AS FACETAS DA CRIAÇÃO LITERÁRIA INTIMISTA EM O CASO ALICE, DE SONIA COUTINHO

Este trabalho discute a abordagem ficcional intimista da obra O caso Alice (1991), da autora baiana Sonia Coutinho, descrevendo os componentes da criação literária que conferem ao romance seu valor artístico genuíno, ao debater a problemática trajetória feminina por meio de elementos da trama policial. A discussão teórica é feita com base nas concepções de Fischer (1983), Eliot (1989), Silverman (2000) e Vargas Llossa (2004). Tal abordagem é encadeada frente às ações do narrador e dos personagens Alice e Ciro, visto que estes articulam a narrativa por meio de pistas e hipóteses que possam esclarecer o “caso” do sumiço físico e simbólico de Alice. Nessa tentativa de elucidação, os narradores envolvem a participação do leitor por meio de um jogo de possibilidades e ainda pelo aperfeiçoamento da técnica narrativa da autora, imprimindo o estatuto de arte literária e de originalidade à obra.

A partir dos anos 1960, a chamada pós-modernidade delineia profundas repercussões no cenário mundial, mais especificamente no panorama literário, sendo que muitas delas remetem a traços econômicos, sociais e ideológicos. Segundo Pellegrini (2008), o pós-moderno não constitui um novo paradigma crítico ou literário, mas é apenas a renovação dos protótipos anteriores numa mesma continuidade, moldando-os como recursos estilísticos e ideológicos profícuos á globalização e à formação econômica da sociedade. Esta é acentuada através dos questionamentos á própria realidade:

O que veio a se disseminar como sinônimo de pós-modernidade foi justamente a visão despolitizada do “vale tudo”, do pastiche, da intertextualidade infinita, associadas a um neo-conservadorismo político que não parece dar conta dos múltiplos aspectos que envolvem a produção e o consumo da ficção (VILLAÇA, 1996 APUD PELLEGRINI, 2008, P. 68).

Em meio às renovações estéticas emergem também novas temáticas e personagens para configurar e representar o cenário atual, os quais deixam lacunas para que o homem moderno questione/ reflita tanto a si mesmo quanto o contexto social em que está inserido e o mesmo que ajudou a consolidar-se.

As repercussões provocadas pelas inovações do pós-modernismo se deram no estilo popular, na comunicação de massa, nas manifestações culturais e de gênero, dentre outras, as quais se remetem a aspectos da heterogeneidade, da diferença, da fragmentação, da indeterminação e ainda da relação dos discursos universais e totalizantes – assuntos que abrangem todos os indivíduos de uma espécie ou gênero. Essa mobilidade social tem acarretado novas discussões e configurado um sujeito tipicamente moderno: um ser fragmentado e em busca de sua verdadeira identidade.

Com o propósito de investigar e transgredir a problemática trajetória da condição subalterna feminina estabelecida pela sociedade conservadora, Sonia Coutinho escreve o seu segundo romance, O caso Alice, em 1991. Esta obra narra a história de uma professora universitária de classe média, casada com um homem que se torna praticamente ausente por causa de uma doença enigmática. Alice se autodefine como uma mulher “[...] nem magra nem gorda, nem feia nem bonita, nem rica nem pobre, uma professora de inglês e literatura inglesa casada há quase vinte anos com um engenheiro [...]” (COUTINHO, 1991, p. 31).

Depois de alguns envolvimentos amorosos, ela desaparece sem deixar pistas, a não ser o esboço de um livro que conta as suas vivências. Neste livro, o qual é lido por Ciro durante o romance e o qual se confunde com a voz do narrador, a personagem reflete sobre seu cotidiano feminino, expressando sua conturbada existência ao combinar ficção e realidade, passado e futuro, desejos e recalques. A desaparição de Alice, que se revela nos planos físico e simbólico, impressiona apenas seu vizinho Ciro, com quem tivera uma breve e secreta relação. Com isso, Ciro sente-se instigado em desvendar o paradeiro de Alice:

Há anos que eu e Alice moramos lado a lado, mas esse sentimento tão forte e nada previsível, levando em conta a pouca simpatia que, em geral, sinto pelos vizinhos, só começou a se manifestar de uns meses para cá. [...] Meu papel na história, é o que concluo agora, pode ter sido apenas o de um pequeno instrumento de início de vingança, mas isso não altera nada. O único consolo é pensar que tudo poderia ser bem diferente, se ela não tivesse desaparecido (COUTINHO, 1991, p. 15-6).

