CAMÕES, O IMORTAL

Marilú Duarte (*)

Falar sobre Camões é sem dúvidas reverenciar uma das maiores figuras da literatura em língua portuguesa. Escreveu poesias líricas e épicas, peças teatrais e sonetos que em sua maior parte são verdadeiras obras de arte. Foi o criador da linguagem clássica portuguesa, tendo sido amplamente reconhecido e prestigiado a partir do século XVI. Faleceu em Lisboa, Portugal, no ano de 1580. Seus livros foram traduzidos para diversos idiomas: espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, entre outros. Seus versos continuam vivos em diversos filmes, músicas, roteiros e saraus poéticos.

Observa-se nos seus poemas e em sua vida pessoal, um grande poder de flexibilidade e uma grande predisposição em resistir à pressão de situações adversas, as quais a psicologia denomina de capacidade de resilência. Camões, nos seus épicos versos faz transparecer a inteligência, a discrição, a sutileza e o senso crítico e indagador. Da mesma forma aparecem a sabedoria, as crenças positivas, a motivação e a autoconfiança que refletem um efeito de aprendizado ao longo da vida.

Talvez este seja o momento de refletirmos, sobre os inúmeros Camões que encontramos pela vida a fora. Pessoas que como ele, são invejados, maltratados e na maioria das vezes ignorados, por uma sociedade intimista e oportunista, onde a importância do TER supera o privilégio do SER. Camões gritou aos quatro cantos do mundo e se tornou universal. Fez da literatura seu instrumento e seu objetivo, demostrando ao mundo seu poder de superação.

Desde o momento em que nasceu (1524) até sua morte, Camões levou uma vida muito atribulada. Ainda na infância, fase em que a tríade, ou seja, o vínculo da criança, com o pai e a mãe, é fundamental para formatar as inter-relações sociais, seu pai, Simão Vaz de Camões, parte para a Índia à procura de fortuna.

Embora seu tio, D. Bento de Camões, Cônego de Santa Cruz, junto com sua mãe D. Ana tenha assumido a responsabilidade de educá-lo, Camões se vê privado da figura parental masculina, extremamente necessária no desenvolvimento das futuras relações que se efetivam na infância, adolescência e maturidade. É importante salientar que os conflitos que envolvem emoções centrais são generalizados e afetam as interações da pessoa com outros em sua vivência individual ou grupal, gerando sentimentos ambivalentes e complexos. É preciso entender que os conflitos que surgem são sempre atuais nos relacionamentos presentes, porém referem-se a sentimentos não-resolvidos do passado.

Nosso príncipe, desde cedo interessou-se pelo Curso de Artes, talvez uma forma de conseguir superar suas frustrações. Aos dez anos, já era um excelente aluno do colégio que havia no Convento de Santa Cruz. A pedido de seu tio D. Bento, passou a cursar em 1537 o Curso de Teologia. Já nessa época era conhecido como ‘Poeta’, entre os estudantes.

Segundo Freud, a arte exerce papel terapêutico, funcionando para o artista como um substituto do brincar infantil. André Breton, admirador das teorias psicanalíticas de Sigmund Freud, salienta que a arte tem como objetivo exprimir aquilo que está escondido no inconsciente, através de processos de “automatismo psíquico puro”. O artista deixa-se levar pelo pensamento, esquece seus freios inibidores, e vai recolhendo as ideias, as palavras e as imagens, numa livre e casual associação.

Camões se concentrava na dimensão do inconsciente, refazendo sua releitura, modificando assim, seus significados reprimidos. Através de seus versos, buscava sua expressão sublimada de desejos proibidos, transferindo através da projeção, os seus conflitos internos inaceitáveis.

Como todo jovem, Camões teve sua fase de adolescência. Passou por crises constantes na busca de autoafirmação. Alguns falam de seu comportamento desordeiro e aventureiro, o que seria possível, uma vez que um ambiente agressivo, controlador em demasia, ou a inexistência de limites, gera nos jovens um funcionamento de protesto. Exatamente por isso, sob o ponto de vista psicanalítico, o poder de resiliência de Camões, intriga e questiona.

Como e onde ele conseguiu forças para dar ressignicações a seus conflitos? Se por um lado, ele era controlado rigidamente pelo tio, havia também o agravante da ausência significativa da figura paterna.

