Nas trilhas da memória sergipana pelas mãos de Ana Medina
Trilhando as minhas memórias, revejo Ana Medina na Rua Laranjeiras. Isto eu já disse em outro texto que escrevi sobre a obra de sua autoria enfeixando as crônicas de Epifânio Dória. Mas, sabe o leitor que as memórias sempre retornam, ora mais nítidas e com detalhes, ora um tanto encobertas pela névoa da emoção. Caminhar e conversar com Ana Medina pelas trilhas de sua existência foi um exercício prazeroso e enriquecedor.
Essas trilhas anamedinianas, digamos assim, são atraentes e de tal forma plenas que passam a ser também nossas, íntimas. A autora consegue nos fazer sentir pertencimento, tal o carinho e o aconchego que demonstra ao longo das trilhas e quando nos convida a entrar na casa onde viveu a infância e a juventude até que viesse para Aracaju. Ana ainda é a jovem que nos recebe na sala e que tem sempre um sorriso na face mimosa, na melodia que há na voz das filhas bem criadas e muito amadas. Foi na sala de visitas de sua casa que vi Ana Medina tomar nas mãos as firmes agulhas de suas letras refinadas, mas também rigorosamente fundamentadas, e esboçar a estrutura que sustenta a obra Trilhando memórias.
Quando Ana narrou boa parte da vida de Mariah e disse de como criava arte em almofadas, estandartes de temas religiosos e óleos sobre tela, eu tive a impressão, quase a certeza, de que aquela senhora estava ao meu lado e sorria enquanto se apoiava em meu braço. A arte tem desses sortilégios. Conheci uma jovem historiadora maranhense que me falou de momentos semelhantes quando pesquisava sobre um general. Quando eu mesma pesquisava sobre o médico Garcia Moreno, tive a sensação de que estava por perto. Digamos que tudo isto seja transcendental e quântico.
O que me chama particular atenção na recente obra de Ana é o engenho de estilo e talento com que alcançou formular um tecido no qual se entrelaçam harmonicamente a história familiar e momentos significativos da História de Sergipe. O apuro das abordagens e a sintaxe equilibrada e clara uniram, em laçadas objetivas, a memória, a história e a ciência.
Trilhando memórias não é a narrativa enfadonha da vida de gente desconhecida, mas a trajetória de um clã cujos componentes se tornarão amigos queridos de quem tiver o prestígio de ler estas 350 páginas. Não se trata de uma história encomendada, mas de um relato feito por quem de fato e de direito, dona da trama e intelectual de valor reconhecido.
Essas personagens tão reais nos contam suas sagas em terras sergipanas e, além de construírem a história, constroem conhecimento, aliado ao fato de que interagem em cenários cuja beleza só pode ser dita pelos traços da prosa poética. Trechos da obra se caracterizam pela pertinência e fidelidade exigidas a um trabalho de pesquisa, pelos contornos, pelo ton sur ton da prosa poética e, ainda, pela mão das personagens que nos conduzem pelos campos sergipanos, quer verdes das chuvas ou queimados pelas secas.
Para animar o diálogo na sala, Ana Medina diz versos de Exupero Monteiro, abre o baú de lembranças e situa a personagem principal da obra, Mariah, no contexto de Itabaianinha, a Princesa das Montanhas. É ali que se vê menina, lembrando-se
"dos sofás e cadeiras de palhinha, mobiliário simples e elegante; dos nichos imensos; dos retratos de senhores de espessos bigodes e de belas moças, desenhados em crayon sobre papel, que decoravam as paredes da sala de visitas, (...)".
Ela mesma, autora e também personagem de sua narrativa, diz:
"A casa, aos meus olhos de criança, era enorme, carregada de mistérios escondidos em arcas de madeira. Como gostaria de ter uma varinha mágica para voltar à casa da Rua Formosa! Naquele casarão secular estavam guardadas fotos, escrituras, cartas-patentes dos oficiais da Guarda Nacional; havia também batistérios e outros documentos relacionados à história da família e à própria História de Sergipe. Infelizmente, quase tudo se perdeu!"
As descrições presentes no texto são pontuadas pela excelência da letrada, conhecedora do seu idioma e de idiomas estrangeiros. Os matizes que a escritora impregna à palavra, à frase, à oração são a marca inconfundível de uma intelectual dedicada à grandeza da palavra, não ao rebuscamento empastado que tantos julgam ser domínio linguístico. Cada palavra foi escolhida rigorosamente e a técnica utilizada põe diante dos nossos olhos um texto de quem conhece no cerne o poder de cada termo.
Os títulos escolhidos para as seções do livro atravessam o leitor pelas cancelas nas estradas, pelas solenes entradas dos engenhos Periquito e Carnaíba. Eu nem queria usar o adjetivo solene, mas nas palavras de Ana, são ambientes austeros e solenes nos quais a alegria e a tristeza se revezaram, como em qualquer casa comum. Impossível não se envolver e sentir o profundo pesar quando o luto cobriu o Carnaíba, no dia 22 de julho do distante ano de 1927, quando faleceu o senhor do engenho, João Alves Nascimento, Major da Guarda Nacional:
"No casarão, ouviam-se os sons apneicos do enfermo e o balançar da cama, acompanhando o ritmo agônico. Invocando o taumaturgo português, lembravam-no que ele aplacava a fúria do mar, tirava os presos da prisão, aos doentes tornava sãos e as perdidos fazia achar. Às 15 horas, num dos espasmos, puseram-lhe a vela na mão, seus olhos foram vitrificando e entregou a alma a Deus, na presença da esposa e dos criados".
(...)
"As excelências eram entoadas em duas vozes, deixando ainda mais lúgubre aquele momento. Um gato angorá, olhos acesos, desfilou, gordo, pela sala".
Este é o estilo de Ana, de lances cinematográficos. Impossível também é não se enamorar quando Mariah encontra Raymundo, o seu único e eterno amor. Aqui, Ana Medina chamou à responsabilidade todas as características do Romantismo e, com a palavra, pintou telas arrebatadoras que se emparelham com as produzidas por Mariah. Raymundo, “uma estampa, um artista, bem empregado. O primeiro bilhete, os risos traçados numa atitude de inquietação e surpresa, um breve olhar cúmplice, por ocasião das novenas e missas”.
Deixo aqui o componente suspense para que outros possam também privar da acolhedora sala de Ana Medina e continuar seguindo nessas trilhas. Ainda terão direito a cafezinho ou chá, licor, biscoitos e doces caseiros. Como manda o figurino. Melhor que isto só quando a autora de Trilhando memórias presentear o Estado de Sergipe com mais de sua pena competente e mágica.
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O lançamento do livro Trilhando memórias, de Ana Maria Fonseca Medina. Aracaju: SERCORE, 2013 será lançado no dia 12 de junho próximo, pelo Instituto BANESE, no horário das 17 horas. Local: Museu da Gente Sergipana. Avenida Ivo do Prado.
Ana Maria Fonseca Medina é membro da Academia Sergipana de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, do Instituto Dom Luciano Duarte e da Associação Cultural do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Professora, pesquisadora e autora de várias obras.
Este texto será lido por mim durante o lançamento de Trilhando memórias.
Agradeço a amiga Ana Medina o prestígio que me confere e a honra de ter meu nome inscrito nas páginas do seu livro.
O texto está publicado no Jornal da Cidade (Aracaju) desta quinta-feira, dia 6 de junho de 2013.