PÁGINA VAZIA: ONDAS DA MODERNIDADE NA LÍRICA EUCLIDIANA
FERNANDO ROCHA DA COSTA
PÁGINA VAZIA:ONDAS DA MODERNIDADE NA LÍRICA EUCLIDIANA
Euclides da Cunha – BA
2009
INTENÇÕES
A intenção deste artigo é discutir como o autor, dos dois poemas aqui contemplados, se insere no contexto da modernidade, especificamente, no tocante ao fazer poético, trazendo à tona elementos que corroboram para compreender a sua inserção no contexto literário que ficou conhecido com este título e que tem como um de seus principais fundamentos o fazer a poesia apenas pela poesia.
PRENÚNCIOS
Num sábado, vigésimo dia do ano de 1866, enquanto o cheiro do café começa a invadir a campina, e o brilho do sol chacoteia entre as ondas do grande mar de serras que envolvem a fazenda, um choro de criança rasga aquela manhã ainda ressentida das últimas chuvas torrenciais que inundaram o vale.
Ali – onde antes reinavam imponentes, as centenárias árvores da mata atlântica e hoje imperam absolutos os pastos ralos e as plantações do ouro negro das serras fluminenses – os majestosos palácios dos barões do café se rendem ao choro incansável daquele rebento que, sedento em anunciar a sua chegada ao mundo, delineia traços de um futuro crisóstomo, que teimará em levar seu brado vingador, aos mais longínquos recantos do planeta.
A campinas, da fazenda Saudade, na minúscula, mas não menos importante cidade de Cantagalo, via surgir aquele que se tornaria um dos filhos mais ilustres desta terra, Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, o engenheiro, jornalista, educador, ensaísta, historiador, sociólogo e poeta, que fizera, naquela manhã, brotar dos olhos negros de sua progenitora, lágrimas confusas, misto de dor e alegria.
Dona Eudóxia Moreira da Cunha segurava entre seus braços – ainda enfraquecidos pelo grande esforço, que titãs-senhoras fazem ao dar a luz frágeis invólucros espirituais – uma joia rara, tão preciosa que ofuscara o brilho do próprio Astro-rei que, silencioso, se despede acovardado do dia que acabara de trazer, encoberto por nuvens que prenunciavam novo dilúvio, cujas gotas, em frenético descambar, pareciam minúsculos anjos celestiais a entoar um cântico de lamento.
Chorava a mãe, chorava a criança, chorava os céus, como que a adivinhar a tragédia que abateria sobre aquele que – vingador de uma multidão de desvalidos, que haviam violentamente sucumbido diante da porta de seus próprios lares, num fratricida embate – terminará seus dias buscando vingar o próprio lar, outrora símbolo de harmonia e amor, agora invadido, maculado, vítima das paixões desenfreadas que acometem homens e mulheres e que destroem lares e assassinam sonhos em nome de um prazer carnal, cujos envolvidos teimam em chamar de amor. Amor este tão frívolo que cairá diante de outros reclames do destino.
Naquela manhã o Brasil recebia em seu berço esplêndido, mas um varão, “um dos primeiros e mais ardorosos cultores do humanismo brasileiro”. O mundo, por sua vez, via nascer uma das almas mais entusiástica do século, o grácil menino, aparentemente, igual aos muitos rebentos que pululavam aqueles prados, galgaria, mais tarde, o planeta através da eloquência de suas palavras.
ALVORECER
Seu progenitor, Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, encontra-se na varanda a delinear os traços de um poema, cujos versos pretendiam imortalizar aquela manhã, incentivado que se encontrava pelas notícias do retorno de Castro Alves as terras baianas, após breve exílio. Em um lacônico momento relembra as noites da sua saudosa Bahia, quando envolvido com a geração romântica que despontava, improvisava versos de inspiração humanitária e social. Mal sabia ele que em pouco mais de três décadas, após aquela linda manhã, seu filho, que acabara de nascer, ocuparia, na Academia Brasileira de Letras – fundada por Machado de Assis, seu primeiro e perpétuo presidente – a cátedra cujo patrono é, justamente, Castro Alves e ainda assumirá a presidência exaurida pela morte do grande mentor da academia.
