O Humor na Poesia
(Nena Medeiros)
Poema da Derrocada
Quem mexeu no meu sorriso
Que perdeu viço e volume?
Quem mudou o meu humor
Pra esse fanhoso queixume?
Quem engrossou minha voz?
Quem mexeu nos meus joelhos
Que doem quando eu levanto?
Quem estragou meus espelhos?
Quem arruinou minha pele
Que parece craquelê
Que tem sulcos como as pistas
Que margeiam o Tietê?
Quem retirou os suportes
Que seguravam os peitinhos?
Quem derrubou o bumbum
E pôs os cabelos branquinhos?
Quem, meu Deus, poderia
Fazer-me tanta maldade
Destruir em tão pouco tempo
Qualquer ilusão de vaidade?
Eu que já fui tão bonita
A rainha da cocada preta
Agora estou parecendo
Um maracujá de gaveta
Quem mexeu, quem foi, porquê?
Quem foi que me deixou lerda?
Só sei que posso afirmar:
Ficar velha é uma.... bênção!
Tenho predileção por textos de humor. Aliás, posso dizer que tenho um vício pelo cômico e, mesmo quando abordo temática séria, acabo resvalando para o risível. Este defeito me condena à ausência de adjetivos que associem meus escritos à beleza. Quando muito, um “bonito, hein?!”, em repreensão a alguma ideia ou fato politicamente incorreto apresentado na ânsia de arrancar sorrisos (no mínimo), risadas (sucesso) ou gargalhadas (é a glória!!!).
De fato, quando alguém usa a palavra “lindo” para elogiar uma piada, passa a impressão de que, ou não prestou atenção, ou não achou a menor graça, o que, para o seu autor ou narrador, é muito, muito triste.
Vários autores defendem que o riso é provocado pelo ridículo, pelo condenável, pernicioso. Ora! Quem, em sã consciência, julgará belo o ridículo, o condenável, o pernicioso?
Lindo é o motivacional, belo é o sofrimento, bonito é o ingênuo. Taí! Uma exceção à minha teoria: o ingênuo pode ser engraçado e, vindo de uma criança, certamente será gracioso, ainda que nos faça rir.
Fora isso, o risível é feio, é patético, é errado, características que imediatamente excluem os padrões de perfeição comumente aceitos.
Isso explica porque tantos escritores optam por produzir fábulas adocicadas, lacrimosas despedidas, rancorosas desilusões, densos apelos sociais... Afinal, por artista, entende-se aquele que faz arte e, pela arte, busca-se alcançar a perfeição da estética.
Sendo assim, cabe a pergunta: quem faz humor, faz arte? Faz! Claro que faz! Afinal, se o engraçado raramente será belo, o riso é lindo!
O crítico de arte inglês, Clive Bell, afirmou que, uma das coisas que mais claramente distinguem um homem civilizado de um selvagem é o senso de humor, a capacidade para perceber o ridículo de tomar as coisas com excessiva seriedade e atribuir-lhe uma importância indevida. Ele entende o senso de humor como um privilégio exclusivo daqueles que sabem distinguir os fins dos meios, percebendo o cômico inerente aos esforços humanos, tão fadados ao fracasso em maior ou menor grau.
Aparício Torelli, o Barão de Itararé, define humor como a capacidade de ver o que há de negativo nas coisas positivas e o que há de positivo nas coisas negativas.
Na poesia, o humor remonta aos primórdios do teatro grego. Com um papel muito mais didático e religioso do que de mero entretenimento. Os textos, em sua maioria, eram produzidos em versos e se dividiam em tragédia e comédia. As tragédias tratavam essencialmente de homens superiores (deuses ou heróis), enquanto a comédia fala sobre os homens inferiores (pessoas comuns da pólis). O maior representante da comédia grega é Aristófanes, autor de “As Rãs”. Em sua peça, “As Nuvens”, faz uma crítica severa aos Sofistas, por sua busca em explicações científicas para todos os fenômenos mundanos, antes atribuidos a figuras mitológicas. Neste trecho, Estrepsíades, insone, lamenta pelos gastos do filho que o estão arruinando.
Não consigo dormir. Malditas dívidas!
Não me deixam sequer piscar os olhos.
Tudo por tua causa, filho ingrato.
