Extrato do artigo: BEATRIZ FRANCISCA DE ASSIS BRANDÃO: UMA VOZ QUE NÃO SE EXTINGUE

* O extrato foi organizado para as pessoas que quiserem saber sobre Beatriz Brandão, mas que não desejam ler todo o texto de um artigo acadêmico. Foram retiradas as citações longas e feitos alguns ajustes necessários.

O presente estudo toma como mote inspirador um artigo de (Oliveira; Oliveira, 2010) intitulado “O silenciamento literário das mulheres brasileiras”, ponto de onde se inicia a presente reflexão e debate teórico acerca do tema relativo à participação social da mulher intelectual brasileira no século XIX.

Caso o termo silêncio tivesse sido utilizado em lugar de silenciamento, talvez sugerisse ao leitor/pesquisador uma situação em que a mulher brasileira teria feito ou se mantido em silêncio (intencionalmente), teria sido omissa, não participativa e desligada da manifestação literária no Brasil. Entretanto, o termo silenciamento, bem mais incisivo, salienta a condição da mulher brasileira no século XVIII: aquela que foi silenciada, que foi obrigada a permanecer no silêncio, na sombra, sem vez e sem voz, sem direito ao conhecimento e à manifestação do pensamento. Mas, essa mesma mulher soube buscar espaço e luz através dos tempos, deixando seu nome impresso na história da luta feminina pela liberdade de expressar-se, pela autonomia, pela garantia dos seus direitos.

A esse silenciamento também se refere Batista (2003, p. 4): “No Período Colonial, as questões históricas (o mesmo ocorrerá nos períodos posteriores), (...), influenciarão diretamente o silenciar da fala feminina”. Observe-se que Batista usa inclusive o vocábulo interdição que carrega o significado de proibição.

A acusação de Oliveira; Oliveira (2010, p. 146) sobre esse silenciamento/interdição da voz feminina é relevante porque trata das “causas da falta de espaço enfrentada pelas mulheres no cenário literário brasileiro, além de propor uma ação pedagógica de enfrentamento a essa questão”. Os autores apresentam “o universo literário canônico brasileiro para fornecer evidências do referido silenciamento” e, ainda defendem a tese de que “a hermenêutica exegética masculina dos textos bíblicos é a principal causa do abafamento das vozes femininas na literatura brasileira”. Além disto, apresentam um importante quadro que se estende do século XVI ao século XX e no qual a predominância é de nomes de escritores do sexo masculino.

Não resta dúvida de que posicionamentos religiosos têm contribuído secularmente, e não apenas no Brasil, para o silenciamento e para a neutralização de qualquer manifestação que coloque a mulher em posição de igualdade ou de superioridade em relação ao homem. Entretanto, é um fato que, pouco a pouco essa situação vem, recentemente, se modificando e que já é possível encontrar uma parcela de homens que respeitam a autoridade exercida por mulher, aceita e até vibra com esses avanços conquistados. Por outro lado, a parcela que representa o machismo aberto, declarado e constrangedor, sabe como infundir insegurança e desequilíbrio emocional à mulher. São poucas as denominações religiosas que avançaram quanto a esta questão do machismo enquanto inúmeras são as que se demonstram mais arraigadas, teimam em manter a mulher em posição inferior, servindo ao seu senhor, aquele que entendem ser o legítimo representante da divindade. Para essas denominações religiosas de concepções machistas, em geral, Maria, mãe de Jesus, não desfruta de espaço privilegiado.

Além da interferência de ensinamentos de religiões, considere-se que “a literatura apresenta um diferente olhar sobre a linguagem e sobre o mundo. (...) e que ela pode servir para perpetuar compreensões limitadoras sobre os indivíduos, (...)”. (ZANELLA; COSTA, 2011, p. 30).

A produção literária feminina brasileira nos séculos XVII e XVIII reflete uma concepção cultural falocêntrica predominante até o século XIX e que “privilegiou, majoritariamente, figuras masculinas como representantes significativas em nossa formação literária”. (BATISTA, 2003, p. 1).

Sobre a mulher dos séculos de XVII a XIX pesava a mão da sociedade, ora representada pelo pai, ora pelo irmão, pelo tio, pelo padrinho, pelo padre ou por outra forma de dominação, mas sempre exercida pelo homem.