Antes, porém, necessário seria que o regozijo escapasse à família Da Cunha e em seu lugar campeasse a dor e a tristeza. A morte, esta alcoviteira dos deuses, visita o lar que a pouco contemplara o desabrochar de uma vida. Dona Eudóxia, ainda aflorando em idade e beleza, é acometida de tuberculose, vil doença que arrebatara aos céus grandes personalidades daquele século, a exemplo do próprio Castro Alves – cujos versos cavalgavam por aqueles prados recitados pelo patriarca da família, Manuel Rodrigues – e que persistirá assombrando a família, a ponto de acometer o próprio escritor de Os Sertões.
Órfão de genitora aos três anos de idade, após breve passagem por Teresópolis, Euclides da Cunha inicia seus estudos em São Fidélis, RJ. Depois de freqüentar vários estabelecimentos de ensino, completou o curso de Humanidades no Colégio Aquino, tendo sido ali discípulo de Benjamin Constant, personalidade marcante da história de nosso país, republicano histórico que influenciou grandes alterações políticas e sociais no Brasil do final do século XIX, e que, não podendo ser diferente, teve importante influência em sua formação. Com outros consortes, constituiu o jornal O Democrata, onde proclamou as composições líricas das Ondas, o curioso caderno de 84 poesias, onde já se anunciam as aflições e os arrebatamentos do seu gênio nascente.
É deste caderno de poesias que ouso retirar um poema, o primeiro, que empresta o nome a coletânea: Ondas, escrito em 1883, quando ainda juvenil ostentava a busca pela glória, a despeito de andar por caminhos ainda incerto. Será este poema um dos dois sobre o qual me debruço, humildemente, a procura de traços da poética moderna, riscos ainda embrionários daquele que será considerado um dos maiores autores pré-modernista do nosso rincão.
CREPÚSCULO
Permito-me também, por um breve espaço de tempo, deixar esta composição, escrita ainda no alvorecer de sua idade, para me adentrar no espaço histórico que proporcionou o cultivo do segundo poema, por cujas linhas hei de navegar em busca dos traços da lírica moderna.
O ano é de 1897, o nosso poeta por um lapso de tempo deixa a escrivaninha dos trovadores para se assentar à dos repórteres. No entanto, não satisfeito com o favorável deleite dos que sentados, diante de um cômodo gabinete, julgam a história, ergue-se gigante, triunfante, a caminho do temeroso e instigante palco onde os fatos se sucedem: soldado, repórter, poeta, sociólogo e historiador se confundem.
O anfiteatro, Os Sertões de Canudos. Em sena a “Nossa Vendéia”, no próprio dizer inspirador do nosso vate, que até então via em Canudos uma agitação idêntica a dos camponeses franceses católicos monarquistas, um século antes, em reação à revolução de 1789. Os atores: pujantes sertanejos e a força, não menos vigorosa, das tropas legalistas. Aos olhos de nosso incauto andarilho, desnudam-se inverdades: embate fratricida de gladiadores hercúleos, sem vencedores e vencidos. Ressaltam mil verdades que a mente obstem negar, mas, que ao coração revelam-se e à alma, absorta, silenciam. FRATRICÍDIO, eis a única palavra que ecoa uníssona, na mente, no cerne e na alma daquele que desaba abatido, diante do inconcebível.
Quase finda a guerra, o nosso arauto, coagido pelas forças a se exaurir, deixa o campo de batalha, onde defendem o vilarejo, agora em completo escombros, os últimos sobreviventes do Belo Monte, se dirige à Salvador. Seus pés beijam o solo familiar, onde estivera por um bom espaço de tempo, ansioso por seguir para o teatro da guerra. Antigo sítio onde correra descalço, ainda garoto, o seu pai. Lembranças de melancólicos versos, por ele recitados, tomam-lhe os sentidos. Está abatido e doente.