Teus malditos cavalos, tuas selas,
Arreios, jaezes e chicotes,
E rabos de cavalo, ainda por cima!
Estou falido, arruinado, pobre.
O que vai ser de mim no fim do mês,
Quando todas as dívidas vencerem?
Vou ver aqui nas contas quanto devo.
A Pásias a importância de trezentos...
Isto tudo? Para o que terá sido?
Ah! Agora me lembro! Estou lembrado:
O cavalo capão que eu lhe comprei.
Acho que era melhor me ter capado!
Aliás, esta será uma característica da poesia ao longo do tempo. O humor fica restrito aos assuntos mundanos, cotidianos, sendo, por isso, banido da poesia dita de qualidade por vários séculos. Ainda assim, alguns autores renomados ousaram produzir humor. Shakespeare o fez. E, se não o fez em seus sonetos, pode-se observar versos de humor em suas comédias:
Quando as violetas, as margaridas
e as cardaminas de cor de prata,
todas cheirosas, todas garridas,
o chão matizam da extensa mata,
o cuco zomba, no alto escondido,
dos casadinhos, em sustenido:
Cuco! Cuco!
Oh! que palavras de desagrado
para os ouvidos do homem casado!
Em terras brasileiras, observamos uma maior aptidão aos versos de humor. Ainda no século XVII, surgiu o sarcástico e polêmico Gregório de Matos, que, por suas críticas ferinas ao Brasil e à Bahia, recebeu a alcunha de Boca do Inferno. Em seu soneto, “Descrevo o que era Realmente Naquele Tempo a Cidade da Bahia.”, não poupa ninguém.
A cada canto um grande conselheiro,
que nos quer governar cabana, e vinha,
não sabem governar sua cozinha,
e podem governar o mundo inteiro.
Mestre que é mestre ousa também nesse gênero e o faz com galardia. O grande Machado de Assis mostrou que o inusitado também pode ser divertido, sem abandonar a técnica primorosa em seu soneto Círculo Vicioso, em versos alexandrinos:
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
- Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
- Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:
- Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?
Após a Semana da Arte Moderna, o humor foi reabilitado na poesia, sendo instrumento para expressão da rebeldia inerente ao período, em que se buscava uma revolução que transformasse a vida social dos brasileiros, suas instituições e costumes. Com isso, surgem os poemas piadas, a paródia. No poema “brasil”, Oswald de Andrade faz uma crítica ao ufanismo exagerado, buscando o passado de forma crítica, irônica. Ressalte-se que o título do poema é grafado em minúsculas, como forma de satirizar até o nome do país.
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani de mata virgem
-Sois cristão?
-Não, Sou bravo, sou forte sou filho da morte
Tetetê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá de longe a onça resmungava Uu! Ua! Uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
-Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o carnaval.
É notório o humor nesse poema, que retrata a construção da etnia brasileira, com o Zé Pereira, português, o índio guarani de mata virgem e o negro zonzo saído da fornalha. Observe-se a valorização do falar do povo da terra, a linguagem coloquial, como “preguntou, pro”, incentivada pelos Modernistas, assim como a rebeldia, suscitada pelas referências ao genocídio dos povos indígenas, ao trocar filho do Norte por filho da Morte.
No côro dos Orientalismos Convencionais, Mário de Andrade contrapõe o passado dos parnasianos.
(...) Somos os Orientalismos Convencionais!
Os alicerces não devem cair mais!
Nada de subidas ou de verticais!
Amamos as chatezas horizontais!
Abatemos perobas de ramos desiguais!
Odiamos as matinadas arlequinais!
Viva a Limpeza Pública e os hábitos morais!
Somos os Orientalismos Convencionais!
Mário de Andrade mesclou, em sua obra, lirismo e humor, como pode ser visto em seu poema Moda da cama de Gonçalo Pires, em que narra a desdita de Gonçalo Pires, único possuidor de uma cama na vila, dele confiscada pela Câmara de vereadores, para dar guarida ao Ouvidor Geral em visita à cidade.
Delém! dem! dem!... O Ouvidor vai-se embora.
Sai mais festejado que quando entrou...
A Câmara impa de satisfação.
Mas os vereadores são bons paulistas:
- Que entregue-se a cama com prontidão.
