Identidades fragmentadas: o olhar profícuo Pelo fundo da agulha

IDENTIDADES FRAGMENTADAS – O OLHAR PROFÍCUO PELO FUNDO DA AGULHA.

Ulisses Macêdo Júnior (Mestrando/UEFS)

RESUMO: O objetivo do presente trabalho se estabelece através da análise crítica da obra Pelo fundo da agulha do escritor baiano Antônio Torres, observando algumas marcas da pós-modernidade na narrativa. Em destaque, os processos de influência nas construções identitárias a partir do movimento migratório, através da alteridade, percebido por meio do olhar “multidimensional”, em uma viagem introspectiva, do narrador/personagem Totonhim.

Palavras-chave: Identidade. Viagem. Introspecção. Vigília

ABSTRACT: The objective of the present work if it establishes through the critical analysis of the work For Fund of the writer's from Bahia Antônio Torres Needle, observing some marks of the powder-modernity in the narrative. In prominence, the influence processes in the constructions identitárias starting from the migratory movement, through the alteridade, noticed through the glance " multidimensional ", in an introspective trip, of the narrador/personagem Totonhim.

Word-key: Identity. Trip. Introspection. Vigil

Sei que despertei e que ainda durmo. O meu corpo antigo, moído de eu viver diz-me que é muito cedo ainda... Sinto-me febril de longe. Peso-me, não sei porquê... Num torpor lúcido, pesadamente incorpóreo, estagno, entre o sono e a vigília, num sonho que é uma sombra de sonhar. Minha atenção bóia entre dois mundos e vê cegamente a profundeza de um mar e a profundeza de um céu; e estas profundezas interpenetram-se, misturam-se, e eu não sei onde estou nem o que sonho.

(PESSOA, 1979, p. 286)

Durante a história da humanidade, diversas foram as formas e os meios utilizados para a descrição e compreensão do mundo, para estabelecer relações com o ambiente e com o próprio ser humano, para apresentação de novas realidades vislumbradas somente através do olhar profícuo da arte. Numa visão panorâmica, podemos mencionar o teatro de Shakespeare e os anti-modelos surreais de Breton; o cinema de Spilberg, as elucubrações fantásticas de Dante, as linhas simbióticas de Suassuna. Todas são configurações que o ser humano encontra para representação, discussão, (re)criação da realidade e da própria natureza humana. Obviamente que tais amostragens de percepção de realidades diversas estão conectadas ao seu tempo e épocas. Até mesmo nas vanguardas, como forma de contraposição do convencional, do estratificado, ainda assim, mantém-se tal vinculação.

Na contemporaneidade, com o redimensionamento espaço/temporal do processo de globalização, as diversas manifestações artísticas e a literatura assumem caracteres peculiares desse novo contexto. Para dar conta da nova dinâmica de fragmentação da realidade ou de percepção de diversas realidades existentes simultaneamente, a literatura busca renovar-se, reinventando-se constantemente. A metaficção é um exemplo dessa linhagem inventiva.

Com o advento da pós-modernidade esses novos contextos e contornos são assimilados e uma imensa gama de pontos-de-vista é posta como forma de reconhecimento de outras realidades. A ótica transfigura-se de forma caleidoscópica e diversas nuances coabitam em um mesmo cenário. Com o intenso fluxo de perspectivas emergentes a partir de tal conjuntura, o novo sujeito, descentrado de sua existência única, se realinha no outro, na diferença. Janet Paterson, em Diferença e Alteridade: questões de Identidade e de ética no texto literário, afirma: “Diferentemente de problemáticas como a intertextualidade, a alteridade diz respeito à nossa realidade vivida em todas as suas dimensões: pessoal, social, literária, institucional, política e ética” (PATERSON, 2007, p. 13)

Em sua narrativa, Antônio Torres nos convida a perscrutar o dilaceramento da dimensão humana através de um crivo, o fundo da agulha, o autor apresenta, à primeira vista, uma imagem que filtra, que seleciona o que vai ser narrado. O macro universo é analisado pela minúcia de um olhar arguto, experiente e fragmentado. Pelo fundo da agulha somos jogados na carpintaria inventiva do escritor, em um mundo repleto de incertezas, em que cada vez mais assumimos papéis sociais diversos, a partir do nosso contato com o outro e com outras realidades a serem perscrutadas, sejam elas geográficas ou subjetivas. Tais indicativas já são sinalizadas no começo da narrativa em destaque: “Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios”(TORRES, 2006, p.7).