O que se ressalta e reverencia nessa mulher é o fato de haver pertencido ao contexto de uma sociedade machista, segregadora, preconceituosa. Portanto, a essa figura feminina cabe o privilégio do pioneirismo corajoso no momento em que se inscreve como autora, criadora.

Quanto à vida particular, mesmo sabendo que, por exemplo, sendo descobertas em adultério, os maridos teriam o direito de silenciá-la definitivamente, de matá-la, de “lavar a honra com sangue”, ainda assim as mulheres “trabalhavam, cuidavam de suas casas, adulteravam, festejavam, casavam, enclausuravam em conventos, etc., contudo impondo limites para o seu tempo” (ALBUQUERQUE, 2009, p.9).

Batista procedeu a um levantamento de nomes de mulheres que, apesar das dificuldades enfrentadas, produziram arte literária no Brasil Colônia. Entre elas, inclui Ângela do Amaral Rangel (a Ceguinha/1725-?); Maria Josefa Barreto (1775-1837), primeira jornalista do Rio Grande do Sul; e Beatriz Francisca de Assis Brandão (1779-1868), que, sob o pseudônimo “D. Beatriz” se dedicou à poesia, à prosa e à tradução.

Segundo Hollanda (2014, p. 1), as publicações mais significativas da área são geralmente vinculadas a resultados de encontros e seminários. Os livros publicados sobre o assunto ainda são poucos e, entre as principais publicações destaca: Boletim Bibliográfico org. Elza Miné. Biblioteca Mario de Andrade, vol.43, n.3/4, jul-dez 1982; Mulheres Escritoras, org. Suzana Funck. Ilha do Desterro, n.14, UFSC, 1985; Mulher em Prosa e Verso. org. Donaldo Schuler et alii. PA, Movimento, 1988; Mulher e Arte. org. Adalgisa A. Campos. Cadernos do NEP n.6, nov. 1988. UFMG. Travessia n.2, UFSC, 1989; Feminino Singular. A Participação da Mulher na Literatura Contemporânea. org. Nelly Novaes Coelho. SP, GRD, 1989; A Mulher Escrita. Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão. Casa Maria Editorial, 1989; A Mulher na Literatura v.1, org. Ana Lucia Gazolla. UFMG, 1990 A Mulher na Literatura v.2 e 3, org. Nadia Gotlib. UFMG, 1990 Feminino e Literatura. org. Vera Queiroz. Tempo Brasileiro, n.101, 1990; A Transgressão do Feminino. org. Maria Helena Khuner, Rosiska Darcy de Oliveira e Isis Baião. IDAC/PUC RJ, 1990; O Bildungsroman Feminino: quatro exemplos brasileiros. Cristina Ferreira Pinto. Perspectiva, 1990; Mapeamentos importantes como o Dicionário de Escritoras do Brasil, organizado por Nelly Novaes Coelho e o Dicionário de Ensaístas Brasileiras do CIEC (Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos) estão em fase de preparação.

A voz feminina que se faz ouvir neste texto é a da mineira Beatriz Francisca de Assis Brandão (29 de julho de 1779 – 5 de fevereiro de 1868), poeta e educadora brasileira. Beatriz ousou transgredir os padrões de sua época. Viveu entre os séculos XVIII e XIX e foi colaboradora de jornais cariocas do período Imperial/Segundo Reinado, além de ter produzido uma volumosa obra poética.

Nascida em Vila Rica (atual Ouro Preto), capital da província de Minas Gerais, era a filha do sargento-mor Francisco Sanches Brandão e de Isabel Feliciana Narcisa de Seixas, foi batizada na igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Foram seus padrinhos Dom Antônio de Noronha, sétimo governador de Minas e sua tia, dona Catharina Leonor da Silva Soteria, filha do general Bernardo da Silva Ferrão, avô de Beatriz. Exerceu atividades de diretora do primeiro educandário para meninas em Vila Rica, de tradutora dos idiomas francês e italiano e também como musicista.

Estudiosos afirmam que ela se casou provavelmente aos 33 anos com o Alferes Vicente Batista Rodrigues Alvarenga, seis anos mais novo que ela, contudo, consta que o casal não teve filhos. A farta documentação apresentada por Pereira (2009) prova quanto a coragem de Beatriz ao deixar o marido e pedir o divórcio e, por parte do marido, a dominação, a acusação de adultério, a ganância, o oportunismo, a traição e o interesse em seus bens.

