Tensões entre o fazer poético e a sociedade: análise e interpretação de "O poeta", de Manoel de Barros

RESUMO: Neste artigo, analisamos e interpretamos o poema “O poeta”, de Manoel de Barros. No desenvolvimento de nossa análise, privilegiamos o estudo da tensão entre indivíduo e sociedade à luz da perspectiva de Adorno (2003), bem como o trabalho metalinguístico presente no poema, de acordo com as proposições de Chklovski (1976) sobre a desautomatização característica do objeto artístico.

UNITERMOS:Manoel de Barros;O poeta; indivíduo e sociedade; desautomatização; metalinguagem.

1. Introdução

Apresentamos, aqui, análise e interpretação do poema “O poeta”, publicado no livro Ensaios fotográficos (2000), de Manoel de Barros, premiado poeta brasileiro de prolífica produção literária.

A produção poética de Manoel de Barros caracteriza-se por um trabalho de linguagem refinado, em que as paisagens, os animais e o homem pantaneiro são frequentemente representados.Bosi (2006, p. 381-497 apud SILVA, 2008, p. 55) sintetiza bem alguns aspectos da literatura de Barros no que tange ao trabalho com a palavra e nas relações de sua poesia com a sociedade:

Em face desse quadro, impensável sem a aceleração dos processos modernizantes do capitalismo e da indústria cultural, vale ressaltar, pelo contraste, a coerência vigorosa e serena da palavra de Manoel de Barros, nascida em contacto com a paisagem e o homem do Pantanal e trabalhada em uma linguagem que lembra, a espaços, a aventuras mitopoéticas de Guimarães Rosa, sem ombrear, é certo, com a sustentada densidade estética do grande narrador. Conhecida de poucos durante longo tempo, a obra de Manuel de Barros só alcançou o êxito que merece depois que sopraram também no mundo acadêmico os ventos da ecologia e da contracultura.

Feita essa breve introdução sobre a literatura de Manoel de Barros, vamos, pois, à análise de “O poeta”.

2. Análise e interpretação de “O poeta”

Observemos o poema na íntegra:

O poeta

(Manoel de Barros)

Vão dizer que não existo propriamente dito.

Que sou um ente de sílabas.

Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.

Meu pai costumava me alertar:

Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som

das palavras

Ou é ninguém ou zoró.

Eu teria treze anos.

De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que

se perdia nos longes da Bolívia

E veio uma iluminura em mim.

Foi a primeira iluminura.

Daí botei meu primeiro verso:

Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.

Mostrei a obra pra minha mãe.

A mãe falou:

Agora você vai ter que assumir as suas

irresponsabilidades.

Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

Note-se que o poema é composto por 19 versos livres – que não seguem regras fixas quanto ao metro e à regularidade ou presença de rimas (não apresentam rimas). Destaque-se, em seu material linguístico, a presença de metáforas, como no verso “que sou um ente de sílabas”. É importante ressaltarmos a importância do uso dessa figura de linguagem, pois, conforme veremos adiante, ela é intrínseca ao tema do poema (O fazer poético). Considerando que a metáfora consiste na utilização de uma palavra fora de seu emprego usual, com a atribuição de uma conotaçãoa ela, percebemos que tal figura simboliza o fazer poético, pois esse processo faz um deslocamento de palavras do uso ordinário para um emprego não usual, para fins artísticos.No caso do poema, o aspecto metafórico vincula-se diretamente ao olhar do eu-lírico ao observar a paisagem, pois há, nesse movimento, uma singularização do objeto, significado mais imediato é transformado em outro – processo típico da metáfora.

Ao fazermos uma leitura do poema em estudo, depreendemos que ele possui uma espécie de caráter narrativo, que se constitui por meio da voz de um eu-lírico que conta o processo de sua formação como poeta. A narratividade atribui um efeito ao poema: ela destaca o que é contado sob a forma de um relato. Deste modo, o leitor é convidado a conhecer uma história, o que, muitas vezes, não ocorre em outros poemas. Ressalte-se que essa aproximação do poema a uma forma narrativa também se dá por causa de sua forma: os versos sem rima e com metro variável, aliados ao discurso do eu-lírico, criam uma fabulação mais explícita no trecho em que ele fala sobre a sua ida à Cordilheira dos Andes. No entanto, lembremos que este texto se trata de um poema, e atentos a isso, destaque-se que o trabalho do poeta com a linguagem potencializa o traço poético do texto. Tal trabalho caracteriza-se, por exemplo, desde a linguagem empregada que se vale de uma variante mais coloquial, traço característico da estética Modernista, marcada pelo uso de palavras como “zoró” e “pra”, até mesmo pela extensão dos versos livres. É interessante destacar efeitos de sentido sutis que emergem de escolhas deste tipo como, por exemplo, a extensão do verso “Quem acha bonito e pode passar o resto da vida a ouvir o som” sugere ênfase à passagem da vida, enquanto o verso seguinte, “das palavras”, isola e confere importância do material linguístico no fazer poético. Desse modo, destacamos que

o que caracteriza fundamentalmente a poesia moderna é a recusa de uma ilusão que durante séculos dominou a literatura tradicional . . . A moderna consciência poética descobriu que o objeto que o poeta diz não é independente da linguagem que o formula. Assim, a linguagem já não traduz a realidade, pois ela própria cria uma nova realidade (ROSA, 1989, p. 32 apud ALVES, 2002, p. 4).