No dia seguinte a sua chegada à terra do Senhor do Bonfim é surpreendentemente abordado por uma linda jovem, Francisca Praguer Fróes, que lhe estende, suplicante, um álbum. Escreve, num esforço digno de titãs, acometido ainda pelas lembranças da “região assustadora” de onde chegara e “revendo inda na mente/ Muitas cenas do drama comovente/ Da Guerra desapiedada e aterradora” delineia, em versos, o estado de seu espírito. É uma tarde do dia 14 de outubro de 1897. O título é revelador: Página Vazia, este é o segundo poema sobre o qual arrisco traçar algumas linhas.
REVELAÇÕES
Sabe-se, que muitos dos quais se julgam defensores do bom poetar, irão fazer suas críticas aos dois poemas que emergem destas páginas, e até mesmo expor que ambos apenas não sucumbiram ao esquecimento – imposição atroz que o tempo resigna aos textos medíocres – por se tratarem de arranhões poéticos de um dos maiores escritores de nosso tempo. Prosaico se tornou ouvir dizer – pronúncias vindas de lábios de sádicos senhores de ilusório poder – que Euclides da Cunha, apesar de bom escritor, era um péssimo poeta. Nada incomum, porém, numa cultura, salvo nobres exceções, em que a grande maioria percebe as coisas apenas pelos extremos (ou todo acre ou todo suave). Onde apenas os últimos e os primeiros são apreendidos.
Para estes, faz-se necessária aqui o uso das palavras de Rainer Maria Rilke, um dos mais importantes poetas de língua alemã do século XX, “Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos infelizes.” (RILKE,2007, p. 25). De fato, nem tudo, diga-se a estes inventivos doutores, está ao alcance de vossas possibilidades. Nem tudo está facilmente no campo do tocável e muito menos no dizível. As palavras estas quimeras, nem sempre alcançam o significado das coisas, é preciso ir muito além das possibilidades humanas para se atingir o real, isto é, se considerarmos que o real é perceptível.
Se a maioria dos fatos - escusa-me dizer todos, para não direcionar a temática abordada neste trabalho para o campo filosófico, apesar de ser-me caro e de importante discussão – não podem ser expressa pelo mais sensível dos escribas, o que dizer, então, da obra de arte em si, da poesia, cujo existir ultrapassa ao do mais longínquo dos carnais viventes. Não houve captar-lhe a essência, não haverá jamais.
No entanto, há de se reconhecer que existem sim, traços passíveis de comparação, tendências que podem ser compreendidas como mera continuação de outro expressar. Resta-nos reconhecer, além disso, que não somos anjos celestiais que apenas SÃO na essência plena do verbo. Somos frutos dos fatos e ações sociais que nos circundam, que nos moldam e que – na pessoa sensível, mas do que n’outras – irrompem em explosões de sentimentos e sensações. É seguindo este compreender, que me aventuro na árdua – porém não menos digna – obrigação de tecer, sobre estes versos de tão augustas mãos aflorados, algumas considerações.
IMERSÕES
Para se compreender a lírica euclidiana que emerge de tal fusão e que é o rebentar de um processo embrionário advindo dos tempos da adolescência, faz-se necessário adentrar no pensamento que emerge da modernidade na qual ele esta inserido, principalmente no que tange a organização social e artística no Brasil do século XIX.
Além disto, é necessária, ainda, a dissociação do sentido e das inúmeras possibilidades e conceitos que a palavra modernidade, principalmente em nossa pátria mãe, faz surgir diante do leitor. Já que se torna lugar comum, se tratando de literatura, associar, de forma equívoca, o termo modernidade ao significado da expressão literatura modernista brasileira, título dado ao movimento desencadeado a partir da Semana de Arte Moderna de 1922.