Segundo Vasconcellos (2006), Beatriz Francisca publicou seus versos no jornal carioca Parnaso Brasileiro, reunindo-os, posteriormente, em um único volume, com o título de Cantos da Mocidade (1856).

O Diário Oficial da União (DOU) de 26 de Junho de 1928, pág. 35. Seção 1, publicou o parecer favorável à admissão de Beatriz Brandão ao Instituto Histórico e Geographico Brasileiro.

Segundo Pereira (2010, p. 20), Beatriz organizou uma recepção ao Príncipe Dom Pedro, e para esse evento compôs o Hino do Fico e organizou o coro das moças, que receberam o importante português, em Vila Rica.

A poeta se separou do marido com quem conviveu cerca de trinta anos, e que a maltratava. Após a separação, em 19 de janeiro de 1839,quando Beatriz estava aos 60 anos de idade, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornou amiga da imperatriz Teresa Cristina e de escritores do período, inclusive de Machado de Assis, ambos colunistas do jornal carioca "Marmota Fluminense". Beatriz escrevia para um público feminino, leitor do periódico publicado no Rio de Janeiro, (de 1849 a 1857), “um jornal de modas e variedades, o que indica ser recorrente a presença significante desses poemas em suas páginas” (PRIAMO et al, 2011, p. 11).

Os versos publicados no Parnaso brasileiro foram reunidos sob o título de Cantos da mocidade, em 1856. A segunda obra publicada foi Carta de Leandro a Hero, e Carta de Hero a Leandro, também no Parnaso brasileiro. Quando se tornou conhecida por sua obra, foi homenageada com a publicação de um artigo "Prima de Marília", exaltando seus dotes poéticos, no Correio Mercantil (28 de abril de 1868). Beatriz tornou-se a patrona da cadeira n° 38 da Academia Mineira de Letras e pertenceu à Sociedade Promotora da Instituição Pública da Cidade de Ouro Preto. Ângela do Amaral, Bárbara Heliodora, Delfina Benigna da Cunha, Violante Atabalipa e Nísia Floresta eram contemporâneas de Beatriz Francisca.

Segundo Vasconcellos (2006), as obras de Beatriz Francisca de Assis Brandão assim podem ser listadas: Poesias. In: BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso brasileiro ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1831.v.2, cad. 5°, p.27-38; Carta de Leandro à Hero, traduzida do francês, e dedicada à Senhor a D. Delfina Benigna da Cunha, e Carta de Hero a Leandro. In: BARBOSA, Januário da Cunha. Parnaso brasileiro ou collecção das melhores poesias dos poetas do Brasil, tanto inéditas, como já impressas. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1832. v. 2, cad. 7°, p. 7-28.15; Cantos da mocidade. Rio de Janeiro: Emp. Typ. Dous de Dezembro,1856. v. I. Saudação à Ilma. e Exma. Sra. Dona Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e Velasco. Poesia em versos hendecassílabos, que vem em um livro anunciado por B.X.P. de Sousa, em 1859. Catão. Drama trágico pelo abade Pedro Metastásio, traduzido do italiano. Rio de Janeiro: Typ. B.X.P. de Sousa, 1860. É precedido de uma dedicatória em versos à princesa Dona Januária. Lágrimas do Brasil. Poesia em versos hendecassílabos, no mausoléu levantado à memória da excelsa rainha de Portugal, dona Estefânia. Rio de Janeiro, 1860. As comendas. Rio de Janeiro, s. d. Poesia (VASCONCELLOS, 2006).

Os textos abaixo, de autoria da poeta de Vila Rica, para atender a uma finalidade meramente didática, aqui estão numerados da seguinte maneira Sonetos I, II, III e IV.

SONETO I

Estas, que o meu Amor vos oferece,

São tardas produções de fraco engenho,

Amadas Nacionais, sirvam de empenho

A talentos, que o vulgo desconhece.

Um exemplo talvez vos aparece

Em que brilheis nos traços, que desenho:

De excessivo louvor glória não tenho,

E se algum merecer de vós comece.

Raros dotes talvez vivem ocultos,

Que o receio de expor faz ignorados;

Sirvam de guia meus humildes cultos.

Mandei ao Pindo os voos elevados,

E tantos sejam vossos versos cultos,

Que os meus nas trevas fiquem sepultados.

SONETO II

Voa, suspiro meu, vai diligente,

Busca os Lares ditosos onde mora

O terno objeto, que minha alma adora,

Por quem tanta aflição meu peito sente.

