MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILICIAS - OS LIVROS DA FUVEST-MANUEL ANTONIO DE ALMEIDA
MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS
MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA
Análise da obra, seleção de textos
FERNANDO TEIXEIRA DE ANDRADE
(Rio de Janeiro, 1831 – naufrágio do vapor "Hermes", nas costas
da Província do Rio de Janeiro, 1861)
1. VIDA
Filho de um modesto casal de portugueses, perdeu o pai aos dez
anos de idade. Pouco se sabe de sua infância e sobre as presumíveis
dificuldades para fazer seus estudos elementares e preparatórios. Sua
biografia é pouco conhecida e, só recentemente, a descoberta da
correspondência de Manuel Antônio de Almeida começa a levantar
algumas pistas sobre a vida atormentada do autor.
Pode-se, contudo, supor que tenha conhecido de perto a vida da
pequena classe média carioca, que povoa sua obra-prima. Sabe-se que
estudou desenho na Academia de Belas Artes e que, feitos os
preparatórios, foi aprovado em 1848 para o curso de Medicina. Formou-se médico em 1855, tendo perdido dois anos, talvez por dificuldades
financeiras, que devem tê-lo impedido de exercer a profissão.
A necessidade de prover os meios para sua subsistência levaram-no
ao jornalismo. Trabalhou como revisor, traduziu para folhetins de jornal e
foi redator do Correio Mercantil, para o qual escrevia um suplemento
mundano e literário: "A Pacotilha".Nas páginas desse suplemento foram publicadas, anonimamente,em folhetins, as Memórias de um Sargento de Milícias, entre 27 dejunho de 1852 (Cap. I) e 31 de julho de 1853 (Cap. XLVIII).No ano seguinte, as Memórias de um Sargento de Milícias
começaram a ser reunidas em livro. Os 48 capítulos que constituíam a
publicação original (em folhetim) foram renumerados, alguns títulos
foram alterados, e o autor publicou o romance em dois volumes,
ocultando-se sob o pseudônimo de Um Brasileiro. O primeiro volume
saiu em 1854, com 23 capítulos, e o segundo volume, em 1855, com 25
capítulos.
Somente na terceira edição, de 1863, póstuma portanto, a obra
começa a trazer estampado o nome do autor: Manuel Antônio de
Almeida.
Em 1858, foi nomeado Administrador da Tipografia Nacional, onde
conheceu e amparou o jovem Joaquim Maria Machado de Assis, ainda
aprendiz de tipógrafo.
Em 1861, foi tentado a entrar na política, almejando uma vida
financeira mais estável. Candidatou-se à Assembléia Provincial do Rio
de Janeiro. Viajava para a cidade de Campos, onde ia iniciar as consultas eleitorais, quando morreu, no naufrágio da barca a vapor "Hermes", no litoral fluminense.
2. OBRA
• Romance
• Memórias de um Sargento de Milícias
• Outros Gêneros
Tese de doutoramento em Medicina
Libreto da ópera Dois Amores ("imitação do italiano de Piave"),
com música da Condessa Rosawadowska, representada sem êxito após amorte do autor.
Crônicas, críticas, artigos e imprensa etc. ainda não reunidos em
livro.
Observação
Adotamos a edição crítica de Cecília de Lara, LTC – Livros
Técnicos e Científicos Editora S.A., Rio de Janeiro, 1978. Seguindo a
primeira edição em livro, publicada sob as vistas do autor, a edição de
Cecília de Lara respeita a repartição da obra em dois volumes (ou tomos),
numerando os capítulos separadamente (Tomo I, capítulos I a XXIII;
Tomo II, capítulos I a XXV).
3. CARACTERÍSTICAS GERAIS
3.1. Como nasceu o livro.
Manuel Antônio de Almeida pertence ao grupo de escritores que se
consagraram com um único livro: Memórias de um Sargento de Milícias.
Publicada no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, de 27 de junho de
1852 a 31 de julho de 1853, a narrativa não trazia o nome do autor.
Como chamasse atenção, foi republicada em dois volumes (1854-1855),
com modificações na ordem dos capítulos e no texto, e assinada por "Um Brasileiro". A nova edição passou praticamente despercebida, e a obra caiu no esquecimento por muitos decênios, até que a renovação
modernista veio a fazer-lhe justiça.