É bem possível que tenha sido a sua subjetividade, seu espaço íntimo e relacional com o outro, que lhe deu o poder de criar um mundo diferente do real.

É neste ato criativo que ele deixa de ser ele para ser o outro, uma projeção suportável mente cômoda para lidar com sua dor. Esta suposição nos parece verdadeira quando lemos fragmentos de seu poema "Amor é fogo que arde sem se ver":

Amor é fogo que arde sem se ver,

é ferida que dói, e não se sente;

é um contentamento descontente,

é dor que desatina sem doer.

Este mundo visível perfeitamente observável nos versos de Camões é semelhante ao conteúdo manifesto, que é o conteúdo do sonho onde se revelam os significados inconscientes.

O jovem Camões, aos 17 anos, mesmo sofrendo as imposições do tio que o queria na Teologia, luta contra todas as frustrações, perseguições e ausências, retirando da poesia a necessária força para persistir na sua escolha, até que, finalmente, seu tio permite que ele abandone as aulas de Teologia, e siga o curso que escolhera: Filosofia.

Camões vivia a cada momento um eu renovador, e a constante procura da perplexidade entre a verdade e a ficção, que é a própria essência da criação poética. E assim ele escreve:

"Ah falso pensamento, que me enganas!

Fazes-me pôr a boca onde não devo,

Com palavras de doudo, e quase insanas!

Como alçar-te tão alto assim me atrevo?"

O leitor, ao observar os versos de Camões, irá perceber detalhes que vão se delineando num vasto mundo de possibilidades onde se pode perceber a coreografia estética dos símbolos e das metáforas.

Aos vinte anos, o despertar de sua primeira paixão, D. Catarina de Ataíde. Uma paixão arrebatadora, que lhe seria fatal no transcorrer do tempo, como expressa em um dos fragmentos de seu poema 127:

"Já não sinto, senhora, os desenganos

Com que minha afeição sempre tratastes,

Nem ver o galardão, que me negastes,

Merecido por fé há tantos anos."

No mesmo ano, 1544, em um sarau em casa de D. Diogo de Sampaio, o espanhol D. Juan Jamón sentindo-se ofendido pelos versos de Camões, inicia um duelo, onde é ferido pelo poeta, que recebe ordem de prisão.

Percebe-se nítido em Camões que a cultura, e particularmente a produção literária, só são possíveis através da terapia de regressão de memória, pela liberação do estranho que habita em nós, como ele mesmo diz nestes versos:

“Amor um mal que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto

um não sei quê, que nasce não sei onde,

vem não sei como e dói não sei porquê.”

Camões frequentou a corte de Dom João III. Diz-se que por conta desse amor frustrado, auto-exilou-se na África, alistando-se como militar, onde perdeu um olho em batalha.

Voltando a Portugal, feriu um servo do Paço e foi preso. Perdoado, partiu para o Oriente. Passando lá vários anos, enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes, combateu ao lado das forças portuguesas, e escreveu a sua obra mais conhecida, a epopeia nacionalista –Os Lusíadas.

Camões foi um renovador da língua portuguesa; tornou-se um dos mais fortes símbolos de identidade da sua pátria e é uma referência para toda a comunidade lusófona internacional.

Concluindo, poderíamos dizer que sua vida marcada por tantos conflitos e desencontros deixa a todos nós um exemplo de persistência, aliado a uma Resiliência invejável.

Sua história é repleta de conflitos que surgem em função das diferenças de cultura, divergências de opiniões, inveja, ambições, perseguições e interesses pessoais. Mesmo assim, sua Resiliência é invejável, mesmo quando as adversidades pareciam enfraquecer o seu intelecto.

Falar de Camões será sempre falar do encantamento da vida com todos seus desajustes e desencontros, de seus versos, e de um poeta obcessivamente subjetivo e original. Enfim, de um ser humano intenso, afetuoso, que por sua emérita obra foi bafejado pela imortalidade literária.

(*) Licenciada em Letras, História, Direito e Psicologia, pela Universidade Católica de Pelotas - UCpEL. Natual de Jaguarão/RS. Ex- presidente da Academia Sul-Brasileira de Letras, sediada em Pelotas. Falecida em 2019, também em Pelotas/RS.

– Do livro inédito O IMORTAL ALÉM DA PALAVRA, autoria de Joaquim Moncks e Marilú Duarte, 2013.

http://www.recantodasletras.com.br/artigos/4368382