Apesar de, a partir daí, emergir grandes ícones da literatura nacional, responsáveis que são pela renovação da literatura pátria no que se refere, principalmente, as consideração sobre estética e concepção poética, renovações estas que resistem até os dias atuais, mas que, na verdade, tem seus rudimentos em meados do século XIX numa produção literária que ficou conhecida como pré-modernista, que tem em Euclides da Cunha um de seus ícones maiores e na modernidade os seus fundamentos.
Euclides vivencia a segunda metade do século XIX e como tal está inserido no contexto cultural vigente, cujo período ficou comumente versado como o do advento do estilo lírico dito modernista que predomina até os dias atuais. Desta sorte, a poesia euclidiana tem como força motriz as inquietações e transformações sociais e filosóficas vivenciadas neste momento histórico e, como tal, converge sua genialidade poética no sentido de subverter os valores a que até então estava absorvida a sociedade brasileira e que acabam impugnadas pela pena do nosso artífice.
Apesar de branda idade ele procura estabelecer uma nova linguagem apoiada no conceito estético que eclodia nos principais pólos urbanos ocidentais, os quais promoviam naquele instante uma ruptura com a tradição poética advinda do mundo clássico, o qual se resumia ao gênero poético popular, cuja temática era tributária das emoções que o sujeito se entregava, anverso ao amor, à natureza, à vida e à morte. Eram prenúncios de uma nova lírica que reinará absoluta no século vindouro, a qual para Hugo Friedrich “fala de maneira enigmática e obscura.” (FRIEDRICH, 1991, p. 15)
O EMERGIR DE UM POETA
De certo do primeiro poema, constituído nos idos da tenra juventude, que se achou bem intitular Ondas não saltam vivamente aos olhos – principalmente a um leitor que desconhece a biografia do artesão – aspectos particulares ao autor, apenas oferece rebuscados sinais de sua individualidade.
Todavia, ao pesquisador atento a detalhes da vida do artífice de tão belos versos, há de perceber traços daquele que a pouco irá desencadear um dos episódios políticos que ganharão as páginas dos periódicos fluminenses. Em ato de insubordinação, o digno patenteador de tais versos, lança, aos pés do senhor Conselheiro e ministro da Guerra, Tomás Coelho, a sua espada de cadete, com tanto sacrifício e louvor conquistada. Almejado naqueles idos, é no solo arremessado o símbolo maior, que conquistara com destemor e cujo mesmo destemor, digno d’aqueles que julgam ser, a república e o povo brasileiro, um bem maior, o impele a jogar ao chão seus próprios sonhos e, por que não dizer, sua própria vida. Expressão esta bem delineada nestes versos:
Correi, rolai, correi _ ondas sonoras
Que à luz primeira, dum futuro incerto,
Erguestes-vos assim _ trêmulas, canoras,
Sobre o meu peito, um pélago deserto!
Ao ler tais versos quem, sem conhecer a data de seu esculpir, não lhe uniria aos fatos que se sucederam naquele dia 4 de novembro de 1888, um domingo. Exatamente, cinco anos após a publicação das referidas letras, uma espada é atirada ao chão e o seu, até então, senhor a observa: correndo, rolando, distribuindo no salão ondas sonoras advindas de choque abrupto entre aço e piso. Ofuscado pelo brilho intenso da luz que emana da peça metálica da qual foi feito tão digno sabre. Fugidias lembranças da vez primeira que viu a mesma luz encandear-lhe a vista, depois de erguida por mãos trêmulas, sentindo, agora, sobre o peito um oceano deserto dum futuro incerto. Teus olhos buscam por vez derradeira, a insígnia agora inerte e novamente os seus versos afloram dizendo:
Ide pois _ não importa que ilusória
Seja a esp'rança que em vós vejo fulgir...
_ Escalai o penhasco áspero da Glória...
Rolai, rolai _ às plagas do Porvir!
