SULTÃO – MEU CÃO BANDIDO
Criança normalmente tem uma quedinha especial por pequenos animais. A preferência costuma recair sobre cães e gatos. Mas há os passarinhos, papagaios, peixes, hamisters, sem contar os grilos, cigarras, lagartixas, que normalmente são sacrificados pela curiosidade e manuseio inadequado.
A criançada da minha família já curtiu um pouco de tudo. A relação de amor com os bichinhos sempre começa e termina do mesmo jeito. Quando querem ter um em casa, já chegam de mansinho para pedir autorização aos pais. Diante das primeiras negativas categóricas, insistem, imploram, agradam e vão convencendo aos poucos os adultos mais durões, que acabam cedendo até mesmo para se verem livres da “mendicância”.
- Mas preste atenção no que vou dizer! Você vai ter que cuidar. Tem que dar comida, água, limpar toda a sujeira. Você promete que vai fazer tudo isso?
- Prometo. Juro. Pode acreditar. Vou cuidar direitinho.
- Se não cumprir, nunca mais peça para ter animal em casa, arrematam os pais cansados de saber que estão entrando no rol dos “me engana que eu gosto”.
O mais interessante é que, na maioria das vezes, vão eles mesmos buscar o novo membro da família, compram todos os apetrechos, ajudam a escolher o nome e ainda repassam as instruções aos pequenos sobre os cuidados de rotina necessários.
- Oba! Oba! Minha mãe e meu pai deixaram, comemoram os filhotes felizes com os amigos.
Vi esse trecho da história dezenas de vezes e nele já fui atriz, algoz, coadjuvante, platéia e vítima dos caprichos infantis.
Os irmãos Mary e Thygo acabaram conseguindo levar para casa mais um cãozinho recém nascido, mestiço de cocker com fila, ao qual deram o nome de Sultão.
Passada a primeira semana de lua-de-mel, começou o “barraco”.
Um dizia ao outro:
- Cuida você! Estou estudando...
- Engraçado! Ontem fui eu. Hoje é você quem tem que cuidar.
- Que saco! Eu não posso. É você quem tá à toa.
E a discussão vai longe, até que a mãe vem e cobra o compromisso, que ora é cumprido a contra gosto, ora não é. Chega o pai, houve reclamações da mãe, chama as crianças à responsabilidade.
Vai daqui, vai dali, pouco tempo depois o brinquedinho acaba se transformando em um peso, do qual todos querem se livrar. Não foi diferente com o Sultão.
Assim que completou quatro meses, deram-lhe a última vacina da série de imunização e o levaram para a minha chácara no fim de semana, com um pouquinho de ração.
- Vovó, olha como ele está grande! Você não vai ter trabalho nenhum.
Conformada com a minha condição de coadjuvante, respondi:
- É, estou mesmo precisando de um novo cachorro aqui (fazer o quê, não é?).
Quase pude ouvir um “Ufa! Ficamos livres do problema para sempre”.
Sultão era um cão forte, estatura mediana, pelo curto amarelado tendendo para o marrom, carinhoso, mas de espírito aventureiro. Corria para lá e para cá em toda a extensão dos duzentos e cinqüenta metros do terreno, que estava parte murado e parte cercado com “coroa de cristo” e arame farpado.
Em meia dúzia de ocasiões, fui chamada às pressas para levá-lo ao veterinário, porque havia se cortado no arame ou nos espinhos, durante as investidas para sair. Depois de algum tempo, aprendeu a cavar um buraco no chão sob a cerca e a rastejar como cobra até a chácara vizinha, que era aberta para as ruas laterais e transversais. Desaparecia por dois ou três dias. Voltava imundo, machucado e magro. Era confinado no canil por algum tempo, mas tão logo estava recuperado, acabava sendo solto para cumprir a sua função de guarda. Nesse meio tempo, fazíamos os consertos nos pontos vulneráveis das cercas, na esperança de que ele não mais conseguisse escapar.
Mas bastava haver uma cadela no cio nas proximidades para que o furacão existente dentro dele saísse arrebentando tudo e se arrebentando, para chegar até o seu novo ninho de amor. Tudo se repetia dois ou três dias depois da fuga espetacular e lá ia eu levá-lo ao veterinário.
