Surreal é... (EC)
Surreal é... (EC)
Surreal é...
Silêncio. Flores. Amores. Chuva no meio do oceano. A vida que há. A vida da gente. A vida do poeta Fernando Pessoa. Ou as vidas? Quantas vidas existiram em Pessoa?
Fernando Pessoa é o poeta do inimaginável, do imaginário, do diferente, do surreal. Enigmática a sua obra e porque transcende a realidade somos desejosos por compreendê-la. Como compreender as personalidades pessoanas? O fenômeno da heteronímia?
O próprio Fernando Pessoa tenta elucidar o fenômeno da heteronímia, “Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e desconhecidos que nunca existiram”. Além disso, estudos sobre Pessoa sugerem que a constituição psíquica do poeta, de natureza frágil e instável nos sentimentos, teria originado as várias personalidades, é uma possibilidade que nos incita a imaginação.
Em uma carta a amigos o poeta comenta que elas surgem diante dos poemas, dos quais são autores, e que não há um planejamento prévio e idealizado para elas. Há, também, uma leva de pesquisadores que apontam uma influencia ocultista e mediúnica na obra do poeta; o próprio poeta em carta a uma tia nos revela estar desenvolvendo qualidades de médium escrevente, “Emissário de um rei desconhecido/eu cumpro informes e instruções do além/ e a bruscas frases que aos meus lábios vêm/ soam-me a um outro e anômalo sentido... (Fernando pessoa, Obra Poética).”
O poeta é mesmo enigmático. Mas, se nos é difícil compreender os muitos Pessoas (ele próprio se questiona “Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?”In Livro do Desassossego), nós podemos senti-los. E para sentir apresentemos um deles: Caeiro.
A personalidade mais envolvente e por quem tenho preferencia é a de Alberto Caeiro, o mestre dos heterônimos. A filosofia de Caeiro é não ter filosofia alguma: “É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas”. No entanto, embora se proclame que a sua poesia é antifilosófica e antimetafísica, eu o considero aquele que mais filosofa dos heterônimos.
Ele nos apresenta uma poesia das sensações e percebe o mundo através dos sentidos. Para ele vale o ver e o sentir, recusando, assim, o pensar: “Creio no mundo como num malmequer,/Porque o vejo. Mas não penso nele/Porque pensar é não compreender./O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos)/Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo (In O guardador de Rebanhos, AC).”
O poeta afirma não acreditar em Deus: “Não acredito em Deus porque nunca o vi./ Se ele quisesse que eu acreditasse nele,/ Sem dúvida que viria falar comigo/ E entraria pela minha porta adentro/ Dizendo-me, Aqui estou!”, mas adiante se contradiz ao dizer “Mas se Deus é as flores e as árvores/ E os montes e o sol e o luar/ Então acredito nele.” No entanto, ele questiona ainda o porquê de chamá-lo de Deus “Mas se Deus é as árvores e as flores/ para que lhe chamo eu Deus?” .
O poeta assim o faz porque Caeiro sente tudo de forma diferente, sente com os sentidos e prefere não pensar sobre isso ou pensa através do que vê sem fazer uso da razão, do raciocínio: “Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; /Porque, se ele se fez, para eu o ver, /Sol e luar e flores e árvores e montes, /Se ele me aparece como sendo árvores e montes /E luar e sol e flores, /É que ele quer que eu o conheça /Como árvores e montes e flores e luar e sol. /E por isso eu obedeço-lhe, (...) E amo-o sem pensar nele, /E penso-o vendo e ouvindo, /E ando com ele a toda a hora (In O Guardador de Rebanhos, AC)”. É magistral esse Caeiro, nos presenteia com paradoxos próprios da vida cotidiana, do homem comum.
Fernando Pessoa é um dos maiores escritores em língua portuguesa do século XX, não há como negar. Sua obra continua sendo estudada e explorada e há muito a ser descoberto. O que o poeta faz em seus textos é buscar, incansavelmente, compreender a vida, a angústia presente na existência humana e compreender a si mesmo. Por isso ele se multiplica, re-cria, mas a sua essência é tal qual a de Alberto Caeiro, no poema XXIX de O Guardador de Rebanhos, o qual transcrevo na íntegra abaixo por recusar-me a ocultar a beleza e ternura presentes nos versos:
“Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma ...”
A partir desse poema apreendemos a essência da obra de Fernando Pessoa – uma essência que permanece, apesar das mudanças. Mesmo diante de sua criação – seus 72 heterônimos. É ele próprio quem está ali, em seus versos, diverso, mas de uma simplicidade de alma e coração.
É meio pretensioso, mas em uma palavra qualificamos a obra e/ou a vida do maior representante do modernismo português: surreal.
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