É nessa tentativa de esclarecimentos para o “caso” que se articula esta envolvente narrativa: por meio de pistas, hipóteses, suspenses, mistérios e assassinatos que compõem uma trama policial em segundo plano e, diante de outros elementos ficcionais presentes em composições intimistas, a autora discute a condição da mulher que transgride os padrões de comportamento impostos pela engrenagem social. Ao enveredar nessa perspectiva de ruptura, as personagens femininas pagam um preço por isso: a angústia existencial torna-as seres solitários e fragmentados, sem identidade própria, que mesmo tendo consciência de sua condição, as repressões internalizadas espreitam-na todo momento. Esse fato fica explícito nos seguintes trechos da obra:

- Meu nome sempre foi sinônimo de sexo, amor e felicidade mas, dentro de mim, sempre existiu uma menina desengonçada e triste, de um orfanato de Los Angeles, uma espécie de refugiada da loucura de minha mãe e do abandono de meu pai (COUTINHO, 1991, p. 151).

Tudo vai sendo carregado para o nada e para o esquecimento, inclusive nós mesmos, à medida que gotejam um pingo após o outro, as horas, os dias, os meses, os anos (COUTINHO, 1991, p. 165).

Este pensamento centrado na diferença surge com o intuito de modificar os esquemas representacionais vigentes que foram construídos a partir da centralidade na figura masculina, ao desestabilizar a representação ideológica e tradicionalista da mulher na literatura canônica. Ao fazê-lo, propõe apontar para a reescritura de novas trajetórias, imagens e desejos femininos, permitindo assim que a diversidade discursiva e social seja representada, mais designadamente as percepções de identidades femininas antipatriarcais.

Diante dessa mudança repentina, surge a figura da mulher descentrada, fragmentada e em busca de seu espaço na sociedade, visto que já não se configura mais como “rainha do lar”, mas também não se autoafirmou como mulher totalmente independente e liberta dos preconceitos e amarras sociais do seu novo lugar. Este descentramento leva-a a um lugar intermediário de sua vida, o conhecido “entre-lugar” dos críticos literários, que são os espaços instituídos pela debilitação dos projetos de singularidade, simplicidade e autenticidade do sujeito. Estar nesse “além”, como afirma Bhabha (1998, p. 19), significa habitar num espaço intermediário que não é novo e nem passado, mas um momento transitório em que passado e presente, consciente e inconsciente se transpõe para produzir diferentes perspectivas e identidades.

Questões identitárias têm centrado muitas discussões na contemporaneidade, principalmente quando se trata do contexto e da (re)afirmação das identidades pessoais e culturais, haja vista que o espaço hodierno é propício para esse processo de identificação – estranhamento de si mesmo e do outro. Segundo Hall (2005, p. 7), isso acontece porque “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades”.

Os indivíduos que compartilham da mesma cultura e dos princípios em comum se unem em comunidades para povoar a sociedade contemporânea, entretanto, a mediocridade que a permeia obriga-os a tornarem-se sujeitos diligentes e manipuladores de sua própria personalidade, fato que fragmenta e descentraliza-os.

É oportuno ressaltar que essas identidades só adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas, pois é através dessas acepções lançadas pela representação social que atribuímos significado a nossa existência. Para tanto, a existência de uma identidade depende de outra identidade(s) pré-existente que forneçam-lhe condições de diferença e/ ou similaridade cultura, ou seja, a sua construção é moldada pela cultura, tornando-se, dessa forma, simbólica, social e histórica.

Segundo Silverman (2000), essa crise existencial não é um elemento novo nos romances brasileiros. Este é resultado da “modernidade tardia”, nos termos de Giddens (2002), em que as problemáticas da vida atual afeta o processo reflexivo do indivíduo, envolvendo as pessoas numa atmosfera de nonsense marcada pelo caos íntimo e caracterizando, assim, as narrativas de abordagem intimista. As narrativas que a representam exploram o interior das personagens (angustiados, solitários, sufocado pelo meio social, incomunicáveis ou pouco comunicativos), desnudando seus traumas, seus problemas psicológicos, religiosos, morais e metafísicos. Dessa forma, tendem a ser um estudo prolixo e inovador “de personagens cuja mensagem é bifurcada entre arquétipos universais tradicionais ou alguma neurose singularmente localizada” (GIDDENS, 2002, p. 207).