Um dia, houve uma festança na associação dos produtores e um dos vizinhos veio conversar comigo.
- Então é você a dona do Garanhão do Lago Oeste?
- Eu o quê?
- Não é seu aquele cachorro mestiço que copula com todas as cadelas da redondeza?
Ele já deve ter pra mais de cem filhotes por aí.
- É o Sultão, patroa – informou o caseiro que estava ao meu lado.
O apelido dele agora é Garanhão do Lago Oeste. E tem gente dizendo que vai dar um tiro nele qualquer hora dessas, porque ele sai arrebentando tudo pra encontrar as cadelas no cio. Ninguém segura a fera.
Voltei para a chácara preocupada. Resolvi então fazer uma pequena pressão sobre o caseiro.
- Valdir, eu quero que de agora em diante você mantenha o Sultão preso o tempo todo. Tranque-o no canil durante o dia. À noite, estique um arame de um ao outro lado do portão principal e deixe-o acorrentado lá, de forma que só se mova no espaço do arame.
Como eu ficava na cidade durante a semana, ainda ameacei:
- Se eu chegar aqui e tiver que levar esse cachorro ao veterinário outra vez, vou descontar a despesa do seu salário.
Ele não fez cara boa, mas fingiu acatar as novas ordens. Retornei ao meu apartamento ao final da tarde daquele domingo.
Cinco dias depois, recebi um telefonema do Valdir.
- A senhora vai vir aqui hoje?
- Não pretendo. Mas, o que houve?
- É que aconteceu um negócio aqui com o Sultão, mas ele já está bem.
- Fugiu outra vez – gritei!
- Mais ou menos. Quando a senhora chegar aqui, a senhora vê se precisa levar ele ao médico.
Fui lá. Ao entrar, deparei-me com o Sultão solto, triste, andando vagarosamente.
- Afinal, o que houve com ele?
- É que teve um assalto aqui perto, de domingo para segunda. Aí, deixei ele solto à noite e ele acabou fugindo. Quando apareceu, eu vi que estavam faltando as duas bolas...
Pegou então o cachorro e o virou de pernas para cima, para que eu pudesse ver melhor. Fiquei arrepiada. O ferimento estava literalmente cauterizado.
- Mas, o que foi isto? Terá sido um ritual de magia negra?
- Eu não sei não senhora.
- Vamos para o veterinário.
Chegando lá, após o exame, o veredicto:
- Foi castrado. Impressionante o serviço que fizeram nele. Parece coisa de cirurgião experiente, arrematou o veterinário.
Comentei:
- Dos males, o menor. Pelo menos está vivo e agora fica quieto dentro da chácara.
Como já havia planejado, algum tempo depois substituímos a cerca de arames por tijolos. Tudo parecia tranqüilo. Mas doce ilusão a minha!
Sultão voltara a fugir. Agora escalava o muro de dois metros e meio de altura como se fosse lagartixa e desaparecia.
Ao indagar por ele na vizinhança, ficávamos sabendo que fora visto a quilômetros de distância, junto com outros cães, caçando.
- Caçando? Caçando o quê?
- Pequenos animais do cerrado, lá para os lados do Parque Nacional.
Reaparecia por uns dias e desaparecia novamente. Ninguém, nem nada o detinha mais.
No fim de semana, o caseiro comentou:
- Dessa vez, capaz que ele achou alguma coisa boa por aí ou deram cabo dele, porque já tem é dias que sumiu e ninguém dá notícia.
De manhã, comprei o jornal e li a reportagem da primeira página:
IBAMA SACRIFICA BANDO DE CÃES NO LAGO OESTE.
Logo abaixo havia a foto de uma grande vala com centenas de cães amontoados mortos.
Em seguida o texto, com a explicação do representante do IBAMA: trata-se de cães domésticos fugitivos das chácaras, que se agrupavam em bandos, transformavam-se em cães selvagens e invadiam o Parque Nacional de Brasília, dizimando a fauna da área de preservação ambiental.
Meu coração ficou apertado e a sensação de luto percorreu-me o corpo, enquanto procurava na foto algum detalhe que identificasse meu cão bandido.
Como nunca mais tivemos notícias do Sultão, persiste até hoje a dúvida sobre se ele teria sido um dos cães sacrificados em uma daquelas diligências do IBAMA.