Notamos que o assunto do poema é o processo de constituição do poeta. Por conseguinte, o tema é o fazer poético e o conflito dramático (intriga) que nele se instaura é O fazer poético X Os fazeres/As expectativas ordinárias, pois há tensão entre os anseios e aptidões poéticas do eu-lírico e o círculo social no qual ele está inserido, representado pelos seus pais, que não consideram a produção poética como algo positivo, talvez pelo fato de ela não corresponder a uma atividade produtiva ordinária. Essa tensão pode ser exemplificada por meio dos três primeiros versos. Vejamos:

Vão dizer que não existo propriamente dito.

Que sou um ente de sílabas.

Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.

Considerando-se que a atividade profissional é uma das marcas que conferem individualidade aos sujeitos inseridos na sociedade capitalista, percebe-se que, por trabalhar com a linguagem no âmbito artístico, o eu-lírico não possui uma atividade de prestígio na ordem produtiva do trabalho. Observe-se, agora, que os seguintes versos evidenciam a reprovação do pai com relação ao fazer poético enquanto uma ocupação:

Meu pai costumava me alertar:

Quem acha bonito e pode passar o resto da vida a ouvir o som

das palavras

Ou é ninguém ou zoró.

Note-se, portanto, que o poema aborda uma questão de ordem social. Adorno (2003) estabelece uma crítica à tradição europeia ocidental que, na divisão dos gêneros literários, tende a classificar a poesia lírica como uma produção artística avessa à vida social. De acordo com essa tradição, uma das especificidades da poesia seria a individualidade do eu-lírico, cuja voz seria desprovida de preocupações com o todo do tecido social, ocasionando, desse modo, uma negação do elemento social pela lírica. Contrária a essa concepção, a tese de Adorno (2003) defende que a poesia portaria uma tensão permanente entre indivíduo e sociedade e, por extensão, tensões do indivíduo com a cultura e com a política. A partir dessa perspectiva, podemos abstrair conceitos sociais que surgem no próprio poema. Por isso, a tensão à qual nos referimos anteriormente diz respeito a conflito entre indivíduo (o eu-lírico, poeta) e sociedade. Ao relatar uma experiência própria por meio de sua voz individual, o eu-lírico resiste a valores da coletividade por meio da linguagem, que, segundo Adorno (2003), é um elemento social, o que dispensa engajamento social explícito e permite que os leitores, que também fazem parte do bloco cultural do eu-lírico, se identifiquem ou se projetem no poema. Assim sendo, a voz individual do eu-lírico atinge o que Adorno (2003) denomina como “corrente subterrânea coletiva”, ou seja, a experiência coletiva, evidenciando que o discurso do eu-lírico acaba cumprindo uma função social, cultural e política ao discutir o preconceito com a atividade de produção artística. O poeta está à margem e contra as ideologias dominantes. Logo, ele é contra a ideia de progresso técnico contínuo e de racionalização da vida. Portanto, podemos dizer que a tensão eu-lírico X sociedade que se instaura nesse poema no âmbito da ordem produtiva se insere nesta situação do artista: ao assumir as suas “irresponsabilidades” no final do poema, ele se volta contra os valores dominantes, para que possa afirmar a sua condição de poeta.

Após relatar a reprovação de seu pai sobre o fazer poético no início do poema, o eu-lírico relata, a partir do 8º verso, como se deu a produção de seu primeiro verso. É aí que tem início o trabalho metalinguístico no poema, pois o eu-lírico relata a sua primeira produção poética. Observemos:

Eu teria treze anos.

De tarde fui olhar a cordilheira dos Andes que

se perdia nos longes da Bolívia

E veio uma iluminura em mim.

Foi a primeira iluminura.

Note-se, nesse trecho, alguns aspectos da atividade poética. Paraanalisá-los, consideremos Chklovski (1976), cuja proposta é a de que o caráter estético “é criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo” (CHKLOVSKI, 1976, p. 54). Observe-se que o espaço (a Cordilheira dos Andes) e o objetivo (o olhar detido no acidente geográfico que se transforma em objeto estético) do eu-lírico fogem do automatismo, pois ambos se afastam de atividades ordinárias cuja utilitariedade e velocidade das atividades colaboram para conferir um traço poético a este relato.

