A RELAÇÃO MÃE E FILHO NAS CANÇÕES DE CHICO BUARQUE: ANÁLISE ESTILÍSTICA
 
Em publicação anterior, analisei a letra da canção “O meu Guri” de Chico Buarque de Hollanda, destacando os recursos estilísticos empregados pelo autor para retratar a mãe de um marginalizado.
Para este trabalho, escolhi duas canções do mesmo autor que tratam também da relação mãe e filho sob dois aspectos diferentes: “Angélica” e “Uma canção desnaturada” . Na primeira, procuro demonstrar como o autor consegue exercitar ao máximo a sua “anima”, pondo-se no lugar de uma mãe que sofre a maior de todas as dores: a perda de um filho. Na segunda, o comportamento de uma mãe que não conseguiu aceitar o crescimento da filha.

“Oh, metade arrancada de mim,
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu.”



A mãe que perdeu o filho

Texto I: Angélica
 

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar

Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo
Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar

Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino
Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar.

     Essa canção é uma homenagem à estilista Zuzu Angel, cujo filho Stuart Angel (preso político) desapareceu nos porões da ditadura militar, supostamente jogado ao mar, em 1971 .
     Encontramos nessa composição versos com metrificação variando entre seis, oito e nove sílabas, rimas soantes, agudas e graves e alguns versos brancos.
   Todas as estrofes iniciam com uma interrogação indireta "quem é essa mulher". O paralelismo rítmico evidencia a procura incessante dessa mãe pelo filho desaparecido. Para dar ênfase ao desespero dela, o autor se utiliza das expressões "lamento"," tormento", "escuridão".
O emprego do intensificador "sempre, modificando o verbo “cantar”, realça a persistência da mãe nessa busca, "cantando sempre esse estribilho", "sempre esse lamento", "sempre o mesmo arranjo”. Fato comprovado pelo uso do presente do indicativo.
 É interessante observar o entrecruzamento da terceira e da primeira pessoa do discurso. Aqui, há uma certa ambiguidade na opção do poeta. Podemos ter uma falsa terceira pessoa  , ou seja, a própria mulher procurando a sua identidade: "Quem é essa mulher que canta sempre esse estribilho"/"... que canta sempre esse lamento/" "... que canta como dobra o sino..." Daí, o emprego do pronome interrogativo "quem", do demonstrativo "essa" (relação catafórica) e do pronome relativo "que" (relação anafórica). Ou ainda, o próprio poeta assumindo a maternidade desse menino: "só queria embalar meu filho" / "que fez meu filho suspirar"/ "só queria agasalhar meu anjo"/ "só queria cantar por meu menino", haja vista que Chico Buarque foi talvez o artista mais perseguido pela censura no período de repressão política, em que muitas de suas obras foram proibidas, não puderam ser publicadas. Portanto, o poeta estaria, com esse recurso, lamentando a perda desses “filhos simbólicos” .
     Na segunda estrofe, "Só queria lembrar o tormento/ que fez meu filho suspirar" a mãe pretende com essa atitude não deixar que as pessoas esqueçam aquele período de injustiça e impunidade em que tantos inocentes, assim com o seu filho, desapareceram.
     No nível fonológico, observamos a frequência das vogais nasais /ã/, /e/, /i/, sugerindo a tristeza e o lamento do eu feminino. A repetição do fonema oclusivo velar surdo /k/ sugere os gritos constantes dessa mãe sofrida.
     Quanto ao nível lexical, destacamos a expressividade dos verbos "dobrar" e "suspirar", aludindo respectivamente ao toque dos sinos, no dia de finados ou anunciando a morte de alguém e à respiração entrecortada produzida por desgosto ou incômodo físico. O emprego do antropônimo "Angélica"confere ao eu lírico a posição de anjo protetor daquele filho.
     Na terceira estrofe, a mãe expressa o triste desejo de querer encontrar o corpo do filho, para velá-lo com dignidade: "só queria agasalhar meu filho/ e deixar seu corpo descansar". Aqui, o verbo" descansar"" , remete-nos às torturas que ele sofrera.
     No nível sintático predomina a hipotaxe (orações adjetivas) caracterizando a linguagem objetiva do eu feminino.
     Finalmente, na quarta estrofe, o poeta compara o lamento dessa mulher ao tom triste e melancólico do dobre de um sino e mais uma vez, emprega o verbo “cantar” no infinitivo, revelando a verdadeira intenção dessa mãe: Fazer justiça, desvendar o mistério que envolveu a morte do filho amado, visto que ele não pôde e jamais poderá explicar o que lhe aconteceu: "Queria cantar por meu menino / Que ele já não pode mais cantar". Vale observar que o advérbio “só” não aparece no penúltimo verso, como nas estrofes anteriores, mostrando-nos que diante da impossibilidade de encontrar o filho para dispensar-lhe os cuidados e carinhos maternos, como embalar, e agasalhar, a única coisa que ela pode fazer, é denunciar a morte dele.
     O uso da enálage (verbos no pretérito imperfeito no lugar do presente) “queria”, denota pela suavidade, o estado emotivo do eu feminino.
   Quanto ao aspecto semântico destacamos as palavras que pertencem ao mesmo campo semântico: "escuridão"," lamento", "suspirar", sugerindo a morte. Ainda a metáfora "Que mora na escuridão do mar", em que escuridão traduz a ideia de impossibilidade, ou seja , ela tem consciência de que não poderá mais resgatar aquele corpo.
     Do ponto de vista da língua, o texto é trabalhado dentro do padrão culto, dando um tom formal e sério à fala dessa mulher.
 