Criança normalmente tem uma quedinha especial por pequenos animais. A preferência costuma recair sobre cães e gatos. Mas há os passarinhos, papagaios, peixes, hamisters, sem contar os grilos, cigarras, lagartixas, que normalmente são sacrificados pela curiosidade e manuseio inadequado.
A criançada da minha família já curtiu um pouco de tudo. A relação de amor com os bichinhos sempre começa e termina do mesmo jeito. Quando querem ter um em casa, já chegam de mansinho para pedir autorização aos pais. Diante das primeiras negativas categóricas, insistem, imploram, agradam e vão convencendo aos poucos os adultos mais durões, que acabam cedendo até mesmo para se verem livres da “mendicância”.
- Mas preste atenção no que vou dizer! Você vai ter que cuidar. Tem que dar comida, água, limpar toda a sujeira. Você promete que vai fazer tudo isso?
- Prometo. Juro. Pode acreditar. Vou cuidar direitinho.
- Se não cumprir, nunca mais peça para ter animal em casa, arrematam os pais cansados de saber que estão entrando no rol dos “me engana que eu gosto”.
O mais interessante é que, na maioria das vezes, vão eles mesmos buscar o novo membro da família, compram todos os apetrechos, ajudam a escolher o nome e ainda repassam as instruções aos pequenos sobre os cuidados de rotina necessários.
- Oba! Oba! Minha mãe e meu pai deixaram, comemoram os filhotes felizes com os amigos.
Vi esse trecho da história dezenas de vezes e nele já fui atriz, algoz, coadjuvante, platéia e vítima dos caprichos infantis.
Os irmãos Mary e Thygo acabaram conseguindo levar para casa mais um cãozinho recém nascido, mestiço de cocker com fila, ao qual deram o nome de Sultão.
Passada a primeira semana de lua-de-mel, começou o “barraco”.
Um dizia ao outro:
- Cuida você! Estou estudando...
- Engraçado! Ontem fui eu. Hoje é você quem tem que cuidar.
- Que saco! Eu não posso. É você quem tá à toa.
E a discussão vai longe, até que a mãe vem e cobra o compromisso, que ora é cumprido a contra gosto, ora não é. Chega o pai, houve reclamações da mãe, chama as crianças à responsabilidade.
Vai daqui, vai dali, pouco tempo depois o brinquedinho acaba se transformando em um peso, do qual todos querem se livrar. Não foi diferente com o Sultão.
Assim que completou quatro meses, deram-lhe a última vacina da série de imunização e o levaram para a minha chácara no fim de semana, com um pouquinho de ração.
- Vovó, olha como ele está grande! Você não vai ter trabalho nenhum.
Conformada com a minha condição de coadjuvante, respondi:
- É, estou mesmo precisando de um novo cachorro aqui (fazer o quê, não é?).
Quase pude ouvir um “Ufa! Ficamos livres do problema para sempre”.
Sultão era um cão forte, estatura mediana, pelo curto amarelado tendendo para o marrom, carinhoso, mas de espírito aventureiro. Corria para lá e para cá em toda a extensão dos duzentos e cinqüenta metros do terreno, que estava parte murado e parte cercado com “coroa de cristo” e arame farpado.
Em meia dúzia de ocasiões, fui chamada às pressas para levá-lo ao veterinário, porque havia se cortado no arame ou nos espinhos, durante as investidas para sair. Depois de algum tempo, aprendeu a cavar um buraco no chão sob a cerca e a rastejar como cobra até a chácara vizinha, que era aberta para as ruas laterais e transversais. Desaparecia por dois ou três dias. Voltava imundo, machucado e magro. Era confinado no canil por algum tempo, mas tão logo estava recuperado, acabava sendo solto para cumprir a sua função de guarda. Nesse meio tempo, fazíamos os consertos nos pontos vulneráveis das cercas, na esperança de que ele não mais conseguisse escapar.
Mas bastava haver uma cadela no cio nas proximidades para que o furacão existente dentro dele saísse arrebentando tudo e se arrebentando, para chegar até o seu novo ninho de amor. Tudo se repetia dois ou três dias depois da fuga espetacular e lá ia eu levá-lo ao veterinário.
