ao seu processo de amadurecimento, de crescimento interior, de individuação. Que o desejo de possuir uma TV de cinquenta polegadas é mais forte que tudo o que nos é ensinado na família, na escola, na comunidade, na vida. Não podemos ter vergonha de ser honestos, nem de exigir honestidade. A condição saramaguiana – como toda situação extrema – tem o poder de fazer eclodir em nós o que há de melhor. Não devemos permitir que ocorra justamente o inverso, a exemplo da maioria das personagens dos romances do grande escritor. Nestes casos, a realidade não pode se tornar o espelho da ficção.
 
 
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Goulart Gomes
Enviado por Goulart Gomes em 19/05/2014
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