Ainda sobre esse trecho do poema, considere-se, também, outra proposição de Chklovski:

Pessoalmente, penso que quase sempre que há imagem, há singularização.

[...] O objetivo da imagem não é tornar mais próxima de nossa compreensão a significação que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não o seu reconhecimento (CHKLOVSKI, 1976, p. 50 – grifos nossos).

A partir dessa afirmação do autor russo, note-se que o eu-lírico cria uma percepção particular do objeto. Ele não capta a paisagem como simples elemento geográfico. Em vez disso, ele capta-a como uma iluminura (uma pequena pintura), ou seja, uma imagem, que é singularizada e transformada, portanto, como uma visão. Tal informação é relevante, pois, vinculando-a ao título do livro (Ensaios fotográficos) no qual este poema foi publicado, percebe-se um vínculo entre poesia e fotografia, segundo Andrade Jr. (2005).Além disso, note-se, também, que o verso “e veio uma iluminura em mim” evidencia que o eu-lírico viveu um processo epifânico, pois a imagem revelou-se subitamente a ele.

Ressalte-se que o primeiro verso do então poeta é singular: “Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem”. Notamos, nele, a personificação da paisagem, o que evidencia uma capacidade de manejo com a linguagem. Além disso, pode-se dizer que há um processo de singularização nesse verso, pois há suspensão dos signos (o morro e a paisagem) representados, por meio de uma observação desautomatizada, conforme já discutimos anteriormente.

Voltando à questão da maneira como a atividade do poeta é encaradapelo meio social, percebe-se que a mãe do eu-lírico, de certo modo, aprova o verso do filho, mas ainda confere um certo caráter negativo ao fazer poético, por meio do uso da palavra “irresponsabilidades”. No entanto, conformepodemos observar no verso final, o eu-lírico resiste às opiniões pejorativas acerca da atividade poética e afirma a sua condição de poeta: “Eu assumi: entrei no mundo das imagens”. Se vincularmos tal mundo das imagens com as ideias de Platão em A República, perceberemos que este é um mundo imperfeito, onde se manifestam simulacros, os quais correspondem à arte e, no caso, à poesia. Tal mundo se distancia do Mundo das Ideias, das verdades (e talvez expectativas), mas valoriza a expressão de imagens, o que parece ser importante para o eu-lírico.

Por fim, destaque-se que “O poeta” é um poema singular de Manoel de Barros. Além de expor uma tensão existente na sociedade, ele consegue apresentar o fazer poético por meio da metalinguagem, valendo-se de um trabalho de linguagem muito bem construído – qualidade muito presente na obra do poeta pantaneiro.

TENSIONS BETWEEN POETRY AND SOCIETY: ANALYSIS AND INTERPRETATION OF “O POETA”, BY MANOEL DE BARROS

ABSTRACT:This article analyses Manoel de Barros’ poem “O poeta”, using Adorno’s and Chklovski’s theories. Whereas Adorno (2003) focuses on tension between individual and society, Chklovski (1976) speaks of estrangement of artistic objects.

KEYWORDS: Manoel de Barros; O poeta; individual and society; deautomatization; metalanguage.

Referências Bibliográficas:

ADORNO, T. W. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ______. Notas de literatura. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 65-89.

ALVES, I. F. A linguagem da poesia: metáfora e conhecimento. Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários, Londrina, v. 2, 2002, p. 3-16.

ANDRADE JR., A F. Com olhos de ver: poesia e fotografia em Manoel de Barros. Cadernos de Letras da UFF, v. 30-31, p. 35-48, 2005.

BARROS, M. O poeta. In: ______. Ensaios fotográficos. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 47.

CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: EIKHENBAUM, B. Et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1976, p. 39-56.

SILVA, F. M. História e literatura: interpretações sobre a poética de Manoel de Barros. Coletâneas do nosso tempo, Rondonópolis, v. 7, n. 7, 2008, p. 51-66.

__________________________

VALENTIN, Leandro Henrique Aparecido. Tensões entre o fazer poético e a sociedade: análise e interpretação de “O poeta”, de Manoel de Barros. Mosaico. São José do Rio Preto, v. 12, n. 1, p. 105-114, 2013.

* Texto originalmente publicado na Revista Mosaico, publicação acadêmica do curso de Letras da UNESP, câmpus de São José do Rio Preto. Disponível em PDF com a formatação original da publicação em: http://www.academia.edu/4886640/Tensoes_entre_o_fazer_poetico_e_a_sociedade_analise_e_interpretacao_de_O_poeta_de_Manoel_de_Barros_Tensions_between_individual_and_society_analysis_and_interpretation_of_O_poeta_by_Manoel_de_Barros.