Um dia, houve uma festança na associação dos produtores e um dos vizinhos veio conversar comigo.
- Então é você a dona do Garanhão do Lago Oeste?
- Eu o quê?
- Não é seu aquele cachorro mestiço que copula com todas as cadelas da redondeza?
Ele já deve ter pra mais de cem filhotes por aí.
- É o Sultão, patroa – informou o caseiro que estava ao meu lado.
O apelido dele agora é Garanhão do Lago Oeste. E tem gente dizendo que vai dar um tiro nele qualquer hora dessas, porque ele sai arrebentando tudo pra encontrar as cadelas no cio. Ninguém segura a fera.
Voltei para a chácara preocupada. Resolvi então fazer uma pequena pressão sobre o caseiro.
- Valdir, eu quero que de agora em diante você mantenha o Sultão preso o tempo todo. Tranque-o no canil durante o dia. À noite, estique um arame de um ao outro lado do portão principal e deixe-o acorrentado lá, de forma que só se mova no espaço do arame.
Como eu ficava na cidade durante a semana, ainda ameacei:
- Se eu chegar aqui e tiver que levar esse cachorro ao veterinário outra vez, vou descontar a despesa do seu salário.
Ele não fez cara boa, mas fingiu acatar as novas ordens. Retornei ao meu apartamento ao final da tarde daquele domingo.
Cinco dias depois, recebi um telefonema do Valdir.
- A senhora vai vir aqui hoje?
- Não pretendo. Mas, o que houve?
- É que aconteceu um negócio aqui com o Sultão, mas ele já está bem.
- Fugiu outra vez – gritei!
- Mais ou menos. Quando a senhora chegar aqui, a senhora vê se precisa levar ele ao médico.
Fui lá. Ao entrar, deparei-me com o Sultão solto, triste, andando vagarosamente.
- Afinal, o que houve com ele?
- É que teve um assalto aqui perto, de domingo para segunda. Aí, deixei ele solto à noite e ele acabou fugindo. Quando apareceu, eu vi que estavam faltando as duas bolas...
Pegou então o cachorro e o virou de pernas para cima, para que eu pudesse ver melhor. Fiquei arrepiada. O ferimento estava literalmente cauterizado.
- Mas, o que foi isto? Terá sido um ritual de magia negra?
- Eu não sei não senhora.
- Vamos para o veterinário.
Chegando lá, após o exame, o veredicto:
- Foi castrado. Impressionante o serviço que fizeram nele. Parece coisa de cirurgião experiente, arrematou o veterinário.
Comentei:
- Dos males, o menor. Pelo menos está vivo e agora fica quieto dentro da chácara.
Como já havia planejado, algum tempo depois substituímos a cerca de arames por tijolos. Tudo parecia tranqüilo. Mas doce ilusão a minha!
Sultão voltara a fugir. Agora escalava o muro de dois metros e meio de altura como se fosse lagartixa e desaparecia.
Ao indagar por ele na vizinhança, ficávamos sabendo que fora visto a quilômetros de distância, junto com outros cães, caçando.
- Caçando? Caçando o quê?
- Pequenos animais do cerrado, lá para os lados do Parque Nacional.
Reaparecia por uns dias e desaparecia novamente. Ninguém, nem nada o detinha mais.
No fim de semana, o caseiro comentou:
- Dessa vez, capaz que ele achou alguma coisa boa por aí ou deram cabo dele, porque já tem é dias que sumiu e ninguém dá notícia.
De manhã, comprei o jornal e li a reportagem da primeira página:
IBAMA SACRIFICA BANDO DE CÃES NO LAGO OESTE.
Logo abaixo havia a foto de uma grande vala com centenas de cães amontoados mortos.
Em seguida o texto, com a explicação do representante do IBAMA: trata-se de cães domésticos fugitivos das chácaras, que se agrupavam em bandos, transformavam-se em cães selvagens e invadiam o Parque Nacional de Brasília, dizimando a fauna da área de preservação ambiental.
Meu coração ficou apertado e a sensação de luto percorreu-me o corpo, enquanto procurava na foto algum detalhe que identificasse meu cão bandido.
Como nunca mais tivemos notícias do Sultão, persiste até hoje a dúvida sobre se ele teria sido um dos cães sacrificados em uma daquelas diligências do IBAMA.