$enhora, Romance De José De Alencar

Romance de transição entre as escolas literárias do Romantismo e do Realismo. É um romance romântico porque centrado no casamento enquanto instituição religiosa e burguesa em que os noivos acreditavam (mas nem tanto) que seriam “felizes para sempre”. Casamento enquanto idealidade romântica.

A convivência conjugal se estrutura a partir de um pressuposto nada romântico, “O Preço”, título do 1° Capítulo. Começa aí a evidência literária de uma obra de transição: a compra do noivo por Aurélia Camargo, personagem central, através do dote de cem contos de réis que tira seu noivo dos braços da rival, Adelaide Amaral, filha de um funcionário da alfândega, que bancara o noivado com Fernando Seixas por trinta contos de réis.

Não é preciso ser um gênio em matemática para saber que 100 contos de réis é nada menos que três vezes mais o valor oferecido pela rival. Dessa forma Aurélia Camargo, que amargava ter sido anteriormente esnobada por Fernando Seixas, quando era pobre, por ele que a havia descartado por trinta contos de réis, vinga-se do noivo. Comprando-o por um dote maior.

Essa vingança só é possível a partir da superação da condição de pobreza pela herança do avô que a torna subitamente beneficiária única de seus bens. Aurélia, de repente, não mais que de repente, fica rica e cobiçada pelos caçadores de dotes da sociedade fluminense em busca de ser premiados socialmente pelo “golpe do baú”.

Acontece que Aurélia sente-se atraída por Seixas. Ou por seu “manganão”. Mais do que vingar-se dele, ela deseja conviver maritalmente com ele. E convoca seu tio Lemos para o contato com Fernando Seixas, de modo que negocie seu noivado pela oferta generosa dos 100 contos de réis. A condição é que a identidade da noiva (Aurélia) não seja revelada no momento da negociação de compra pelo mencionado dote. Dote de noivado.

Desta forma o narrador onisciente em 3ª pessoa a define, no que deve ser a visão que mantém dela seu tio Lemos: “E o mundo é assim feito, que foi o fulgor satânico da beleza dessa mulher, a sua maior sedução. Na acerba veemência da alma revolta, pressentiam-se abismos de paixão, entrevia-se que procelas de volúpia havia de ter o amor da virgem bacante... O anjo casto e puro que havia naquela, como há em todas as moças, talvez passasse despercebido pelo turbilhão”. No próximo capitulo esse mesmo tio Lemos vai escrever uma carta à sobrinha (ainda na condição de pobreza), sugerindo que Aurélia comece a tirar proveito financeiro de sua beleza física tendo ele, tio Lemos, por cafetão.

O 2° Capítulo do romance $enhora chama-se “Quitação”. Nele, à luz de reminiscências, a faculdade da memória da personagem chega ao conhecimento do leitor através do narrador em 3ª pessoa. Narrador onipotente e onisciente. Aquele que tudo sabe sobre as personagens do romance.

O leitor fica sabendo da trágica história da mãe de Aurélia: moça que se apaixonou e casou com Pedro de Souza Camargo, filho ilegítimo de um abastado fazendeiro que recusa ao filho a união e a convivência com Emília Camargo, mãe de Aurélia. Ainda assim Emília abandona a família e casa-se com seu amado Pedro. A união motiva o desprezo da família por ela.

Lourenço Camargo, o rico fazendeiro pai de Pedro, ao saber da união, manda chamá-lo à fazenda e o mantém recluso a seus limites. Por doze anos Emília e Pedro vivem separados, apesar de casados, mantêm contatos íntimos eventuais. O aspecto romântico dessa relação é contrabalançado pela intenção realista do autor em mostrar o quanto, numa sociedade machista e patriarcal, as pessoas se submetem aos mandos e desmandos de seus pais. Das ingerências familiares, por mais tirânicas fossem. Ou seja.

Lourenço Camargo precipita a morte do filho Pedro ao forçá-lo a casar com uma rica herdeira de seu ciclo de amizades. Pedro então tem um piripaque caracterizado por uma febre cerebral que termina com seus conflitos todos, desde que, desse faniquito, ele falece. O sogro não está nem aí para Aurélia e seu irmão Emílio, filhos de seu filho Pedro. Emílio morre prematuramente, na puberdade, de um resfriado.