O silêncio que cercou seu aparecimento em volume constitui apenas
um sinal das controvérsias e perplexidades que a obra tem levantado para quantos se abeiraram dela, como leitores e críticos. E ainda hoje, apesar dos estudos que suscitou, não se pode afirmar que o balanço crítico está realizado: sua riqueza intrínseca e a circunstância meio insólita de te rvindo a público em 1852-1853 continuam provocando exegeses de vária sorte.
Um dos primeiros problemas sugeridos pelas Memórias diz respeito
à classificação: novela? romance? de costumes? picaresca? realista? A um exame global do texto, parece que se trata de novela, à semelhança das que Bernardo Guimarães engendraria e, sobretudo, das novelas picarescas,com as quais se tem aproximado. Estruturalmente, obedece ao módulo da novela: uma seqüência de células dramáticas, ou episódios,equivalentes aos capítulos, dispostos na ordem linear do tempo, com predomínio da ação sobre a análise e da técnica do suspense e do entrelaçamento. Aberta à inclusão ou exclusão de peripécias, quer no desenvolvimento, quer no epílogo, poderia, como aconteceu, sofrer mudança na disposição dos capítulos. Destinada a entreter pelo movimento das cenas e situações, a narrativa concebe a existência como peregrinação ao longo de "passos" claramente demarcados e, por isso,suscetíveis de alteração.
Em suma: novela, e não pela extensão de páginas – critério
indefensável –, mas pela estrutura, análoga à de tantas narrativas
românticas e às que a tradição cavalheiresca, bucólica, sentimental e
picaresca havia legado.
Indício seguro de que estamos perante uma novela se encontra no
suspense, que coroa os episódios, às vezes expresso por meio de fraseschamariz, que objetivam manter viva a curiosidade do leitor, como: "Por agora vamos continuar a contar o que era feito do Leonardo", ou "Já vê pois o leitor que o negócio não estava malparado, e em breve saberá o resultado de tudo isto". Ora, tais frases remontam a Demanda do Santo Graal, onde é comum o narrador empregar o sintagma "Mais ora leixa o conto a falar de dom Galaaz e torna a Melias" para reatar o fio na história, e suspender a ação prometendo voltar ao assunto, com frases do gênero: "assim como este conto devisará pois, em-cima do nosso livro", ou "e sabiam todos aqueles que este conto ouvirem que era filho de rei Artur e fez era-o em qual guisa vos eu contarei, cá em outra guisa nome no poderia de saber".
Além de patentear filiação com novela, tais frases conclusivas ainda
podem ser interpretadas como sinais de que a narrativa, embora publicada em folhetins semanais, não foi escrita capítulo a capítulo, como julgaram alguns críticos. É sabido que Manuel Antônio de Almeida se fundamentara nas memórias de um autêntico sargento de milícias, o
português Antônio César Ramos:
Melo Morais Filho conheceu este sargento quando, já desengajado,
era diretor de escritório no Diário do Rio, após ter exercido estas
mesmas funções no Correio Mercantil. Português de nascimento,
chamava-se Antônio César Ramos e viera como soldado para a guerra
da Cisplatina, em 1817, no Regimento de Bragança. Depois chegara a
sargento de milícias, ainda na Colônia, sob o mando do Major Vidigal.
Dando baixa, se passara para o emprego nos jornais. Conhecera e
prezava muito Maneco Almeida, o qual antes de subir para a redação,
procurava o ex-sargento, puxava-lhe da língua, armazenava casos e
costumes do bom tempo antigo, pra passá-los nos seus folhetins. Tudo
isto o César relatara a Melo Morais Filho, que por sua vez tudo reporta
nos "Fatos e Memórias". E assim ficamos sabendo que Manuel Antônio
de Almeida além de leituras possíveis, tinha um ótimo informante dos
casos de polícia e gente sem casta ou sem lei que expõe no seu romance.