[...] eu tinha medo dos espelhos. Meu temor era de que a imagem refletida ficasse só ou que, por exemplo, meu corpo fizesse coisas que não lhe mandasse fazer. [...] A cegueira me libertou desse temor incontrolável. Por que tanto medo dos espelhos? Não sei. São coisas que se agigantam na fantasia das crianças e, depois, não se vão mais. [...] No espelho, eu me vejo mascarado, então penso que meu rosto deve ser horrível, já que está coberto por uma máscara que, às vezes, é uma máscara de ferro. E não tento tirar a máscara, porque tenho medo de ver meu rosto. Não me vejo, mas pergunto – quem, há tantos anos, me olha do espelho? Às vezes, tenho sonhos anônimos e confusos, mas os pesadelos do labirinto sempre se repetem (COUTINHO, 1991, p. 172-3).

Frente a isso, pode-se ratificar Hall (2005) quando este afirma que não há mais uma identidade plenamente unificada, segura e coerente: isso seria uma ilusão. Contrário a essa realidade, o sujeito é confrontado por uma multiplicidade desconcertante de instáveis identidades possíveis, com cada uma das quais ele pode se identificar pelo menos temporariamente.

Por isso, a filiação de Sonia Coutinho na narrativa psicológica, em que aflora uma sensibilidade dilacerada por contínuos desencontros, fluxos de consciência, alusões alegóricas e autoanálises. Nesse mundo complexo, surgem as criações estilísticas engendradas em personagens femininas e ambientes urbanos associadas às discussões filosóficas a respeito da vida. No romance em estudo, essa característica do romance intimista se explicita na crise de identidade que a personagem Alice atravessa e em suas reflexões psicológicas diante do espelho.

Quem sou eu, quem terei sido? Não sobrou nada, descubro, sequer a lembrança do meu nome. Tudo que sei, neste momento, é que sou uma criatura viva. E acabei de acordar, assim vazia e despojada, diante de um espelho que não reflete minha imagem. Estendo a mão, toco a superfície opaca do mundo espelho, com sua moldura de metal oxidado, aparentemente antiga. Trago em seguida a mão de volta e me apalpo, percebendo, com alívio, que estou inteira e sólida, embora desmemoriada. Tudo indica que não sou um fantasma (COUTINHO, 1991, p. 18).

Como já mencionado, a personagem cria uma oportunidade de ruptura e de busca do saber sobre si mesma e, ao contrário de “uma mulher sem nenhuma importância” (COUTINHO, 1994). A professora Alice escreve um livro que traça sua história e expressa suas conturbações motivadas pelas perdas, pelos abusos sofridos quando criança, pelo desequilíbrio de sua vida afetiva e sexual.

O espelho como símbolo dessa crise identitária é recorrente na escrita feminina, principalmente da linha intimista, e se torna um dos principais geradores de sentidos deste romance em estudo. O espelho se mostra como uma passagem simbólica de travessia entre dois planos: Alice busca-se na imagem que se recusa a refletir porque ela se torna invisível para si mesma, visto que não tem uma identidade firmada.

‘Porque sou uma Criatura dos Espelhos’. (E nós, Criaturas do Espelho, vencemos. Depois de séculos, o milagre aconteceu, acordamos. E, aos poucos, fomos parando de imitar as criaturas do outro lado, voltamos aos tempos em que o mundo dos espelhos e o humano não eram incomunicáveis e passávamos todos sem problemas de um lado para outro) (COUTINHO, 1991, p. 24).

Theatrum catoptricum, são duplicações, multiplicações, ilusões de ótica, outra dimensão da qual às vezes me parece que nunca emergirei, serei condenada a ficar do outro lado do espelho, perdida em fundos labirintos de mim mesma, de minha loucura, talvez (COUTINHO, 1991, p. 139).

O sentido desse símbolo como reflexo do eu aparece concretamente nos manuscritos da personagem, cujas imagens cogitam as suas experiências vividas e imaginadas, projetando assim novos sentidos para que o leitor possa compreender pelo menos parte de seus conflitos. Acerca das estratégias e das problematizações dessa escrita psicológica, Castello Branco afirma:

Enquanto escritas que pretendem fazer do eu narrativo um sujeito de memória, os textos memorialistas [...], seja buscando emoldurar um retrato sem rasuras ou recortes, seja apresentado, como num instantâneo, apenas ângulos, pedaços, fragmentos de uma imagem que não se deixa capturar por inteiro, terminam por problematizar a indagação acerca da identidade do sujeito para, na verdade, questionarem a própria existência do sujeito (CASTELLO BRANCO apud PATRICIO, 2006, p. 136).