Talvez o grande equívoco de Euclides da Cunha, ao delinear estes versos, tenha sido a audácia, digna dos grandes mestres, de utilizar-se de configurações habituais e excessivamente prosaicas, o que permite aos incansáveis defensores do cânone, o atenuar constante da magnitude dos versos agora lidos, pois segundo Rilke a um jovem poeta, salvo raríssimas exceções, se torna muito difícil se destacar entre os demais quando caminha por traços poéticos comuns aos grandes nomes da lírica “pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes”. (RILKE, 2007, p. 27)
É certo que o ainda jovem escritor, arrebatado pela fé no movimento político em que estava inserido, consegue como demonstra no poema acima analisado, penetrar em seu próprio âmago e externar aflições e anseios que demonstram traços de sua individualidade, ao ponto de, como um arguto, poder prever atos arrebatadores que o acometerá no futuro, demonstrando, assim, o conseguir expressar a essência de suas “verdades”.
Eis o primeiro poema na íntegra, analisemo-lo:
Ondas (1883)
Correi, rolai, correi _ ondas sonoras
Que à luz primeira, dum futuro incerto,
Erguestes-vos assim _ trêmulas, canoras,
Sobre o meu peito, um pélago deserto!
Correi... Rolai _ que, audaz, por entre a treva
Do desânimo atroz _ enorme e densa _
Minh'alma um raio arroja e altiva eleva
Uma senda de luz que diz-se _ Crença!
Ide pois _ não importa que ilusória
Seja a esp'rança que em vós vejo fulgir...
_ Escalai o penhasco áspero da Glória...
Rolai, rolai _ às plagas do Porvir!
ONDAS DA MODERNIDADE
O poema Ondas é formado por uma lírica que se emprega da obscuridade com o escopo de buscar, ao mesmo tempo, extasiar o leitor e deixá-lo desconcertado diante do texto. Este artifício que o autor aproveita ao procurar vincular a incompreensibilidade do texto escrito ao deslumbramento será mais tarde convencionado chamar de dissonância, ou seja, através da obscuridade o artífice provoca uma desordem que induz à inquietude, consistindo este num dos principais objetivos almejados pela arte intitulada moderna. Vejamos mais uma das estrofes do poema:
Correi... Rolai _ que, audaz, por entre a treva
Do desânimo atroz _ enorme e densa _
Minh'alma um raio arroja e altiva eleva
Uma senda de luz que diz-se _ Crença!
No trecho do poema supracitado Euclides da Cunha procura navegar além da obscuridade, promovendo uma nova tensão dissonante, que surge na coexistência de formas distintas, que, além desta obscuridade, provoca outro conflito discordante em que formas distintas coexistem, seguindo uma tendência comum aos autores modernistas estudados por Friedrich segundo o qual estes autores procuram fixar uma arte cujos
“traços de origem arcaica, mística e oculta, contrastam com uma aguda intelectualidade, a simplicidade da exposição com a complexidade daquilo que é expresso, o arredondamento linguístico com a inextricabilidade do conteúdo, a precisão com a absurdidade, a tenuidade do motivo com o mais impetuoso movimento estilístico”. (FRIEDRICH, 1991, p. 16)
Estas linhas percebidas como “tensões formais”, é descoberta ainda no conteúdo da poesia, o que sugere ter o autor, aparentemente, pretendido que sua criação poética não fosse simplesmente um reflexo da realidade ambiente e, mesmo quando parece volver para esta realidade, procura a completar com um sentido distinto do da poesia ulteriores ao seu tempo. Esta realidade na poesia, segundo Hugo Friedrich, alforria-se da ordem imposta pelo espaço, tempo e finalidade abrandando as diferenças entre a contiguidade e a distância, entre o belo e o feio, entre a agonia e o júbilo, entre terra e céu.