Ao meu bem te avizinha docemente;

Não perturbes seu sono: nesta hora,

Em que a Amante fiel saudosa chora,

Durma talvez pacífico e contente.

Com os ares, que respira, te mistura;

Seu coração penetra; nele inspira

Sonhos de amor, imagens de ternura.

Apresenta-lhe a Amante, que delira;

Em seu cândido peito amor procura;

Vê se também por mim terno suspira.

SONETO III

Meu coração palpita acelerado,

Exulta de prazer, de amor delira,

Novo alento meu peito já respira,

É mil vezes feliz o meu cuidado.

O meu Tirse de mim vive lembrado,

Saudoso, como eu, por mim suspira;

Que seleto prazer a esta alma inspira

A amorosa expressão do bem amado!

Doce prenda dos meus ternos amores,

Amada, suavíssima escritura,

Que em meu peito desterras vãos temores;

Em ígneos caracteres na alma pura

Grava, Amor, com os farpões abrasadores

Estes doces penhores da ternura.

O Soneto I se dirige a vos, 2ª pessoa do plural, tratamento mais cerimonioso. O teor poético da composição permite entrever o sentido de submissão da mulher que se diz de “fraco empenho” à supremacia masculina, considerando ainda que “de excessivo louvor glória” ela não dispõe e “se algum merecer de vós comece”, cedendo a quem apela, dessa forma, a supremacia da inteligência e altitude de voo poético.

Depreende-se da leitura dos versos que a autora menospreza, inferioriza seu talento de poeta, pois, as obras que dedica ao objeto de seu amor são por ela própria ditas “tardas produções de fraco engenho,”.

O primeiro terceto refere-se a “raros dotes que vivem ocultos” e “que o receio de expor faz ignorados;”. Quando sugere que “sirvam de guia” (a esses raros dotes ocultos), os seus (dela) “humildes cultos”, então facilmente se infere que essa proposta revela pertencerem a ele (ao amado) os raros dotes ocultos. Nota-se aí a atitude simples da pastora e o estado de espírito de espontaneidade dos sentimentos. E, nessa altura do poema, a poeta novamente se humilha com seus (dela) “humildes cultos”. No segundo terceto, o eu poético em êxtase diz haver mandado ao alto monte Pindo os “voos elevados”, mas clara se mostra a intenção de que os cultos versos do amado estejam sempre em posição mais elevada e os dela “nas trevas fiquem sepultados”. E que quem seria ele? E por que não se exporia?

O Soneto II conserva a mesma temática lírico-amorosa de tom confessional bem ao gosto do arcadismo. O eu poético ordena a si mesmo que voe “suspiro meu, vai diligente,”. Trata-se de alguém que procura o terno objeto de adoração e “por quem tanta aflição” o “peito sente”. A Amante “fiel e saudosa chora” enquanto o amado dorme.

No primeiro quarteto, a Amante dirigindo-se ao amado e assumindo um tom de sussurro naquele ambiente onírico em que o objeto do seu amor, ela supõe, dorme “pacífico e contente”. O eu poético aparece personificado em um suspiro que, docemente, cuida em não perturbar o sono do amado naquela hora. Essa preocupação denota que o ambiente é o da madrugada “em que a Amante fiel saudosa chora”. Interessante aqui essa declaração de fidelidade lírico-amorosa.

Nota-se, a partir do primeiro terceto, a mudança de pronome. A poeta utiliza a segunda do singular (tu). Pode ser que essa mudança tenha sido proposital para sugerir a intimidade da poeta com o amado. Ou ainda a mudança tenha sido mesmo uma imprecisão linguística da autora que mistura os pronomes em uma composição clássica. No terceiro verso do primeiro terceto passa, repentinamente, para a terceira pessoa (seu. Possivelmente se refere a si mesma). As imagens se fundem no sonho e, no último terceto, a poeta se dirige novamente ao amado, agora usando a terceira pessoa do singular (lhe): “Apresenta-lhe a amante, que delira”, isto é, ela pede ao suspiro que a apresente ao amado em situação de delírio. Nos versos finais desse terceto o eu poético se enche de carinho em sua procura amorosa, verificando “em seu (dele) cândido peito [...]” o amor que ela busca e demonstrando que precisa constatar se ele (o amado) também por ela “terno suspira”. O homem amado surge como uma figura cândida e terna, quase feminina.