Vemos que, ao amor romântico de Emília e Pedro, se contrapõem as vicissitudes de uma realidade que parece estar disposta contra eles. O noivado de Aurélia e Seixas acontece enquanto metáfora da relação de semelhança subtendida nas relações familiares inconciliáveis entre os familiares de Emília e Pedro. Pais de Aurélia.

A mesma balança narrativa que pesa os fatos da vida e do Romantismo na relação entre Emília e Pedro e Aurélia e Seixas, pesa também as influências de caráter realista que os mantêm presos à conflituosa conjuração de eventos dramáticos da relação de intimidade entre esses casais.

O tio Lemos sugere, através de carta à sobrinha Aurélia, num estilo floreado, mas de vezo vicioso e realista, que esta use seus dotes físicos para a consecução de interesses financeiros de sobrevivência. A carta do tio fora “escrita no estilo banal do namoro realista, em que o vocabulário comezinho da paixão tem um sentido figurado e exprime, à maneira da gíria, não os impulsos do sentimento, mas as seduções do interesse”.

O velho tio acreditou que a sobrinha, como tantas infelizes arrebatadas pelo turbilhão, "estava à espera do primeiro desabusado que tivesse a coragem de arrancá-la da obscuridade onde a consumiam os desejos famintos, e transportá-la ao seio do luxo e do escândalo. Apresentou-se pois francamente como empresário — (alcoviteiro, proxeneta) — dessa metamorfose lucrativa para ambos, e acreditou que Aurélia tinha bastante juízo para compreendê-lo”.

O narrador define a reação de Aurélia à convocação dela pelas intenções de cáften do tio, ao escrever: “Como andorinha que não consente lhe manche as pernas a poeira levantada pelo vento, e revoltada molha constantemente as asas na onda do lago, assim a alma de Aurélia sentiu a necessidade de banhar-se na oração e purificar-se do contato em que se achara com essa voragem de torpeza e infâmia”.

O leitor está diante de uma conjuntura familiar característica da abordagem romanceada mais apropriada ao estilo do Realismo literário do que ao estilo narrativo de uma obra que se define como representante do Romantismo: $enhora.

Tio Lemos quer Aurélia garota de programa, disponível para a libido daqueles barões do café que comprassem o tempo da moça para suas ejaculações carnais, libidinais, voluptuosas. Tio Lemos sugeria na carta à sobrinha Aurélia, ainda pobre, que comercializasse o corpo, como qualquer moça de prostíbulo. Com ele faturando sua percentagem nas transações inspiradas pela lascívia de seus clientes.

O 3° Capítulo do livro $enhora de José de Alencar, “Posse”, fornece ao leitor os meios de compreensão emocional dos conflitos nos quais se desenvolvem as relações de propriedade financeira entre ambos, Seixas e Aurélia. A pertinência entre possuidor e possuído estabelece os limites de convivência do casal.

José de Alencar poderia tornar essa $enhora, uma obra de relevante teor literário própria do Naturalismo, partisse ele para uma abordagem tipo o conhecimento das certezas manifestas na intimidade de um casal convivendo sob o mesmo teto e sujeito às ingerências normativas da atração sexual entre ambos. Mas a abordagem literária não parte para as nuanças instintivas da relação entre Seixas e Aurélia.

José de Alencar, autor influenciado pelo movimento romântico, mantém o foco narrativo na individualidade das personagens, no lirismo egocêntrico de Aurélia que mantém viva a sede de vingar-se dele, Seixas, por tê-la trocado, em tempos de pobreza, pelo dote da rival (30 contos de réis) Adelaide Amaral. Ao lirismo egocêntrico de Aurélia contrapõe-se a sensibilidade amorosa passiva de Seixas pela mulher que o havia comprado via dote de cem contos de réis.

A abordagem estilística do autor José de Alencar, longe de ser realista, porque não se caracteriza pela predominância do tempo psicológico das personagens, se afirma no tempo cronológico dos eventos emocionais narrados. Esse tempo cronológico caracteriza o Romantismo, contra a prevalência das ideias científicas das escolas literárias do Realismo e, principalmente, do Naturalismo. Contra a corrente estética do formalismo narrativo e pictórico do Classicismo.

O Romantismo rompe com a Antiguidade Clássica ao afirmar a verdade supostamente superior das percepções íntimas que estimulam a alma insubordinada dos autores e personagens românticos.

A essência inquieta de Aurélia encontra o complemento ideal nas vicissitudes cotidianas que banalizam a vida familiar e social de Seixas. Ambos tiram força e proveito emocional dessa inquietude estimulante que move os conflitos interiores do casal.