São esses “fragmentos de uma imagem que não se deixam capturar por inteiro”, mesclados com elementos reais e ficcionais, que compõem o texto escrito por Alice, o que deixa espaços para Ciro deduzir os episódios sobre a sua vida. O narrador conduz a narrativa num tom subjetivo, uma vez que se encontra envolvido afetuosamente na vida da personagem, por meio de um jogo de possibilidades, em que nenhuma verdade é revelada de forma objetiva, pois uma obra com discurso único e completo contradiz “a poética do descentramento” e prende-a na “poética da representação” (NASCIMENTO, 1993 apud PATRICIO, 2006, p. 133), recursos estratégicos da criação literária intimista. Segundo Vargas Llosa (2004, p. 30), é por meio das verdades subjetivas da literatura que conferimos à verdade histórica a função de resgatar parte de nossa memória: revelar as grandezas e misérias que nos insere na coletividade humana.

A partir dessa visão, Alice só existe para o leitor através da descrição de Ciro e do manuscrito que ela deixou antes de desaparecer, o qual fica sujeito a distorções e especulações por parte do narrador e do leitor. No que diz respeito ao processo de criação literária, o “personagem não existe anteriormente a si mesmo, ele só existe depois de criado, de narrado, e só se cria e se narra um personagem através, por exemplo, entre muitas técnicas e figuras de retórica, da técnica associativa”. Antes da palavra criada, “ele é apenas fumaça, ilusão, a dor que impulsiona o romancista a criá-lo, embora o romancista poderoso consiga às vezes visualizá-lo – senão seria incapaz de transpô-lo para o papel” (DOURADO, 1976, p. 76).

Outra faceta da criação literária é a intertextualidade presente no jogo de sedução/ dominação, em que Alice se sente atraída pelo padrasto e aceita com prazer as sessões de histórias infantis que adentra o espaço proibido. Em O caso Alice, a intertextualidade está situada no próprio título da obra, nos contos de fadas tradicionais contados pelo tio Max para seduzir a menina.

Quanto ao título, o nome da personagem é uma alusão à personagem célebre do escritor de histórias infantis Lewis Carrol: Alice, do livro Alice no País das Maravilhas. Há uma similaridade entre ambas protagonistas quanto à travessia pelo espelho: segundo Patricio (2006, p. 155), na história infantil esse cruzamento representa a passagem do mundo real para o mundo da fantasia “como forma de amadurecimento”, enquanto no romance concebe “a recuperação do passado como tentativa de autoconhecimento e redefinição da identidade”. Quanto ao jogo intertextual com os contos tradicionais, segue um trecho ilustrativo da obra:

Tio Max me mostrou a ilustração em que Chapeuzinho e o Lobo aparecem deitados juntos na cama, olhando de viés um para o outro. Visão horrível mas, ao mesmo tempo, curiosamente sedutora. Havia algo atraente naquele lobo que tinha longos braços para abraçar, grandes olhos para ver e dentes compridos com que comeu a menininha. Durante muito tempo, continuei pedindo a tio Max que me contasse de novo a história de Chapeuzinho Vermelho (COUTINHO, 1991, p. 12).

Nessa perspectiva, o ato de contar histórias tem dois objetivos: entreter uma criança e, no caso do romance, atrair Alice para o espaço do erotismo. Esse fato obscurece os limites entre a afetividade e a sexualidade, o que justifica a confusão emocional em que se encontra a protagonista. Assim, podemos ratificar a afirmação de Patricio (2006):

Os sentidos do romance se instauram, então, através da confluência intertextual das histórias infantis, na medida em que seus diversos elementos se entrecruzam. Assim, a personagem vê o “lobo” (Chapeuzinho Vermelho) ao fundo do espelho (Alice no País das Maravilhas) e, do outro lado, o presente. E, como se fosse a própria personagem de Lewis Carrol, ela atravessa este limite entre o passado e o presente e rememora fatos passados, imagens recorrentes em seu conturbado presente, que também se reflete em seus escritos (PATRICIO, 2006, p. 155-6).