(Mário de Andrade, Aspectos da Literatura Brasileira)
Aproveitando as memórias do velho colega de redação, ou ainda
recorrendo a outros informes, Manuel Antônio de Almeida redigiu sua
narrativa em plena anarquia de uma "república":
E era no meio desse alarido que Manuel Antônio de Almeida ia
compondo muitos capítulos das Memórias, em posição bem extravagante
– esticado numa marquesa, com preguiça de mudar a horizontal atitude,
punha o chapéu alto sobre o ventre e em cima dele ia enchendo a lápis
as suas tiras de papel, indiferente às risadas dos companheiros, sem dar
grande importância ao seu trabalho, que nem era assinado, cujos
capítulos muitas vezes traziam a numeração errada ou repetida, e cujas
últimas linhas, sem nenhuma separação, se misturavam com as mais
cruéis mesquinharias políticas de que a "Pacotilha " era fértil. (Marques
Rebelo, Vida e Obra de Manuel Antônio de Almeida)
Note-se que o biógrafo assevera que o ficcionista "ia compondo", e
mais adiante lembra que "o romance ia saindo portanto em capítulos”.
Se não estavam prontos antes da série de folhetins, é de supor que alguns já conhecessem forma definitiva e que o todo da obra se esboçasse na mente do autor. Manuel Antônio de Almeida ostenta uma consciência artesanal que não admite outra alternativa: as memórias de Antônio César Ramos, conhecia-as na íntegra quando começou a dar-lhes vida nos rtigos semanais. O próprio texto da novela comprova-o: o narrador interrompe o monólogo do barbeiro, a cuja guarda tinha sido entregue Leonardo, protagonista da novela, para explicar, entre parênteses, que "há neste arranjei-me uma história que havemos de contar", o que denuncia a segura antevisão do prosseguimento da narrativa, difícil de sustentar se o escritor a tivesse redigido capítulo a capítulo, semana a semana. E nemse diga que poderia resultar de uma intercalação a posteriori, nos volumes publicados em 1854-1855, uma vez que a interferência do narrador já se encontra no capítulo dado à estampa no Correio Mercantil.
Outros indícios do gênero podem ser colhidos ao longo da
fabulação, como: "Como o velho tenente-coronel conhecia a comadre e o Leonardo, e porque se interessava por ele, o leitor saberá mais para
adiante"; "A este episódio da Folia seguiam-se outros de que vamos em
breve dar conta aos leitores. Por agora porém voltemos aos nossos
visitantes". Nem falta uma frase que recorda as novelas de cavalaria:
"Deixemos agora o Leonardo, vítima de sua dedicação, caminhar preso
para o quartel, e passemos a outras cousas. Há muito tempo que não
falamos em D. Maria e na sua gente"; ou uma justificativa ao leitor que,
vincando o tom coloquial da narrativa, confirma a lucidez de técnica e o
pleno conhecimento da narrativa:
Os leitores terão talvez estranhado que em tudo quanto se tem
passado em casa da família de Vidinha não tenhamos falado nesta
última personagem; temo-lo feito de propósito, para dar assim a
entender que em nada disso tem ele tomado parte alguma.
Em suma, Manuel Antônio de Almeida poderia ter composto a
novela ao correr dos dias, como divertissement ou para resolver apertos
econômicos, mas conhecia decerto a totalidade da intriga; não a redigiu
enquanto Antônio César Ramos a narrou, mas depois, ao menos
depois que a assimilou à fantasia, sobrepondo, desse modo, sua
memória do entrecho às recordações do velho sargento.
Baseada em memórias alheias, a novela de Manuel Antônio de
Almeida é, por conseguinte, uma biografia de Antônio César Ramos, ou
autobiografia deste escrita por mãos alheias: da perspectiva do autor, as memórias são alheias; da perspectiva do biografado, o texto é alheio.
Memórias de um outro, não do prosador, como se este se limitasse,
humildemente, ao papel de escriba, não sem injetar no relato do
interlocutor sementes de anarquia, oriundas de sua fantasia criadora e seu agudo senso de observação. De onde a sobreposição de memórias: o autor narra sua memória das memórias alheias, talvez cônscio de as lembranças do sargento conterem um tudo-nada de exagero ou distorção do tempo,assim permitindo-lhe o livre exercício da imaginação.