Mas quem seria o outro que tanto nos influencia? De que forma as pessoas e o meio exercem influência no que venho a ser? Podemos assumir papéis distintos em diferentes contextos nessa imensa dramaturgia que é a vida? As respostas para esses e outros questionamentos são apresentadas nas esquinas das ações das personagens, vislumbrados por meio das reflexões da protagonista em seu aproximado e afastado contato com o narrador.

Assim começa o romance de Antônio Torres, Pelo fundo da agulha, a condução do tecido narrativo por um narrador onisciente que oscila em seu contato com a protagonista, guiando o leitor por viagens e mergulhos memorialistas. Trilhas labirínticas são construídas pelos pensamentos desconexos de uma personagem semi-desperta que através do redimensionamento de suas memórias, tenta costurar a sua história presente. Um elemento mnemônico difuso orienta-se pelo estado letárgico em que se encontra a personagem.

Na obra História e memória, Jacques Le Goff comenta que: “A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas”. (LE GOFF, 1990, p. 423). No entanto, no início da obra mencionada de Antônio Torres, a questão dos fluxos de pensamentos memorialistas adquire certa peculiaridade, pois os processos de lembrança que a personagem se submete estão realinhados e preenchidos com possibilidades e desejos que se constroem a partir da sua palavra registrada pela figura do narrador e da protagonista.

Então ele veria o Boulevard Saint-Germain virar um rio, largo e profundo. E todos os seus edifícios transformarem-se em árvores, com o curso do rio passando a abrir um clarão sem fim no meio da floresta indevassável. Acrescente-se a isso uma revoada de pássaros a chilrear as Bachianas Brasileiras, de Villa-Lobos, e teremos aí um quadro verdadeiramente inacreditável. Extasiado diante da metamorfose que se operava à sua frente como num passe de mágica, ele não saberia a que atribuí-la: se às mãos de Deus ou a um efeito da sua memória cinematográfica. Era como se estivesse dentro de um dos filmes do alemão Herzog, o Aguirre, a cólera dos deuses, ou o Fitzcarraldo, ambos rodados na Amazônia.

Numa tentativa de retorno à realidade, se lembraria de olhar para os pés, antes apoiados sobre uma calçada[...]. (TORRES, 2006, p. 31-32).

O acesso de entrada no universo da mente inebriada, encantatória, pelo crivo apertado do buraco da agulha que somente o fio de exata espessura pode penetrar e expandir-se em uma ampla tessitura no outro lado da passagem. Nesse alinhavo de habilidoso alfaiate, Antônio torres, tece e (re)tece o seu manto com as linhas necessárias que ora se rompem, ora se realinham, e trazem a tonalidade própria de feições contemporâneas. A realidade é percebida através de um olhar tão pequeno e ao mesmo tempo tão abrangente.

Ainda no primeiro capítulo do romance, vale ressaltar, duas perspectivas sinestésicas de viagem se abrem como forma de realinhamento da vida da protagonista. Uma se dá a partir do mergulho interior em sua antiga vida de casado ao lado da ex-esposa com as suas reclamações costumeiras e desconfianças quanto à fidelidade do marido; com os filhos aos afagos diários e solicitações de narrativas a serem contadas em uma doce e saudosa lembrança. A outra num possível recebimento de cartas diversas e nesse meio uma carta de sua mãe. Nessa imersão, o relato da vida no Junco com os parentes que “se foram”, inclusive a história de um primo que, também, suicidou-se. As queixas da mãe por tê-la internado como uma louca. Enfim, as duas viagens introspectivas da personagem que segue nos rumos desconexos das suas histórias, oscilando entre o sono e a vigília.

Tais aspectos narrativos, frutos do processo criativo do escritor, que colocam as personagens no limiar de dois estados naturais já bastante utilizados na literatura brasileira. Dentre os autores que se utilizam esse recurso, mencionamos aqui o escritor Guimarães Rosa, no conto Os cimos de suas Primeiras estórias. O entre-lugar rosiano:

E, vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e não-estar-mais-ainda-acordado, o menino recebia uma claridade de juízo – feito um assopro – doce, solta. Quase como assistir às certezas lembradas por um outro; era que nem uma espécie de cinema de desconhecidos pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espírito ideias de gente muito grande. Tanto, que, por aí, desapareciam, esfapiadas. (ROSA, 2005, p. 203).