A mãe possessiva 
Texto II: Uma canção desnaturada
     
     Muitos pais não aceitam criar os filhos para o mundo e, numa atitude egoísta, tentam podá-los , controlar-lhes os passos, enfim, viver por eles. E Chico Buarque não poderia excluir de sua obra esse tipo de mãe possessiva, castradora e egoísta: 

Vossos filhos não são vossos filhos.São os filhos e filhas da ânsia da vida por si mesma.Eles vêm através de vós mas não de vós.E embora vivam convosco, não vos pertencem.”
Gibran Khalil Gibran



Por que cresceste, Curuminha
assim depressa, estabanada
Saíste maquiada dentro do meu vestido
Se fosse permitido eu revertia o tempo
Pra reviver a tempo de poder te ver
as pernas bambas, Curuminha
Batendo com a moleira,
Te emporcalhando inteira
E eu te negar meu colo
Recuperar as noites, Curuminha
que atravessei em claro
Ignorar teu choro e só cuidar de mim
Deixar-te arder em febre, Curuminha
cinquenta graus
tossir, bater o queixo
Vestir-te com desleixo
Tratar uma ama seca
Quebrar tua boneca, Curuminha
Raspar os teus cabelos
Ir-te exibindo pelos botequins
Tornar azeite o leite do peito que mirraste
No chão que engatinhaste salpicar
mil cacos de vidro
Pelo cordão perdido
te recolher para sempre
à escuridão do ventre, Curuminha
De onde não deverias nunca ter saído.