3.2. Pícaro ou malandro?
Autobiografia que Antônio César Ramos escreve por meio de
Manuel Antônio de Almeida, portanto na terceira pessoa, as Memórias
discrepam, nesse particular, das novelas picarescas, via de regra na
primeira pessoa – e já aqui se abre de novo o debate: Mário de Andrade
foi o primeiro a roçar a questão num artigo consagrador, e outros críticos procuraram levar adiante a sugestão. Antes de mais nada, coloca-se a noção de picaresca, que a crítica, espanhola ou não, vem procurando equacionar desde os primeiros anos deste século. Que é "pícaro"? Que se entende por novela picaresca? O Lazarillo de Tormes (1554), ou as novelas que lhe seguiram as pegadas? Ou todas, mas, neste caso, como explicar as divergências entre elas?
Obviamente, não cabe aqui um exame do problema; deixar, porém,
de ponderar alguns de seus aspectos pode comprometer o entendimento da novela de Manuel Antônio de Almeida. O pícaro, para Ludwig Pfandl,
é um moço nascido quase sempre de pais pobres e de baixa
extração, raramente honrados, o qual, por culpa de más companhias, ou
por falta de instrução, ao ver-se lançado na confusão da vida e entregue a si próprio, cai na vadiagem, afasta-se do trabalho e luta contra a vida como pode, com ousadia e falta de escrúpulos, com enganos, malícias e más artes, querelas e furtos. Seu distintivo exterior é o aspecto andrajoso, mas não a deformidade física. Suas ocupações são pedir esmola, os baixos trabalhos de ocasião, o vagar preguiçosamente de cidade a cidade, o trato com caminhantes, bufarinheiros e adeleiros, comediantes de aldeia ou titereiros, adivinhos e ciganos, o jogar baralho com vantagem, em uma palavra, o exercício de toda a classe de enganos e intrigas e de brincadeiras graciosas ou de mau gosto. Masnão é de modo algum mulherengo ou beberrão, menos ainda rixento,pois lhe falta valor para isso. Seu caráter é envilecido pela ascendência umas vezes, sempre pelo meio ambiente. A necessidade de viver o faz desavergonhado e inescrupuloso mas, apesar da fome e dos fracassos, do sol e dos aguaceiros, em linguagem real e figurada, não desejaria ser diferente do que é, e não trocaria sua livre e despreocupada existência por uma sedentariedade honorável, por uma cama e um teto.
Isto é em geral o pícaro.
Então o protagonista das Memórias não é pícaro, embora guarde com eleremoto parentesco: entregue ao barbeiro, compadre de Leonardo Pataca,quando este fora abandonado pela Maria da Hortaliça, a novela relata asérie de aventuras que experimentou até se tornar sargento de milícias,como sacristão, valdevinos etc. Sim, no tocante à origem – filho de um beliscão e uma pisadela –, assemelha-se ao pícaro, mas no restante se distancia.
O pícaro é mendigo, vagabundo, andarilho, aventureiro, com vistas
a sobreviver, enquanto Leonardo não sai do Rio de Janeiro; quando
muito, alguns bairros presenciam-lhe as vadiagens. Seu perfil é mais o do malandro carioca, que vive de expedientes por desamor ao trabalho, do que o de um pícaro; suas artimanhas resultam de ter garantida a
existência, erradia, uma vez que o barbeiro tem o seu pé-de-meia (o
"arranjei-me"), não de ser um marginal que engana para matar a fome.
Leonardo é "um completo vadio, vadio mestre, vadio tipo", como todo
malandro carioca que se preza, e como todo o pícaro, apenas por
coincidência.
O prof. Antonio Candido foi quem, de maneira exaustiva, analisou
a relação entre Leonardo e a malandragem, no estudo mais abrangente das Memórias – "Dialética da Malandragem" –, de 1970, que aproveitaremos em outra parte.
Sua conclusão é de que Semelhante a vários pícaros, ele é amável e risonho, espontâneo nos atos e estreitamente aderente aos fatos, que o vão rolando pela vida.
