DEUS E A RELIGIÃO EM ÉRICO VERÍSSIMO

Ao ler Érico Veríssimo impressionou-me a frequência com que volta ao tema de Deus e da religião. Segundo dados psicológicos, artistas e escritores objetivam em suas obras as preocupações de seu interior. Érico não escapa desta regra, pois fala pela boca de seus personagens.

No presente comentário seleciono algumas passagens em obras de Érico Veríssimo em que emite opiniões a respeito de Deus e da religião. No meu entender, Érico, de certa forma, culturalmente era cristão, mas sem prática cultual. Em seu livro “México”, por exemplo, relata que, em sua visita à Cidade do México, em companhia de sua esposa, quando entrava numa igreja a sua esposa se ajoelhava para rezar, enquanto ele se satisfazia em contemplar as obras de arte dentro do templo.

Considero Érico um eclético. Em sua filosofia de vida encontramos traços do positivismo de Augusto Comte, do socialismo e do existencialismo. Em seus questionamentos manifesta angústias existenciais. Isto é natural, pois é natural em todos os grandes homens, que não se satisfazem com as opiniões vulgares.

Quanto a Deus, Érico admite a sua existência. Mas faz os seus personagens, frequentes vezes, duvidar dela. No primeiro tomo do “Arquipélago” (1961: p 52) faz um de seus personagens dizer: “Tio Bicho disse: Deus pode existir. Deus pode não existir. Quem vai decidir a questão é você mesmo, quando crescer”.

No livro “Saga” (1958: p 64) coloca na boca de um de seus personagens esta consideração: “Uma curiosidade mórbida de repente me assalta. Tenho observado as minhas reações diante da vida, quero agora ver como me porto ante a morte. Talvez seja o estonteamento, o pavor e não haja, ao final de contas, nenhuma possibilidade de análise. Ou também é possível que a morte me leve sem que lhe consiga ver o rosto. Seja o que Deus quiser. Curioso, eu não acredito em Deus, mas Ele sempre está em meus pensamentos. E em minhas palavras. Figura de retórica? Estranha figura, por sinal. Com um mistério e uma secreta força que nenhuma outra tem. Deus pode existir. Ou será que a proximidade do perigo me está amolecendo a vontade?”.

Transparece nos livros de Érico Veríssimo que leu a Bíblia toda; leu também os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, além, de muitos outros livros de espiritualidade. Sem dúvida, também terá lido as “Confissões” de Santo Agostinho, pois Érico está em constante busca da verdade.

Não encontrando argumentos adequados para provar a existência de Deus, Érico diz (Saga (1958), p 144): “É para o céu que sempre olham os que se julgam perdidos, os que querem fugir, os que se atolam na miséria. É no céu que mora a esperança. Esta é a única indicação que tenho da existência de Deus. Mas quantas coisas vi que são a negação d’Ele!”.

Érico não pode ser considerado ateu. Mas seu conceito de Deus é diferente do Deus dos cristãos. O conceito de Deus de Érico é relativo, modifica-se de pessoa para pessoa. Confessa uma teologia um tanto deísta. Deus lançou o mundo nos espaços e agora se esqueceu dos homens. Nada exige dos homens. Cada qual livremente pode organizar o programa de sua vida. Contudo, para Érico, Deus possui a obrigação de cuidar dos homens, pois a ninguém Deus perguntou se queria existir, ou não. E, já que Ele nos fez existir, em última instância, permanece responsável por nós. Que agora aguente as consequências, e não se ofenda com nossos pecados. A figura de Jesus Cristo, para Érico, possui muitos traços mitológicos.

Em relação aos padres e pastores, Érico Veríssimo manifesta frequentes antipatias, mas nem sempre. Talvez isto, em parte, seja consequência do fato de um padre, um tanto retrógrado e sem motivos fundamentados, tê-lo processado judicialmente.. Diversos personagens padres, na obra de Érico, carregam traços de anormalidade, manifestam manias, são psicologicamente imaturos, se envolvem em intrigas amorosas...

Um tipo clássico de padre anormal, extremamente antipático, cheio de doenças, manias e preconceitos é o padre Lara. O Padre Lara é uma das figuras centrais do capítulo “Um certo Capitão Rodrigo” do livro “O Tempo e o Vento” (cf. O Tempo e o Vento, 1956: PP 164-296).

O Padre Lara é o vigário de “Santa Fé”. Na descrição de Érico, ele “ caminhava devagar. Tinha uma cabeça enorme, desproporcional ao corpo raquítico e desengonçado... Era possível alguém simpatizar com ele, contanto que não olhasse para seu rosto feio e enrugado...” Além disto, o Padre Lara tinha a mania de passar sermão em todo mundo. Era um legítimo desmanchaprazeres. Para o Capitão Rodrigo, o “padre era preto e agourento como urubu. Onde havia padre havia desastre ou morte: enterro, extrema-unção ou casamento”. O Padre Lara gostava de defender os poderosos e pouco se importava com o sofrimento dos escravos. Para ele o mundo nunca fora tão feliz como na Idade Média. O Padre Lara também era sonâmbulo. Um lobisomem atormentado pela solidão noturna de celibatário... Tais caracterizações de padres manifestam o aspecto anticlerical de Érico.

No entanto, nem todos os padres de Érico são como o padre Lara. Já os padres Otero e Rubim são figuras mais simpáticas, no mesmo capítulo que trata do Capitão Rodrigo. Érico também é benevolente com os padres jesuítas, que catequizaram os índios guaranis dos Sete Povos das Missões no noroeste do Rio Grande do Sul..

Para não me alongar demais nesta consideração sobre Deus e a religião em Érico Veríssimo, talvez a síntese de seu pensamento religioso esteja expresso nesta proclamação do Capitão Rodrigo, em uma conversa com o Irmão Marista Toríbio: “Sou religioso à minha maneira, Zeca. Considero-me católico, acredito em Deus, mas não sou homem de missas nem de rezas e muito menos de confissões... eu cá me entendo com o chefão lá em cima!”. Ou ainda, no que um tal Noel diz ao padre Rubim: “Digo que fé religiosa é assunto íntimo. De resto, acho que sem fé em alguém ou em alguma coisa não se pode viver com serenidade e alegria”.

Érico tem toda razão em criticar a hipocrisia de muitos religiosos, e a comercialização do sentido religioso de datas marcantes da religião. Falando do Natal, diz (Arquipélago t.1º. p 180): “No Natal há quase obrigação de dar presentes, poucos se lembram do verdadeiro sentido desta data: o Nascimento de Jesus”,

Em conclusão se pode dizer que Érico Veríssimo era um escritor em busca constante da verdade. Em relação a Deus, não se satisfazia com a compreensão de um Deus que abençoava armas, que amedrontava aos homens. Ele queria uma religião pura, sem visões de mundo retrógradas, sem padres e pastores antipáticos, com pregações alienantes. Buscava uma compreensão da vida: verdadeira, sincera, sem respostas e conceitos prontos, sem farisaísmos.

Inácio Strieder é professor de filosofia – Recife- PE.