Gonçalo Pires rejeita o bem dele.
Não dorme em cheiro de ouvidor-geral...
Se reune a Câmara em nova sessão.
- Lave-se o lençol! indica o notário.
Qual! Gonçalo empaca no rejeição.
Sete anos levam nessa pendenga
A Câmara Paulista e Gonçalo Pires,
Paulista emperrando, não cede não.
E a História não sabe que fim levaram
Cama cobertor lençol e colchão.
O rompimento proposto pelos modernistas não foi bem aceito pelo público em geral, pelo menos até a chegada de Manuel Bandeira a este cenário. Auto-intitulando-se dramático, um sentimentalão, sua poesia caiu no gosto do brasileiro ao tratar dos assuntos de família, muitas vezes, de forma patética. Sua saúde precária devida à tuberculose contribuiu sobremaneira com este estilo.
Em sua poesia mais conhecida, Vou-me embora pra Passárgada, Bandeira reúne humor, saudosismo, erotismo e a visão fantasiosa de um mundo intangível.
Vou-me embora pra Passárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei (...)
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar (...)
Em Passárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar (...)
Um representante mais tardio do Modernismo, mas nem por isso menos importante foi o poeta maior, Carlos Drummond de Andrade. Embora adote a liberdade linguística, o verso livre, sem métrica, as temáticas cotidianas, Drummond não pode ser considerado um modernista. Sua obra é sui gêneris, livre de referências ou marcas ideológicas. Seus versos brincam com o inusitado, como em “O amor bate na aorta”.
Cantiga do amor sem eira nem beira,
vira o mundo de cabeça para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor. (...)
Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
Considerado o "poeta das coisas simples", com um estilo marcado pela ironia, pela profundidade e pela perfeição técnica, Quintana também passeou pelo humor com grande desenvoltura veja um exemplo na quadrinha “Do amoroso esquecimento”:
Eu, agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?
Outros autores merecem referência quando o assunto é humor na poesia. Murilo Mendes, surrealista, em sua Canção do Exílio:
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm
por testemunha a Gioconda.
Eu morro sufocado em terra estrangeira.
Nossas flores são mais bonitas
nossas frutas mais gostosas
mas custam cem mil réis a dúzia.
Cassiano Ricardo, jornalista associado aos grupos Verde-Amarelo e da Anta, do modernismo dito nacionalista:
"Diante de coisa tão doida
Conservemo-nos serenos
Cada minuto da vida
Nunca é mais, é sempre menos
Ser é apenas uma face
Do não ser, e não do ser
Desde o instante em que se nasce
Já se começa a morrer."
Vinícius de Moraes, que, embora tenha se destacado mais pela música, era na verdade um grande letrista e, como tal, um poeta.
Daí, a alcunha "Poetinha":
Tomara
Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho
E chore, se arrependa
E pense muito
Que é melhor se sofrer junto
Que viver feliz sozinho
Mais recentemente, assumem o estandarte do humor na poesia os representantes da Geração Mimeógrafo: Chacal, Cacaso, Afonso Henriques Neto, Paulo Leminski e o cantador de Brasília, Nicolas Behr. Veja esse poema de Cacaso:
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
(será mesmo com dois esses
que se escreve paçarinho?)
E este do Nicolas Behr, ótimo representante de seu minimalismo, sempre referenciando e reverenciando Brasília:
naquela noite
suzana estava
mais w3
do que nunca
toda eixosa
cheia de l2
suzana,
vai ser superquadra
assim lá na minha cama.
Concordando com Cassiano Nunes, cujo artigo sobre Humor na Poesia foi fonte da maior parte da pesquisa desta palestra quando ele diz que, por mais que alguns autores tenham buscado a poesia mais perfeita e pura em seu ideal de estética, o humor, como representante da condição humana teve seu papel na expressão literária. A propósito, o poema que recitei lá no início, falando das agruras do envelhecer, um assunto tão solenemente mundano, é meu.
Encerro, com os versos de Fernando Pessoa que, embora não seja um autor de humor, são, inquestionavelmente versos divertidos:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Veja a apresentação de slides gerada a partir dele e assista a um vídeo da palestra (incompleto) realizada no dia 14/03, durante o evento.