Nesta perspectiva, o romance representa uma realidade, um tempo e um espaço por meio de uma perfeita criação artística, o que identifica os leitores e os transportam para um mundo no qual encontram “em suas fantasias, os rostos e as aventuras que necessitava para ampliar sua vida” (VARGAS LLOSA, 2004, p. 22). Muitas vezes, é nesse ato que o próprio escritor se encontra e se assegura enquanto escritor, pois, como afirma Eliot (1989), é no domínio do fazer estético de sua produção, que o pensamento do escritor pode atuar sobre a experiência do próprio homem ao perceber os elementos que atuam como catalisadores configurantes das emoções e dos sentimentos humanos.

E nós, enquanto leitores, como podemos saber o que é verdade e o que é mentira em literatura, visto que nesta, ficção e história coexistem para materializar as curiosidade humanas?

Primeiramente, segundo Vargas Llosa (2004), devemos considerar que verdade e mentira nos romances “são concepções exclusivamente estéticas” (p. 20), ou seja, não são determinadas pelo enredo e variam de época para época, de leitor para leitor; são criações literárias da linguagem para expressar os fatos e os valores de determinados contextos sociais. Cid Seixas, em seu artigo A construção do real como papel da cultura (In Revista Légua & meia, 2001-2002, p. 204-221), afirma que somente a linguagem tem essa capacidade de conferir aos fatos interiores a condição de realidade, sendo ela mesma que manipula estes fatos da realidade humana em favor da imaginação. Os romances mentem e “expressam uma curiosa verdade que somente pode se expressar escondida, disfarçada do que não é” (Idem).

O narrador conta sua história a partir de experiências vividas e instigantes da sua imaginação, sempre a transformando ou acrescentando algo incidindo assim sobre a subjetividade do leitor. Em O caso Alice (1991), encontra-se uma personagem, também é narradora de sua própria história, fragmentada e desencontrada no mundo civilizado atual. Mesmo em seu devaneio, em sua loucura, Alice (re)cria seu mundo:

Orquídeas, estrelas, deuses egípcios com cabeça de animais, pedras preciosas, hard rock, os fantasmas de Elvis Presley e Lewis Carroll, tráfico de cocaína, assassinatos. Tudo isso rodopia interminavelmente em minha cabeça, esta noite enquanto caminho de uma lado para o outro em meu apartamento, sem conseguir dormir (COUTINHO, 1991, p. 9).

Seguindo esta fórmula do fazer literário, Grossmann (1982, p. 10) ainda acrescenta que é pela articulação da realidade concreta, física e social com a realidade psíquica que o real se encontra e se totaliza na obra literária. Para tanto, esta deve ser concebida como uma rede que integre o individual e o coletivo, que por eles desvelem elementos imprevistos e apresentem-se como uma versão expansiva e crítica dessa realidade. Sobre o conceito de realidade, temos: “A realidade é um estado de tensão a todo instante interrompido entre o ser e o não-ser, um estado no qual tanto o ser como o não-ser são irreais e só é real a constante interação entre ambos, o devir deles” (FISCHER, 1983, p. 143).

Sobre isso, Olivieri-Godet (2010) afirma:

Da “realidade”, que já é uma construção, à imagem, a passagem se dá pela ilusão sedutora da palavra. Estamos no campo da representação, no terreno das manifestações poéticas e imaginárias. [...] Assim, na literatura e nas artes de uma maneira geral, a contemplação de uma paisagem, de um lugar, não significa simplesmente a delimitação de um objeto geográfico: na formação estética da paisagem, como demonstra Harel, “a descrição se organiza segundo uma espacialização da experiência afetiva (OLIVIERI-GODET, 2010, p. 16).

Frente a insatisfação existencial humana, percebe-se que o ser humano não quer ser apenas ele mesmo; este busca uma plenitude que lhe é roubada pela individualidade e todas as suas limitações. Nessa busca por um mundo que tenha significação, ele rebela-se contra as possibilidades efêmeras e restritas da sua personalidade. Nesse contexto, a arte se torna o meio indispensável para refletir a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências, ideias, crenças e ideologias. Seguindo esta perspectiva, nas últimas linhas do livro temos:

“Uma vida na sombra.” – Hugo diz, nesse poema, que todos os seres, sem excluir o Demônio, no final voltam para Deus – e voltam também os dragões, as serpentes, os répteis que transformamos em símbolos do mal. E todos eles voltam à divindade e não se sabe o que acontece depois (COUTINHO, 1991, p. 174).

