A POETA QUE AMAVA O MAR E AS MONTANHAS
 
Quem é essa mulher tão laureada quanto esquecida, tão brilhante quanto estigmatizada pela dor do sofrimento?

Eu mesmo a descobri há quatro anos, em Santiago do Chile. Visitava o museu de arte sacra da Igreja de São Francisco, quando algo me chamou a atenção. Lá estavam relíquias do Prêmio Nobel de Literatura de 1945 que a poeta, em vida, ofertara à Igreja como prova de sua devoção: medalha, beca, faixa e fotos da memorável cerimônia de entrega do prêmio. Saindo de lá, fui direto à livraria mais próxima e adquiri dois dos seus livros. Queria conhecer melhor Gabriela Mistral ou Lucila Godoy, a chilena que precedera Neruda no recebimento do prêmio Nobel de Literatura.

Fui tomado de extrema simpatia por aquela que na infância enfrentou as agruras da pobreza e, na vida adulta, as incompreensões da sociedade conservadora do seu tempo. Nasceu em 1889, na cidade de Vicuña. Viveu a infância e a adolescência no belíssimo Vale del Elqui, cercado de montanhas. Autodidata, exerceu o magistério com paixão, notabilizando-se pelo amor incondicional às crianças para quem escreveu muitos poemas. A perda do noivo, por suicídio, motivou a composição dos Sonetos de la Muerte, obra premiada nos Juegos Florales de Santiago, em 1914. A partir daí não mais parou de compor poesias e as oportunidades foram aparecendo no mundo cultural e diplomático. Em 1922, ajudou a reformar o plano educacional do México. Representou seu país em diversas comissões da ONU e se tornou consulesa do Chile em Nápoles, Madrid, Lisboa, Los Angeles e Rio de Janeiro. No Brasil ela foi atingida por outra tragédia: o suicídio do seu filho adotivo Yin Yin, aos 19 anos, em Petrópolis, no ano de 1943. Mas foi aqui também que ela recebeu a boa notícia de que se tornara a primeira mulher latino-americana a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura.

Betty Rojas Maríquez assim define o estilo literário da poeta:
"Lexica y sintaticamente, la poesia de Gabriela trasunta su contenido: ruda y áspera en el dolor, tierna y eufórica cuando la ternura o la alegria la hacen superar su dolorido sentir. Ora parece olvidar las leyes de la armonia y eufonia, ora logra delicadeza y musicalidad em alto grado. El sentimento sigue gobernando su quehacer poético...” (Antologia Poética - Gabriela Mistral, edição VEA, Chile, 1987)

Sou fascinado pelo poema "Todas íbamos a ser reinas" por refletir a inquietação da menina camponesa que apesar de amar o seu rincão, sonhava com novas perspectivas de vida. A metáfora da transposição da imensa cadeia de montanhas para chegar até o mar, onde reinaria, é elemento fundamental da narrativa. Tanto que me inspirou um soneto em sua homenagem, que tive a honra de ler em sessão especial do Memorial Gabriela Mistral, em Vicunha, em 2011.

Tributo a Gabriela Mistral

Honra lhe seja, poetisa mor latina
Que no Vale del Elqui sonhava com o mar!
Quis ser sua rainha, Lucila menina,
Mas tinha a cordilheira para ultrapassar.

Venceu com muita glória, embora o sofrimento
Bordasse com dureza as flores do laurel
Forjado no amor puro, um nobre sentimento,
Que a vate eternizou no panteão Nobel.

Mistérios e tragédias marcaram-lhe a vida,
Sem, de leve, abalar o seu estro brilhante:
A fé lhe valeu no revés mais sufocante.

Muito amou sua gente e a Vicuña querida,
Onde hauriu verve, a mais fecunda e fascinante.
Não se casou... O mar foi seu eterno amante!


O reconhecimento e a gratidão do seu país só aconteceram verdadeiramente em 1951, com a outorga do Prêmio Nacional de Literatura, seis anos depois da premiação Nobel. Ainda assim, sem a mesma grandeza que os seus compatriotas sempre celebraram Pablo Neruda. Muito provavelmente, em razão do seu jeito livre que desafiou padrões comportamentais da sociedade conservadora chilena. Gabriela manteve por muitos anos, até a sua morte aos 67 anos, um relacionamento homo afetivo com a americana Doris Dana, crítica literária e tradutora. O segredo foi mantido a sete chaves até a publicação das cartas de amor guardadas por Dana e tornadas públicas após a sua morte. O livro intitulado Niña errante foi publicado pela Editora Lumen, em 2009.

A sua vasta obra que se inicia com "Desolación", publicada em Nova York, em 1922, compõe-se de 18 livros, sem contar com "Nina errante", edição póstuma. A arrecadação dos direitos autorais de Gabriela Mistral, por vontade da autora, sempre foi destinada às crianças pobres de Montegrande, povoado onde viveu e exerceu o magistério.
Outro fato de sua biografia que merece destaque, como relatam Manzano & Aguillera (Para ler à noite, perder o sono e ter pesadelos), foi o título de "Benemérita do Exercito Defensor da Soberania Nacional" conferido pelo general Sandino, por seus escritos em favor da luta libertária do povo da Nicarágua.

Esse é o perfil da poeta do amor e da dor que aprendi a respeitar. Nada melhor que a auto definição da sua poesia, para fechar este texto: "Hay que transmitir la intensidad, el alma y decir com valentia el mensage que brota del corazón antes que lo rompa la muerte" (Gabriela Mistral - Biografia, Editorial Portada, Santiago, s.d.).

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Texto publicado originalmente na revista literária REFLEXOS DE UNIVERSOS n° 80, setembro de 2013.