A dissonância incide no poema Ondas, também, quando o autor evita transmitir, nos seus versos, reflexos do seu estado interior, procurando fazer parte dele apenas como um sujeito reservado, dotado de uma agudeza funcional e transformadora, como um “operador da linguagem”, o qual por meio de expressões intrigantes, de convenções incomuns faz insurgir sentidos de seus versos que até então, segundo sua determinante criadora, não deviam se pautar pelo o estético. Desta forma o poema causa um estranhamento, visto que se baseia em uma construção gramatical desconstrutora restringida à ampla utilização de expressões nominais e aproveitando-se, através de um processo diferenciado e reconstruído, de dois dos mais remotos instrumentos da poesia que são a metáfora e a comparação. Todos estes artifícios renovadores acendem uma “impressão de anormalidade”. Assim o autor utiliza-se destes novos mecanismos, onde:
As categorias negativas constituem outra marca desta literatura, que não passa mais a existir para ser ressonância da sociedade ou um quadro ideal do mundo. Para justificar, além de elencar as características, desorientação, dissolução do que é corrente, ordem sacrificada, incoerência, fragmentação, reversibilidade, estilo de alinhavo, poesia despoetizada, lampejos destrutivos, imagens cortantes, repentinidade brutal, deslocamento, modo de ver astigmático, estranhamento...” (FRIEDRICI-I, 1991, p. 22)
Ainda por caminhos do estranhamento, aventuremo-nos a uma nova página:
Página Vazia (1897)
Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo inda na mente
Muitas cenas do drama comovente
Da Guerra desapiedada e aterradora,
Certo não pode ter uma sonora
Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,
Que possa figurar dignamente
Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.
E quando, com fidalga gentileza,
Cedestes-me esta página, a nobreza
Da vossa alma iludiu-vos, não previstes
Que quem mais tarde nesta folha lesse
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?!
O PREENCHER DE UMA PÁGINA
Ao navegar por versos como estes, que expressam a essência de uma grande alma, o importante é buscar compreende-la mais pela sensibilidade interior do que por “trabalhos sobre estética e crítica, pois geralmente são opiniões partidárias petrificadas e tornadas sem sentido em sua rigidez morta” (RILKE, 2007, p. 36). O sentimento que brota do nosso envolvimento com o texto é que deve ser a força motriz que harmonize o nosso entendimento, sendo este o verdadeiro propulsor racional. Neste sentido é que adentramos neste segundo poema Página Vazia
Ao investigar a presença da lírica moderna na poética euclidiana, nos deparamos com este outro poema aqui considerado, Página Vazia, onde a dissonância é robustecida com uma das características marcante da poesia moderna, a anormalidade. Euclides da Cunha concebe a articulação entre o atilamento intelectual e a inquietação afetiva que o torna um dos poucos poetas brasileiros do século XIX, a esboçar uma configuração radical do rompimento da modernidade com a normalidade.
No entanto, há de se dizer que esta nova forma do fazer poético não é uma exclusividade euclidiana e muito menos do século XIX, Hugo Friedrich (1991, p. 27). descobre estas imagens de fantasia e de poesia materializada já no Romantismo alemão, francês e inglês e reúne os basilares indícios da estética aludida para a concretização um pouco mais tarde do “poetar moderno.” Ao abordar do Romantismo, lembra que nem mesmo aqueles que se recusaram aos ideais românticos ficaram afastados das suas aquisições e experiências. O desejo pelo ambíguo, pelo nebuloso, pela preferência da angústia, que eram abandonados ou avaliados como negativo para a cultura clássica e pós-clássica, passam a ser disposições já a partir dos pré-românticos do século XVIII, desaparecendo da literatura a normalidade tão positivamente apreciada pelos teólogos e sábios.
Em Página Vazia, o autor ambiciona trazer ao mesmo tempo uma surpresa e uma estranheza, deste modo aproveita-se de elementos anormais ao considerar que a poesia não deve buscar, primeiramente, ser compreendida, visto que não encerra um significado. A percepção de tais versos abriga sua complexa ou impossível compreensibilidade como uma primitiva distinção de sua aspiração estilística. A percepção se introduz no artifício que este quer avivar no leitor: o ardil das tentativas de interpretação continuamente poetizante, inconclusas, jogando fora ao aberto.