Esse trecho pode demonstrar, em última análise, que a personagem, entendendo-a como representação da existência humana, que passa a vida escandalizando a sociedade e sendo, às vezes, admiradas e, outras vezes, desprezadas, talvez estejam a traçar novos caminhos para as futuras gerações. Isso porque tais personagens lançam mão dos artifícios da loucura para expressarem seus desejos, ilusões e conflitos.

E para ser um artista, é indispensável “dominar, controlar e transformar a experiência em memória, a memória em expressão, a matéria em forma” (FISCHER, 1983, p. 14); é necessário saber transmitir a emoção e “conhecer todas as regras, técnicas, recursos, formas e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser dominada e sujeitada à concentração da arte” (idem). Assim, é verdade que a função essencial da arte, em todas as suas manifestações, na ficção e na realidade, é inerente e necessária para que o homem torne-se capaz de conhecer e mudar o mundo.

O fazer da escritura de Sonia Coutinho satisfaz a uma fórmula da criação literária que fica bem explicada em Seis propostas para o próximo milênio, de Italo Calvino (1990). Neste livro, o autor identifica as seis qualidades que a literatura deve salvaguardar: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, as quais, segundo seu entendimento, não apenas norteiam a atividade dos grandes escritores, mas o comportamento da existência humana.

Segundo essa perspectiva didática de Calvino, a “leveza” é o que “o romance nos mostra, como na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba bem cedo se revelando de um peso insustentável” (Idem, p. 19), esta “se cria no processo de escrever, com os meios linguísticos próprios [...]”. A “rapidez” é a “agilidade, mobilidade, desenvolturas; [...] que se combinam [...] como “propriedade estilística de adaptação, uma agilidade de expressão e do pensamento” (Idem, p. 59-53). A leveza aliada à rapidez confere ao romance impressões precisas que recortam e dão acabamento ao mesmo. A essa precisão Calvino chama “exatidão”, que é a “capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação” (Idem, p. 72).

O resultado da união das três primeiras propostas é a “visibilidade”, ou seja, “a capacidade de pôr em movimento visões de olhos fechados [...], mas permitindo que as imagens se cristalizem numa forma bem definida, memorável” (Idem, p. 108), visando à novidade, à originalidade, à invenção.

E, finalmente, a “multiplicidade”, que é “uma estrutura acumulativa, modular, combinatória” que “permite aliar a concentração de invenção e expressão ao sentimento de potencialidades infinitas” (Idem, p. 135). Nessa “rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo” (Idem, p. 121), a escritora baiana Sonia Coutinho consegue materializar a experiência humana e, mais que isso, a estética cultural e literária da Bahia, com a merecida originalidade de uma ficção. Assim sendo, a literatura contemporânea propicia uma (re)organização das percepções do mundo ao possibilitar uma nova ordenação das experiencias existencias do ser humano.

REFERÊNCIAS

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourençode Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. de Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

COUTINHO, Sonia. O caso Alice. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

COUTINHO, Sonia. Rainhas do crime: ótica feminina no romance policial. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1994.

DOURADO, Autran. Uma poética de romance: matéria de carpintaria. São Paulo – Rio de Janeiro: DIFEL, 1976.

ELIOT, T.S. Tradição e talento individual. In: Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989.

FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

GROSSMANN, Judite. Temas de teoria da literatura. São Paulo: Ática, 1982. Ensaios 79.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

OLIVIERI-GODET, Rita. De paisagens e afetos na poesia de Eurico Alves. In: SILVA, Aldo José Morais (Org.). História, poesia, sertão: diálogos com Eurico Alves Boaventura. Feira de Santana: UEFS, 2010.

PATRICIO, Rosana Ribeiro. As filhas de Pandora: imagens de mulher na ficção de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: 7 Letras; FAPESB, 2006.

PELLEGRINI, Tânia. A ficção brasileira no horizonte pós-moderno: recusa e incorporação. In: Despropósitos: estudos de ficção brasileira contemporânea. São Paulo: Fapesb, 2008.

SEIXAS, Cid. A construção do real como papel da cultura. In: Légua & meia: Revista de literatura e diversidade cultural. Programa de Pós Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana. Feira de Santana, nº 1, 2001-2. p. 204-221.

SILVERMAN, Malcolm. O romance intimista. In: Protesto e o novo romance brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

VARGAS LLOSA, Mário. A verdade das mentiras. Trad. de Cordélia Magalhães. 2.ed. São Paulo: Arx, 2004.

Daiane França
Enviado por Daiane França em 09/10/2013
Código do texto: T4518255
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