A.N. Whitehead no livro "Science and the Modern World", diz que o movimento romântico reagiu contra a prevalência das ideias científicas. Insurgiu-se contra a consciência mecanicista do mundo. Até então os poetas e romancistas, a exemplo dos astrônomos e dos matemáticos, encaravam o universo como uma máquina obediente às leis da Lógica formal, sempre suscetível de explicação racional. O Criador não teria sido mais do que um fabricante de relógios.

Mas os relógios tanto marcam o tempo cronológico quanto o tempo psicológico e até mesmo o tempo quântico da vida das pessoas e das personagens românticas, realistas, naturalistas, simbolistas, modernistas, neo-pós-modernas. Verdade é que autores e personagens do Realismo não se movimentavam a partir dos desígnios, projetos e ideias científicas. O acaso, o fortuito e o acidental faziam parte de suas vidas e eram, gradativamente, incorporados ao seu cotidiano.

Nesse 3° Capítulo do romance $enhora, “Posse”, podemos observar Seixas sendo punido por Aurélia. A submissão dele às humilhações por ela infringidas, sua renúncia, não tão espontânea, à banalidade da vida mundana que tanto valorizava nas rodas sociais nas quais se inseria enquanto “furão”, presente num ambiente social que não o de origem, em busca de ser valorizado por uma mulher solitária em busca de um marido.

A suposta respeitabilidade da instituição burguesa do casamento evidencia-se na aceitação por Seixas, da prevalência das atitudes despóticas de Aurélia. Submete-se ele à certeza manifesta de que “manda quem tem dinheiro, submete-se quem tem juízo”. Quem tem dinheiro tem poder absoluto sobre o outro. O outro carente de grana.

Aurélia era a mulher ideal para a realização dos sonhos românticos do marido em um casamento no qual viveriam de forma idealizada, “felizes para sempre”. Aurélia valorizou sua companhia através do dote de cem contos de réis negociado pelo tio. E vice-versa: Seixas valorizou a proximidade com Aurélia de quem gostava pelos mais variegados motivos: vida boa, boa vida, como marido e amante de uma mulher, $enhora, abonada, rica, bonita, inteligente, incisiva em seus quereres.

Seixas soube se patrocinar nas festas provincianas da sociedade fluminense que imitavam o romantismo farsesco das comunidades cosmopolitas da Europa. Ele estava nos eventos sociais da sociedade fluminense pousando de burguês quando não passava de um quase proletário em busca de um “dote pelo amor de deus”.

Essas situações pessoais e sociais um tanto quanto realistas fizeram dele um amante ideal para Aurélia, que soube valorizar a origem social do marido de maneira não tão romântica, mas inteligente e realista. Mais de acordo com a origem social de ambos.

O 4° Capítulo, “Resgate”,

Aurélia poderia ter escolhido um “filhinho de papai” rico e bem nascido para casar, que por certo conviveria com ela alegando seus supostos dotes sociais “superiores” advindos do berço burguês. Mas decidiu pela escolha mais de acordo com sua procedência social. Alguém com quem poderia conviver com certa dignidade advinda da proximidade de identidades pessoais e sociais mais adequadas à convivência em um ambiente emocionalmente conciliador.

O pensamento cientificista combate o sentimentalismo romântico. $enhora, romance romântico de José de Alencar, desconsidera a imposição do capitalismo e da progressiva industrialização como sendo o padrão de conhecimento da realidade adotado por suas personagens principais: Seixas e Aurélia.

O leitor mais atento considera que o compromisso com a realidade do casal Aurélia e Seixas, excluiria $enhora das marcas afirmativas do Romantismo na literatura. Desde que o compromisso com a realidade é característico de obras literárias realistas-naturalistas. Em sendo uma obra de transição entre o Romantismo a caminho do Realismo, $enhora mantém o foco nas contradições inerentes às atitudes e às reações egocêntricas de Aurélia.

Aurélia, simultaneamente carinhosa, doce de coco para o deleite de Seixas, ao mesmo tempo inquieta, rival competitiva, mordaz, ofensiva, cruel e, com seus segredos de liquidificador que buscam moer a dignidade e a elegância construída artificialmente pelos modos e o comportamento supostamente requintados do marido nos salões fluminenses provincianos imitativos dos salões europeus.