Euclides da Cunha, retorna à Salvador no dia 13 de outubro de 1897, vinha de Canudos, onde estivera como correspondente de guerra do jornal “O Estado de São Paulo”, neste periódico, meses antes, havia escrito vários artigos sobre a luta nos sertões baiano. No dia seguinte ainda padecendo, como testemunha ocular, o choque violento diante da visão do morticínio, o jovem entusiasta republicano e futuro autor de Os Sertões encontrava-se, doente e alquebrado, trazia em seu interior – dilacerado pelos conflitos entre os seus ideais e a nova realidade com a qual se deparara – a ideia de escrever um livro vingador.
Enquanto caminhava a passos cambaleantes, imerso em seus pensamentos, é abordado por uma jovem que lhe estende, entusiasmada com a presença do, até então, jornalista fluminense, um álbum, onde implora o escrever de algumas linhas, embora quisesse dizer um não, cai abrandado diante de um olhar tão incisivo. As sensações até então contidas, solitárias, em seu âmago, extravasam, mil palavras afloram, mas o grande escritor jaz desolado, o que dizer diante de tanto. Como expressar em poucas palavras a enxurrada de emoções que invadiam seus pensamentos naquele instante.
Esta confusão de sentimentos e idéias é justificada pela as impressões que o autor coloca nos versos do poema, de fato a região da qual já conhecia por meio das letras, e que já parecia entender ao descrevê-la em seu artigo A nossa Vendéia, onde expõe com riqueza de detalhes que “o solo daquelas paragens, arenoso e estéril, revestido, sobretudo nas épocas de seca, de vegetação escassa e deprimida, é, [...] o mais sério inimigo das forças republicanas”. (CUNHA, 2009, p.121). Agora esta mesma região consegue apresentar-se diante de seus olhos muito mais assustadora do que pudera pensar, até a guerra, cujo espírito sensível do autor já apercebia cruel e desumana, assusta-lhe, por mais aterradora que fosse as suas impressões que tal barbárie houvesse lhe causado, quando ainda diante de um gabinete. Não adiemos mais. Vejamos-los:
Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo inda na mente
Muitas cenas do drama comovente
Da Guerra despiedada e aterradora,
As impressões, nos versos acima expostas, irão provocar uma ruptura do autor com o romantismo até então presente em muitos de seus poemas, não existe, segundo o próprio autor, como produzir um texto poético nos moldes românticos diante de uma realidade tão cruel quanto assustadora. Pois “Quem volta da região assustadora” ...
Certo não pode ter uma sonora
Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,
Que possa figurar dignamente
Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.
Faz-se, ainda importante o saber que Euclides fora designado pelo jornal, ao qual estava vinculado, para seguir como observador de guerra do “movimento insurrecto” no arraial de Canudos, em pleno sertão baiano. Encontrava-se ele no palco de operações nos idos de setembro e nos primeiros dias de outubro de 1897 e ali testemunhou aos derradeiros dias da luta. Diante daquela paisagem desolada e aterradora, entrega-se a seus pensamentos, absorto com tão degradante situação, rende-se aos sentimentos que afloram do fundo de sua alma, não são mais as letras embutidas nos diversos livros lidos e relidos até a exaustão que dão razão as suas idéias, aos poucos o alargamento natural de sua vida interior o rege a uma nova apreensão dos fatos.
Penetra no ambiente agressivo que o rodeia, extrai dele imagens de sonhos a muito esquecidos e lembranças adormecidas, aflora, então, sensações abafadas de um longínquo passado. Sua personalidade robustece. Seu isolamento interior dilata-se e se transforma de tal sorte que o zunido das balas e o estrondo dos canhões não conseguem retirá-lo de tão profundo mar de sensações.
Irrompe, do fundo de seu ser, a sua vida interior, a muito reprimida e acelerada pelos acontecimentos sociais e politicos que o envolveram em tenra idade. O silêncio de paisagem tão desoladora permite, ainda, o seu amadurecimento, alcançado únicamente ao penetrar-se em si mesmo. É desse adentrar em si mesmo que afloram os versos agora lidos, não há mais a preocupação dos idos da juventude, com as críticas ou até com o saber se seus traços são bons ou ruins, não há a preocupação do belo e da estética, ali estão “um pedaço e uma voz de sua vida” (RILKE, 2007, p.28). Apenas alerta “a gentil senhora” que no futuro aquele que desfolhar tal álbum haverá de encontrar letras despidas dos valores estéticos até então cobrados.