A figura do Menino adentrando um estágio limítrofe do não estar mais dormindo e não mais estar acordado é similar ao estado da personagem em questão.

Pelo fundo da agulha é a narrativa que completa a trilogia do escritor baiano Antônio Torres, iniciada com Essa Terra e posteriormente sequenciada com O cachorro e o lobo. A obra arremata, conclui, mas não se fecha. A discussão permanece aberta a análises, reflexões, e divagações. As luzes que dela emergem, as questões postas em evidência ou suavemente sinalizadas, pelos silêncios e reflexões memorialistas da protagonista dariam margem para diversos outros acontecimentos inventivamente reais. Diversas nuances são apresentadas através de pontos-de-vista variados, que perambulam a mente do inebriado protagonista Totonhim e dão um toque mais sublimado à obra. O narrador onisciente mais parece a própria imagem da personagem refletida em uma espécie de consciência que o interrompe, o critica e o insere dando-lhe relativa voz.

Inicialmente, duas indicativas se apresentam de forma preponderante no romance, o veio narrativo desenvolvido pela observação de uma personagem que está em um espaço limítrofe de sono e vigília, e a apresentação do “mundo” da protagonista pelas reminiscências da memória de uma identidade fragmentada.

O título da obra e a epígrafe de abertura já dão algumas pistas por onde trilhará o arguto escritor. Pelo fundo da agulha é a forma perspectiva adotada pela protagonista para rever, preencher e recompor as suas memórias e reminiscências, de reconstruir, mais uma vez, a sua identidade esgarçada. Rememorar o modo como a sua mãe, com a visão ainda apurada, coloca, sem óculos, a linha pelo fundo de uma agulha, o faz meditar sobre o seu passado como uma forma de redimensionar algumas frestas que nunca foram de fato fechadas. Nesse meio transe, num estado quase de delírio é que Totonhim mergulha na sua nova identidade, de aposentado, sem a importância que antes exercia como funcionário do Banco do Brasil, do setor de recursos humanos e, agora com mais tempo para pensar em sua vida ou no que ela se tornara. Vida de aposentado ou aposentado de sua antiga vida.

A protagonista deitada em estado de letargia, meio dormindo e meio acordada, construindo na associação livre dos pensamentos, a memória, Pelo fundo da agulha, em um alinhavo sinuoso, com idas e vindas constantes no tempo e no espaço, de modo a tentar unir elementos díspares e separados em sua vida.

Assim, Totonhim recompõe sua história em uma colcha de retalhos de tamanhos e formas variadas, numa (re)construção permanente de sua identidade que se dá a partir da vida no Junco, da ida para São Paulo, do ingresso no Banco do Brasil, do casamento com a filha do general, da relação com os filhos, do retorno ao Junco e encontro com algumas raízes, da separação e da aposentadoria. Logo, nessa reflexão entrecortada e urdida pelo entre-lugar da realidade, do sonho, do delírio a personagem mostra, também, a sua identidade fragmentada entre ser e não ser mais uma pessoa com vínculos ligados a sua terra e ao 3seu povo.

Antônio Torres, em meio aos dinâmicos modos de relações estabelecidas na contemporaneidade, como reflexo de uma nova conjuntura global de sociedade, cria uma tessitura narrativa que apresenta um pouco dessa incompleta e fragmentada forma de percepção do mundo e do ser humano. Assim, reverte a ordem tradicional do romance por meio de um subjetivismo que move as reflexões memorialistas da protagonista Totonhim e enquanto novas realidades são edificadas através da construção sinuosa da narrativa.

Sobre tais aspectos, Theodor Adorno, em Posição do narrador no romance contemporâneo, afirma:

[...] Em seu início encontra-se a experiência do mundo desencantado no Dom Quixote, e a capacidade de dominar artisticamente a mera existência continuou sendo o seu elemento. O realismo era-lhe imanente; até mesmo os romances que, devido ao assunto, eram considerados “fantásticos”, tratavam de apresentar seu conteúdo de maneira a provocar a sugestão do real. No curso de um desenvolvimento que remonta ao século XIX, e que hoje se intensificou ao máximo, esse procedimento tornou-se questionável. Do ponto de vista do narrador, isso é uma decorrência do subjetivismo, que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade. [...] (ADORNO, 2003, p. 55).