 
     O texto em estudo é composto de vinte e sete versos heterométricos (metrificação variada), as rimas são soantes e toantes, predominando as internas.
     Essa composição, assim como “O meu Guri”(análise publicada anteriormente) apresenta como sujeito do discurso uma mãe. Entretanto, há uma diferença básica entre essas duas mulheres: Enquanto a mãe do Guri se orgulha do filho dedicado e reza para que nada de mal lhe aconteça, já que não pode detê-lo em casa sob sua proteção, a mãe da “Curuminha” lamenta os cuidados excessivos dedicados à filha que, depois de crescida, além de  não parar em casa,  sai a passeio, usando o vestido e a maquiagem da mãe.
     Há ainda uma diferença sociocultural entre as duas mães, estabelecida pela linguagem. Em “Uma canção desnaturada”, observamos a preocupação do autor com o padrão culto da língua, sugerindo que essa mulher pertence à classe letrada, culta. Já em “O meu Guri”, a predominância da linguagem coloquial, identifica-se com a classe social marginalizada a que pertence aquela mulher. Paradoxalmente, aquela mãe sem instrução sabe que o filho não é propriedade dela, por isso, “rezo até ele chegar cá no alto...” Enquanto a segunda mãe, mesmo instruída, não consegue admitir que a filha cresceu e que já pode andar sozinha, resolver o que deve ou não fazer da vida.
     O texto inicia-se com uma interrogação indireta, dirigida ao interlocutor, “Curuminha”, termo que será questionado.      O verbo “crescer”, no pretérito perfeito , indica uma ação passada irreversível.
Do ponto de vista morfológico, o intensificador "assim", modificando o sintagma adverbial "assim depressa" reforça a sensação de perda do controle da filha pela mãe e o espanto dela em relação à passagem do tempo. O adjetivo “estabanada” em oposição a “maquiada” (relação antitética) indica que, na opinião da mãe, a filha não está preparada para a vida, ainda é muito criança para sair sozinha ou usar roupas e maquiagens de mulheres adultas.
     No quarto verso, a mãe magoada e decepcionada lamenta a dedicação excessiva que tivera com a filha e deseja reverter o tempo, para ter as mesmas oportunidades de fazer com que sua "Curuminha", por meio do sofrimento, dê valor ao que teve. Tal ideia é sugerida pelo emprego do substantivo “colo”, representando carinho, aconchego, proteção e segurança.
     A mágoa dessa mulher é evidente ao relembrar as noites que não dormira, cuidando da filha pequena, quando ficava doente. Portanto, se pudesse voltar o tempo, cuidaria mais de si e não seria a mãe preocupada e dedicada que fora.
     Para dar ênfase à amargura e à revolta do eu feminino, o autor se utiliza de uma série de atitudes desumanas, “desnaturadas”, iniciando com a ideia de deixar a filha “arder em febre” e culminando com os versos: "No chão que engatinhaste salpicar/ mil cacos de vidro", caracterizando uma confusão de sensações (sinestesia).
Mais uma vez, o autor emprega a expressão “na escuridão” como isolamento, solidão. Assim, enquanto na canção “Angélica”, aquela mulher pretende resgatar o filho da “escuridão do mar” para protegê-lo, embalá-lo, de forma paradoxal, em “Uma canção desnaturada”, a mãe pretende devolver a filha à escuridão do ventre, acabando de uma vez por todas com a amargura de tê-la longe do seu controle. Ideia confirmada pelo verso "te recolher pra sempre".
     Vale destacar a expressividade do adjetivo “perdido”, referindo-se anaforicamente ao substantivo “cordão”, criando-se uma ambiguidade: o desaparecimento do cordão umbilical, no momento do parto, ou ainda a ruptura definitiva do laço de dependência que mantinha a filha presa à mãe.
     Outra atitude desesperadora dessa mulher é quando ela deseja quebrar a boneca da filha e raspar-lhe os cabelos, como se pretendesse transformá-la em um moleque de rua, ideia reforçada no verso "Ir-te exibindo pelos botequins".
     No nível lexical, destacamos o valor expressivo do substantivo “azeite”, no verso: "Tornar azeite o leite do peito que mirraste". Ou seja, deixaria a filha passar fome, mas não deixaria que os seus seios, bonitos e rijos, ficassem flácidos e mirrados por amamentá-la. E ainda, da locução adverbial “pra sempre”, caracterizando a personalidade insegura, possessiva , egoísta e castradora dessa mãe.
     Mais uma coincidência entre a canção em estudo e “o meu Guri” é no que diz respeito aos nomes dos filhos. Observamos que em “O meu Guri”, a mãe deixa claro que não deu nome àquela criança, por falta de recursos e esclarecimento ou por não saber seu próprio nome. Entretanto, em “Uma canção desnaturada” a mãe parece querer, com esse nome aparentemente carinhoso, atribuir à filha características selvagens, visto que ela não aceita viver “civilizadamente”. Daí o nome “Curuminha” feminino de "curumim", substantivo derivado do tupi que significa menino (Amazonas).
     No nível fonológico, destacamos a frequência das oclusivas bilabiais /p/, /b/, revelando  certo pesadume do eu feminino. E a repetição da vogal anterior fechada /ê/: Tornar azeite o leite do peito que mirraste, constituindo uma assonância.
     Ainda do ponto de vista da língua, a anteposição do pronome “te” (próclise), marca além da opção do poeta pelo registro coloquial, a explosão de sentimentos dessa mulher. Visto que há o entrecruzamento dos dois níveis (coloquial e culto).

Imagem da internet.

Bibliografia:

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BUARQUE, Chico & Ruy Guerra. Calabar: o elogio da traição. 22ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

CARVALHO, Gilberto de. Chico Buarque. análise poético-musical. 3ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1984.

CASTAGNINO, Raúl H. Análise Literária. 1ed. São Paulo: MestreJou, 1968.

GARCIA, Otton Moacir. Comunicação em prosa moderna. 13ed. Rio de Janeiro: FGV, 1986.

GUIRAUD, Pierre. A estilística. Tradução de Miguel Mailler. 2ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978.

LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 11a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982.

MARTINS, Nilce Sant'Anna. Introdução à estilística. , 3ed. São Paulo:T.A. Queiroz Editor, 2000.

MELLO, Gladstone Chaves de. Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa. 1ed. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.

MONTEIRO, José Lemos. A estilística. 1ed. São Paulo: Ática, 1991.

PIRES, Orlando Manuel de. Manual de teoria e técnica literária. 2ed. Rio de Janeiro: Presença, 1985.

ZAPPA, Regina. Chico Buarque: Perfis do Rio. 4ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.

SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Desconstrução/construção no texto lírico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

 
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 27/05/2013
Reeditado em 20/06/2017
Código do texto: T4312268
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