Que quem mais tarde nesta folha lesse
Perguntaria: “Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes”?!
Funde-se, assim, em um único ser: o homem, o poeta e o escritor que irá marcar uma geração com uma literatura muito aquém de seus pares, prelúdio do movimento literário que em pouco mais de duas décadas receberá a acunha de modernismo.
Desta sorte, pode-se concluir que Euclides da Cunha é um poeta da geração que se acostumou chamar, no campo da análise literária brasileira, de pré-modernista, como tal utiliza-se desse expediente linguístico aferindo ao poema o caráter de modernidade e universalidade, tão típico à sua obra.
OUSADIA
Achar-me capaz de enveredar por páginas de tão grande alma e ao mesmo tempo me aquilatar pronto para tecer alguma espécie de análise, tornou-me de uma ousadia ímpar, em meu caminhar sempre ousado pelas trilhas das letras.
Ouso, ainda, suplicar-vos, caro leitor, após o primeiro emergir destas linhas, substituir, por um breve instante, o nome do Condoreiro do Amor, alocando o de Euclides da Cunha e contemplando comigo, que sou despojado escriba, como grandes almas sempre enveredam por fraternos caminhos.
Além disto, o aparecimento de Castro Alves, certo oportuno, como o de todo grande homem, é, em grande parte, inexplicável. Ele não teve precursores na sua maneira predominante. Os grandes pensamentos, sociais ou políticos, que agitou não lhe advieram, como em geral sucede, de longas ou bem acentuadas correntes nos agrupamentos que o rodeavam. Pertenciam, plenamente generalizados, à sua época. Nasciam do patrimônio comum das conquistas morais da humanidade. A sua grandeza está nisto: ele os viu antes e melhor do que os seus contemporâneos. Compreende-se que o estranhassem. Sem dúvida, devera ser anômalo, e, ao parecer, desorado, o vidente que surgia, de improviso, num estonteamento de miragens, e a proclamar uma nascença ainda remota, ou a descrever a era nova, que poucos adivinhavam, numa linguagem onde, naturalmente, os mais belos lances de seu lirismo incomparável teriam de golpear-se do abstruso e do impressionismo transcendental das profecias...
(Palestra sobre Castro Alves proferida por Euclides da Cunha, no Centro Acadêmico XI de Agosto, em 02/12/1907)
REFERÊNCIAS
BEHAR, Eli. Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha. In: ____ Vultos do Brasil; Dicionário bibliográfico brasileiro. São Paulo, Livr. Ex¬ posição do Livro, 1967.
BOSI, Alfredo. Cunha, Euclides da. por A.B. In: PAES, José Paulo & MOISÉS, Massaud (Org.). Pequeno Dicionário de Literatura Bra¬sileira. São Paulo, Cultrix, 1980.
CARONE, Modesto. A poética do silêncio. São Paulo: Perspectiva, 1979.
CUNHA, Euclides, Canudos: diário de uma expedição. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2009.
CUNHA, Euclides da. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.
CUNHA, Euclides da. Os Sertões. 32. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984.
COUTINHO, A. A nossa Vendéia. Org. Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: Aguillar, 1966.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2. ed. São Paulo : Duas Cidades, 1991.
HABERMAS, Jüngen. Discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990.
KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. Tradução: Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1969.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Pedro Süssekind. L&PM, Porto Alegre, 2007.
OBS: Confesso que estas linhas as quais denomino artigo, não foram aceitas pelo orientador acadêmico, mandou que eu o refizesse. É certo que pela nota eu refiz e o agradei. Mas, este artigo, na íntegra, exponho para que aproveitem, os leitores, do meu respirar.