O Soneto III, enfim, traz a suposta correspondência amorosa, a poeta confessa a palpitação acelerada do coração. Em linguagem centrada no eu/meu, o primeiro quarteto exibe uma Amante que “exulta de prazer, de amor delira,/Novo alento meu peito já respira,/É mil vezes feliz o meu cuidado”.

O segundo quarteto aumenta a certeza de que o seu Tirse vive lembrado de si e saudoso também suspira, além de inspirar a poeta. No primeiro terceto os adjetivos tornam a mostrar a figura de um amado tomado de ternuras e que do peito da Amante desterra “vãos temores”. O segundo terceto arremata toda a satisfação e convicção que alcança o animus da poeta, vez que o seu amado “em ígneos caracteres na alma pura/Grava, Amor, com os farpões abrasadores/Estes doces penhores da ternura”.

Os sonetos de Beatriz são urdidos em uma ambiência transcendental, idealizada, pura, de doação irrestrita e não alcançam a sensualidade e o erotismo que, mais à frente no tempo, vai inundar a poética da uruguaia Delmira Agustini (1886-1914).

Tirse, pseudônimo adotado para representar o seu amado, quase sempre terno e doce, aparece diversas vezes nos poemas de Beatriz Francisca, como se vê nestes exemplos: “alma terna”; “Vem, ó Tirse gentil, vem consolar-me,”; “Dos meigos olhos teus na azul esfera,/Como de etéreos globos rutilantes,/Partem, ó Tirse, raios cintilantes,”; “ó, Tirse afortunado”; “Tirse, meu doce amor, minha alegria”. Em outros versos, ela o repudia e deixa o leitor em dúvida: “Tirse, perjuro!”; “Por que repetir-me/Que é Tirse traidor?”; “Conheço que é falso,/Cruel, inconstante;”; Tirse ingrato, do meu mal/Adorado causador”.

Toda a ternura que Beatriz Francisca atribui a seu amado Tirse, de “lindos olhos feiticeiros” não leva a crer que a sua inspiração se originasse das saudades do marido, de quem sofreu os atos de infâmia, difamação e calúnia. Pode ser que a poeta, de influência neoclássica, tenha idealizado um motivo para o seu canto.

Não foram encontradas nas leituras feitas para a composição deste estudo referências a algum homem ou amante na vida de Beatriz, que não fosse o marido. No caso da uruguaia Delmira, a traição foi um fato que findou com o seu assassinato perpetrado pelo esposo traído. Por outro lado, não há notícias sobre comportamento socialmente reprovável por parte da poeta Beatriz, a não ser pelas manobras falaciosas do marido.

A glosa “Caro Tirse, se em teu peito/Cabe negra ingratidão,/Se mais o teu coração/Não palpita a meu respeito,/Evita o funesto efeito/Do meu mal, em quanto é cedo; Mata-me, não tenhas medo/Que te culpem de homicida,/Porque privar-me da vida/Tu bem podes em segredo” deixa um espaço livre para uma leitura indicadora do gênio do Alferes e ainda quanto ao ato extremo de submissão de Beatriz, a poeta. O que teria ela insinuado ao compor os versos nos quais diz que o amado poderia tirar-lhe a vida em segredo? Será que faz menção a uma morte providenciada por um agente externo?

O Soneto IV, cuja tradução é de Adovaldo Fernandes Sampaio, autor da obra Voces femininas de la poesia brasileña/Ensayo Antológico, recebeu o título de uma pergunta feita por Beatriz no primeiro verso do primeiro quarteto: ¿qué tienes, corazón?

SONETO IV

Que tens, meu coração? Porque ansioso

Te sinto palpitar continuamente?

Ora te abrasas em desejo ardente,

Outra hora gelas triste e duvidoso?

Uma vez te abalanças valeroso

A suportar da ausência o mal veemente;

Mas logo esmorecido, descontente,

Abandonas o passo perigoso?

Meu terno coração, ela, resiste,

Não desmaies, não tremas; pode um dia

Inda o Fado mudar o tempo triste.

Suporta da saudade a tirania,

Que ainda verás feliz, como já viste,

Raiar a linda face da alegria.