Isto o submete, como a eles, a uma espécie de causalidade externa, de
motivação que vem das circunstâncias e que torna o personagem um
títere, esvaziado de lastro psicológico e caracterizado apenas pelos
solavancos do enredo. O sentimento de um destino que motiva a conduta é vivo nas Memórias, onde a comadre se refere à sina que acompanha o afilhado, acumulando contratempos e desmanchando a cada instante as combinações favoráveis. Como os pícaros, ele vive um pouco ao sabor da sorte, sem plano nem reflexão; mas ao contrário deles nada aprende com a experiência. De fato, um elemento importante da picaresca é essa espécie de aprendizagem que amadurece e faz o protagonista recapitular a vida à luz de uma filosofia desencantada. Mais coerente com a vocação de fantoche, Leonardo nada conclui; e o fato do livro ser narrado na terceira pessoa facilita esta inconsciência, pois cabe ao narrador fazer as poucas reflexões morais, no geral levemente cínicas eem todo o caso otimistas, ao contrário do que ocorre com o sarcasmo ácido e o relativo pessimismo dos romances picarescos. O malandro espanhol termina sempre, ou numa resignada mediocridade, aceita como abrigo depois de tanta agitação, ou mais miserável que nunca, no universo do desengano e da desilusão, que marcam fortemente a literatura espanhola do Século de Ouro.
Curtido pela vida, acuado e batido, ele não tem sentimentos, mas
apenas reflexos de ataque e defesa. Traindo os amigos, enganando os
patrões, não tem linha de conduta, não ama e, se vier a casar, casará
por interesse, disposto inclusive às acomodações mais foscas, como o
pobre Lazareto. O nosso Leonardo, embora desprovido de paixão, tem
sentimentos mais sinceros neste terreno, e em parte o livro é a história
do seu amor cheio de obstáculos pela sonsa Luisinha, com quem termina
casado, depois de promovido, reformado e dono de cinco heranças que
lhe vieram cair nas mãos sem que movesse uma palha. Não sendo
nenhum modelo de virtude, é leal e chega a comprometer-se seriamente
para não lesar o malandro Teotoninho Sabiá. Um anti-pícaro, portanto,
nestas e outras circunstâncias, como a de não procurar e não agradar
os "superiores", que constituem a meta suprema do malandro espanhol.
Se o protagonista for assim, é de esperar que o livro, tomado no
conjunto, apresente a mesma oscilação de algumas analogias e
muitas diferenças em relação aos romances picarescos. (Grifo nosso)
3.3. O romantismo excêntrico
Contemporâneas de nossa melhor e mais descabelada poesia ultrarromântica,as Memórias parecem não ter parentesco com o sentimentalismo de Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, Casemiro de Abreu &Cia. Ao contrário, ridicularizam os exageros sentimentais de suas
personagens. Leonardo Pataca "era romântico, como se diz hoje, e babão como se dizia naquele tempo, não podia passar sem uma paixãozinha" (Cap. IV). Esse descompromisso com a idealização heróica ou com os transbordamentos da imaginação e da emoção colocam a obra de Almeida na contramão da corrente formada pelas demais obras do período romântico, o que explica o desinteresse do leitor da época pelas aventuras e desventuras de seu memorando, em completo desacordo com o tom dominante. Alinhavamos, a seguir, alguns aspectos dessa excentricidade.
• O romance sem culpa
A ruptura da tensão bem versus mal que, na ficção romântica,
opunha de forma maniqueísta heróis e vilões, virtudes e vícios. Nas
Memórias as personagens são niveladas de forma divertida, ninguém é
intrinsecamente bom ou mau. O bondoso barbeiro comete perjúrio e se
apropria da herança cuja guarda lhe fora confiada. O aloucado Leonardo
Pataca restitui, intacta, a herança que seu filho recebera do padrinho. O temível Vidigal tem repentes de generosidade e de humana compreensão.
• A "Arraia Miúda" e o "Zépovinbo"
As personagens são extraídas das camadas populares e muitas delas
são anônimas, designadas apenas pela profissão ou grupo social: o
Barbeiro, a Parteira, os meirinhos, as saloias, a Cigana, o Mestre-de-
Reza, o Toma-Largura. Como documento social, observa-se a omissão de dois extratos da sociedade: da elite e da camada trabalhadora, dos escravos negros. São mínimas as referências ao trabalho braçal.
• O narrador neutro e o leitor incluso
O narrador assume uma atitude de surpreendente neutralidade. Não
toma partido de ninguém. Apenas observa e relata, entre irônico e
divertido, a vertiginosa enxurrada de imbroglios, trapalhadas, "trambiques",situações vexatórias e apuros de seu memorando e dos que ocercam, por parentesco, afeição, rivalidade ou obrigação de vigiá-lo.