Um ano decorrido do casamento, Fernando Seixas negocia seu resgate. Devolve a Aurélia os vinte contos de réis de adiantamento do montante de cem contos de réis correspondente à totalidade do dote, devolve-lhe o cheque de oitenta contos entregue a ele na noite de núpcias. Ao ver-se separada, Aurélia cai na real de que o cara metade pode mesmo separar-se dela. Ela, que não quer ficar sozinha e desprestigiada. Ela, que valoriza sobremodo o “manganão” do marido.

Aurélia mostra então a Seixas o testamento que fizera incluindo-o como seu único herdeiro. Ambos se reencontram romanticamente num happy-end para, futuramente, nenhum produtor de Hollywood botar defeito.

A título de conclusão: os componentes realistas do romance $enhora são muitos. Entre eles ressalta-se a hipocrisia reinante nos salões festivos da sociedade fluminense durante a vigência do Segundo Império. A influência do dinheiro no condicionamento pessoal egocêntrico de Aurélia, nas expectativas de ascensão de Seixas.

Seixas, alpinista social em busca, nos salões onde reinava a hipocrisia, de um dote “pelo amor de deus”. Enquanto as mulheres faziam seu “trottoir” em busca de um noivo para casar, nesses salões “cosmopolitas” da adoção de um marido, ao arremedo dos usos e costumes europeus.

O leitor atual, presumo, precisa discernir a linguagem da época dos atos de fala posteriores ao contexto da sociedade fluminense do Segundo Império. Se não fizer essa distinção, como poderá aguentar descrições tipo: “perfeição estatutária do talhe de sílfide”. — “Arfar ao suave influxo do amor”. — “Virgem bacante”. — “Como a alva papoula que se cora aos beijos de seu real amante”. — “Órgão da palavra viril” (a boca do Seixas). — “Toalhas de papel com que a civilização enxuga a cara ao público todas as manhãs” (leitura do jornal).

Lemos, o tio de Aurélia, chamava Seixas de “Manganão”. Manganão, possivelmente era um cara fanfarrão, folgazão e do pinto grandão. O tio Lemos de Aurélia, e essa constitui uma marca literária do Realismo, pensou em utilizar a beleza física da moça (anteriormente ao recebimento da herança do avô que a tornou uma mulher “bom partido”, rica, com um dote em dinheiro irrecusável), para ser seu cafetão e vendê-la, ou comercializar sua beleza física no mercado da prostituição e do usufruto sexual da mesma pelos barões da sociedade fluminense da época.

Pergunto-me e ao leitor, se o termo Manganão possui alguma associação semântica com o elemento químico de número 25 (Manganês), próprio dos trilhos de trem que necessitam de ligas de aço de grande dureza também usado em resistências elétricas de precisão.

Seria Manganão uma metáfora do exibicionismo de salão que poderia ser exercitado via ostentação do sexo de Fernando Seixas atrás do zip da calça? Por isso Aurélia morria de amores por ele? O Realismo da sugestão narrativa se faz presente nas pretensões casamenteiras de Aurélia que anima e excita a imaginação do leitor. E esse é um toque realista bastante sugestivo, não explícito, no romance $enhora de Alencar.

Verdade é que as personagens de $enhora são pessoas comuns (há quem extrapole todos os requisitos semânticos na intenção de ajustá-los — inutilmente — à definição de herói e heroína). Seus objetivos por mais românticos fossem, estão de acordo com suas vidas medianas em tudo e por tudo. Sua linguagem dialogal é simplória e informativa, apesar de romântica. Os males e maledicências sociais são enfatizados numa realidade de coquetel própria dos salões da sociedade fluminense do Segundo Império.

O escritor romântico tende a se identificar com suas personagens, com o altruísmo (autores afirmam que Fernando Seixas seria o alter ego de José de Alencar), o desprendimento, a abnegação, a filantropia, a beleza, a força, a sensatez, as qualidades quase sempre utópicas, ao ideal platônico de uma existência que exalta os instintos enquanto manifestação de uma natureza harmoniosa dos sentimentos, da imaginação e da fantasia valorizadas pelo transporte místico, pela idealização contumaz de objetivos superiores, plásticos, justos, éticos.

O romance $enhora anuncia e antecipa as marcas estilísticas nos registros do Realismo literário. Apesar de ser obra da escola literária do Romantismo.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 17/05/2014
Reeditado em 26/05/2014
Código do texto: T4809382
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