Através de uma construção permeada de aspectos subjetivos, de fluxos narrativos desconexos, entrecortados, por divagações da personagem ou comentários do narrador a obra se move projetando um painel imagético que nos dá uma alusão de uma possível realidade. Assim, o caráter contemporâneo da obra se apresenta, já que tempo e espaço são redimensionados pelo transitar subjetivo do pensamento e das rememorações, pela não linearidade narrativa, pela intrusão, em determinados momentos, do narrador que ora se aproxima e ora se afasta do leitor.

Observemos o fragmento:

Era outra a cidade, e outros o país, o continente, o mundo deste outro personagem, um homem que já não sabia se ainda tinha sonhos próprios.

Cá está ele: na cama.

Não o imagine um guerreiro que depois de todas as batalhas finalmente encontrou repouso, abraçado a uma deusa consoladora dos cansados de guerra. [...] Esta é a história de um mortal comum, sobrevivente de seus próprios embates cotidianos, aqui e ali bafejando por lufadas da sorte, mais a merecer uma menção honrosa pelo seu esforço na corrida contra o tempo do que um troféu de vencedor. Assim o vemos: deitado. Imóvel. A olhar para o teto e as paredes de um quarto. E a assustar-se com a sombra de uma cortina em movimento, que supôs ser o fantasma de uma alma tão penada quanto a sua. Uma alma de mulher, com certeza. [...]. (TORRES, 2006, p.7-8).

O mundo deste outro personagem era outro, assim como, também, torna-se outro o mundo do escritor através das suas experiências e processos migratórios. Obviamente há certo grau de autoficção na obra torriana. A narrativa construída a partir das vivências de um exímio contador de histórias. Aspecto que para Walter Benjamin qualifica bom o bom narrador.(BENJAMIN, 1996, p. 194). O autor cria um mundo ficcional carregado de simbologias que representam sombras de algumas histórias possivelmente reais, fruto da observação, da interpretação, mas que concretamente se edifica através do processo criativo, do preenchimento de lacunas, de junção de elos separados pelo tempo, através de um olhar profícuo Pelo fundo da agulha, de um profícuo trato da palavra.

O fechamento se dá na perspectiva da abertura. Um momento de letargia, pensamentos soltos, o passar de diversas cenas da sua vida, e a mesma sombra da cortina a lhe perseguir, dizendo:

- Não se mate pelo que acha que deixou de fazer por sua mãe, seu pai, seus irmãos, mulher, filhos, o país, tudo. E, principalmente, por você mesmo. Ou pelo que de lhe fazer. Nem por isso o mundo acabou. Abrace-se sem rancor. Depois, durma. E quando despertar, cante. Por ainda estar vivo.[...] E, depois,m marcaria um outro encontro, com a mãe deles junto, quando voltasse de Nova York. Se Don’Ana aparecesse, lhe diria: ai lóvi iú. Esperava que ela desse uma boa risada. E assim, com o coração mais leve, se sentirá um camelo capaz de passar pelo fundo de uma agulha.

Adormece.

E, finalmente, entra na região sem tempo dos sonhos. (TORRES, 2006, p.217-218).

Depois dos ajustes finais da sua história, enfim, a personagem adentra no mundo dos sonhos. Antônio Torres, em um alinhavo inventivo, constrói toda uma história que transcorre em uma noite. Narrado a partir de um entre-lugar, limite do sono e da vigília.

REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor, Posição do narrador no romance contemporâneo. In: ______. Notas de Literatura I; Tradução e apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas cidades - Editora 34, 2003.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990

PATERSON, Janet. Diferença e alteridade. In: FIGUEREDO, Eurídice; PORTO, Maria Bernadete Velloso (Orgs). Figurações da alteridade. Tradução: André Soares Vieira. Niterói: EDUFF, 2007.

PESSOA, Fernando, Poemas dramáticos. São Paulo: Ática, 1979.

ROSA, Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

TORRES, Antônio. Pelo fundo da agulha . Rio de Janeiro: Record, 2006.

______. Essa terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

______. O cachorro e o lobo. Rio de Janeiro: Record, 1998.

______.Biografia de Antonio Torres, 2000. Disponível em <http://www.antoniotorres.com.br/vida&obra.htm>. Acesso em: 22 jul. 2010, 22:30:21

Ulisses Macêdo Júnior
Enviado por Ulisses Macêdo Júnior em 14/07/2013
Código do texto: T4386792
Classificação de conteúdo: seguro