O mais apropriado, entretanto, não seria dizer que Adovaldo fez uma tradução, nem propriamente uma versão para o idioma espanhol, mas uma releitura, uma recriação, uma adaptação poética do soneto produzido pela poeta mineira. Inclusive, não seguiu o poema no formato clássico do soneto: ¿Qué tienes, corazón?/Que así te siento palpitar,/Sin alivio ni alegria/Suspirar/Tristemente?//¿Qué recelas, qué temes:/De tanto recelar,/Nace un delírio/Que te hace suspirar/ Continuamente.//Tu bienamada es fiel/y por ti vive sin mudanza,/en el placer y en la amargura,/Suspirando/Tiernamente.//Tú dudas y vacilas,/No logras el sosiego; Lejos del bienamado,/suspirando/ Enloquecido.//¡Ai de mi! Em vano intento/Moderar tus transportes./¡Desdichada! Em vano me fatigo,/Suspirando/Sin trégua.//Privado de tu dulce bien,/No puedes soportar/Las leyes sin piedad,/Suspirando/De añoranza.//Sólo un poder injusto/ Puede separar nuestras vidas;/Pero uno de otro ausente, nos verán/Suspirar/Mutuamente.(SAMPAIO, 1979).

Nessa releitura intitulada ¿qué tienes, corazón? Adovaldo assume plenamente o eu poético feminino e questiona o próprio coração sobre a inquietude em que vive palpitando pelo ser amado. Dessa forma, veste a alma da poeta Beatriz Francisca e também responde a essa inquietação, colocando-se mais uma vez na posição do emissor da mensagem poética e nela se infiltrando com muita categoria e percepção psicológica do íntimo feminino.

Adovaldo conferiu bastante musicalidade aos versos usando no final de cada estrofe os advérbios tristemente, continuamente, tiernamente; e o adjetivo enloquecido; a expressão de força adverbial sin trégua; o complemento verbal de añoranza; e finaliza com o advérbio mutuamente. Conseguiu um efeito extremamente poético e emocionado na última estrofe quando disse do uníssono em que batem os corações do amado e da amante, mesmo distantes um do outro.

O mundo caminha na direção da autonomia da mulher, na garantia de sua total cidadania e respeito aos seus direitos. As leis são revistas e ajustadas, outras surgem no contexto de uma sociedade na qual, em detrimento da luta diária pela emancipação, pela qualidade de vida, pela garantia de integridade física e psicológica da mulher, ainda vigoram as atitudes de machismo e brutalidade que se encarregam de perenizar a hostilidade, a ridicularização e todas as formas de agressividade na direção da mulher.

Os anos escorrem às centenas, as lutas e manifestos se sucedem, mas essa mentalidade permanece fazendo brotar suas “flores do mal”. Inclusive são muitas as mulheres que contribuem para a manutenção dessa situação se posicionando a favor dos comportamentos reprováveis, das atitudes constrangedoras e reprisando os antigos ensinamentos de submissão da mulher aos filhos e netos.

A voz da mulher tem sido silenciada, sim, mas é preciso pensar em como reeducar aquela mulher que concorda, que aprova, aceita ser silenciada e que faz silenciar as outras. Dessa maneira, ajudam a construir fossos, a eternizar dominações e, ainda pior, contribuem para neutralizar a voz daquelas pioneiras que gritaram um dia para que fosse aberto o apertado espaço para a passagem de uma mulher que era considerada uma espécie de animal doméstico (a pobre e negra) ou um bibelô (a burguesa e de pele clara).

A mulher pobre e que, atualmente, ascende a algum degrau de realização, precisou daquela que lutou pela ascensão, pelo direito ao voto, à educação e à luta pelo sucesso pessoal e profissional.

A mulher rica e instruída da privilegiada classe moderna precisou daquela que ousou enfrentar uma sociedade na qual ela era considerada uma boneca de louça, uma peça de decoração, um item de orgulho para o senhor seu marido apresentar nos salões.

A mulher intelectual, a pesquisadora e a artista de hoje têm o seu espaço garantido não pelo homem, mas por mulheres como Beatriz Francisca que ousaram enfrentar o regime anterior, a voz grave e a força do braço masculino.

Uma mulher como Beatriz Francisca que ocupou a mente com as artes da palavra e da música, além de ter sido educadora e jornalista, merece o respeito da sociedade, da História, da Literatura e, principalmente, das mulheres deste século que estão sendo beneficiadas pela ação de pioneiras e corajosas mulheres do passado. Ouçamos a voz de Beatriz Francisca de Assis Brandão.

REFERÊNCIAS

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