De maneira informal, como nas crônicas jornalísticas, o narrador
aproxima-se do leitor, incluindo-o, chamando a sua atenção para fatos que julga significativos. Essas referências metalingüísticas a acontecimentos já narrados ou ainda por narrar visam a facilitar a recepção da obra,recapitulando episódios na suposição de que o leitor os tenha esquecidoou não os tenha valorizado devidamente. Cabe lembrar que, em suaversão original, as Memórias foram um folhetim semanal.
Dadas as explicações do capítulo precedente, voltamos ao nosso
memorando, de quem por um pouco nos esquecemos. Apressemo-nos a
dar ao leitor uma boa notícia: o menino desempacara do F, e já se
achava no P, onde por uma infelicidade empacou de novo.
• O ancestral de Macunaíma
Leonardo, o protagonista, não é herói nem vilão. Bastardo, filho de
um beliscão e de uma pisadela, é antes um anti-herói, malandro, vadio,
oportunista, precursor de Pedro Malazarte e, principalmente, de Macunaíma,na linha do "herói-sem-nenhum-caráter", movido não por fundamento sético ou religiosos, mas pela busca do prazer, ou pelo medo da seus atos, ou pela simples oportunidade de se divertir.
O par amoroso Leonardo-Luisinha também é sui generis. Desajeitado,
o memorando é impulsionado por alguma afeição e um indisfarçável
interesse no potencial econômico da heroína, herdeira apatacada de d.
Maria. Luisinha não é particularmente bonita. Ao contrário, é descrita
como desgraciosa e desprovida de maiores atributos físicos ou espirituais.
Não há idealização amorosa.
• A visão carnavalizadora e a precisão descritiva
Almeida é minucioso no registro dos costumes cariocas no período
joanino. As procissões, mesclando o sacro e o profano, a religiosidade, a
festa popular e a vadiagem, a Festa do Divino, o Entrudo, os fados, as
modinhas e lundus, os ritos africanos nos terreiros, a vida forense, os
ofícios populares, as súcias, tudo é registrado pelo narrador que integra
harmoniosamente o documento social da época ao enredo, à ação
romanesca.
Registram os biógrafos que o médico, jornalista e político Manuel
Antônio de Almeida foi membro da diretoria da primeira sociedade
carnavalesca do Rio de Janeiro, o "Congresso das Sumidades Carnavalescas",fundada em 1855, o que sugere a sua convivência com a cultura popular de sua época. Dessa convivência, as Memórias aproveitam o registro numeroso dos instrumentos musicais, das danças, modinhas, fados e lundus, incluindo a transcrição de trechos de três modinhas populares. Ao lado dessa fidelidade à vocação musical e festiva do carioca, registre-se, em outro nível, a visão carnavalizadora da sociedade, a mostrar o avesso das instituições do clero, da justiça, do governo e das famílias. O humor substitui a exaltação sentimental dosromânticos.
• O registro jornalístico e coloquial
A linguagem nada tem de ufanista e se afasta do tom enfático e
adjetivoso dos contemporâneos. Nas intervenções do narrador, é
respeitadora da norma culta, mas, nos diálogos entre as personagens, é
revestida de forte oralidade, reproduzindo lusitanismos e solecismos,
característicos do registro coloquial. É um estilo tosco, direto, sem
efeitos embelezadores, derivado do tom informal de bate-papo, ou da
crônica jornalística. Esse "à vontade" no tratamento lingüístico é, com
insistência, apontado pela crítica, ora como um defeito de composição,
ora como um fato antecipador da linguagem de Lima Barreto, da dos modernistascomo Mário, Oswald, Alcântara Machado, entre outros e, maisrecentemente, do chamado romance ou conto-reportagem, de João
Antônio, José Louzeiro, Reinaldo Moraes, Marcos Rey, Ignácio de
Loyola Brandão e Marcelo Rubem Paiva. A diferença é que nem sempre
estes últimos logram, para além do registro social, a efetivação estética desuas narrativas.
• O realismo ingênuo
Há realismo nas Memórias, contudo um realismo espontâneo,
arcaico. Nada tem de antecipador do Realismo/Naturalismo da segunda
metade do século XIX. Nada tem de cientificista e determinista. Não se
trata do Realismo como programa, como doutrina estético-literária. É um
realismo que se esgota na fidelidade, na transcrição do que é ou do que
foi. Não é crítico nem analítico. É o realismo como uma constante
universal do espírito humano e da arte, que se compraz em traduzir a
realidade, atitude que deriva da natural busca humana da verdade.
4. RESUMO DO ENREDO
Chamado por Antonio Candido de "romance em moto-contínuo", as
Memórias são difíceis de resumir, dada a sucessão vertiginosa de cenas,
acontecimentos e tipos sociais, precariamente amarrados na história de
Leonardo e Luisinha. Por isso optamos por apresentar, capítulo por
capítulo, os incidentes do enredo, acrescentando os comentários que
julgamos pertinentes.
I. Origem, nascimento e batismo
Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da
Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto dos meirinhos –; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração).
As memórias começam por uma caracterização jocosa da vida
judiciária e da hierarquia forense, dos meirinhos aos desembargadores.
Esse quadro social serve de preâmbulo para introduzir a figura de
Leonardo Pataca, de seus antecedentes portugueses, de seu romance
fortuito no navio que o trouxe com Maria da Hortaliça, de que resultou,
sete meses depois, o nascimento do memorando, que recebeu o mesmo
nome do herói. O compadre barbeiro e a comadre parteira levam o recém nascido à pia batismal. Segue-se a divertida caracterização da festa, que o pai queria com a solenidade do minuete e da corte e que descamba rapidamente para a modinha popular.
II.Primeiros infortúnios Narra a infância de Leonardo até os sete anos, suas primeiras traquinagens, simpatias e antipatias, além da especial predileção pelochapéu armado do pai, tomado como espanador de móveis ou do chão.
Segue-se a ruptura do casal Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça, flagrada em. Durante a briga, Leonardo é enxotado com um
pontapé nos fundilhos, ao som do epíteto:
“És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te
acabe a casta. E o primeiro "trauma" do protagonista, que fica então aos cuidados do padrinho barbeiro, com a ajuda da madrinha.
III. Despedida às travessuras
Já na casa do barbeiro, este faz projetos para o futuro do afilhado e
dá início à sua alfabetização. Entretanto, este parecia mais propenso a
divertir-se, contrariando a todos.
Umas vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos
fregueses quando estes se estavam barbeando. Uns enfureciam-se, outros riam sem querer; do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum conato a mais afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava; ele ria-se furtiva e malignamente.
O compadre decide-se pela vida religiosa de seu protegido, e o
Leonardo dá a sua primeira escapadela, acompanhando a Via-Sacra do
Bom Jesus.
IV. Fortuna
Leonardo Pataca amasia-se com uma cigana, que também o
abandona e trai. O velho meirinho apela para um preto velho feiticeiro
para que traga de volta a cigana. Durante a cerimônia são todos
surpreendidos no terreiro pelo Major Vidigal, que leva Leonardo preso.
V. O Vidigal Caracteriza o chefe das milícias, única personagem rigorosamente histórica da narrativa, e expõe o castigo exemplar aplicado aos supersticiosos, que receberam chibatadas e foram obrigados a dançar várias vezes.
VI. Primeira noite fora de casa
Leonardo desaparece em meio a uma procissão e, acompanhado de
dois meninos de rua, vai parar num acampamento de ciganos. Segue-se a caracterização da dança do fado. Graças à comadre, Leonardo Pataca é posto em liberdade.
VII. A comadre
O narrador detém-se na caracterização da parteira, misto de beata e
fofoqueira, de parteira e benzedeira, sempre atenta às fofocas e cochichos das beatas.
VIII. O pátio dos bichos
Caracterização da sala onde ficam os oficiais do reino, à espera das
ordens reais. A comadre intercede junto ao tenente-coronel a favor do
velho meirinho.
IX. O – arranjei-me – do compadre
Retomando uma intervenção antecipadora que o narrador faz no
capítulo III, apresenta-se, agora, a origem do patrimônio do compadre
barbeiro, que se apropriou das economias do capitão do navio que o
trouxe para o Brasil, em vez de entregá-las como prometera, à filha.
X. Explicações
Em um flash-back retrospectivo, o narrador revela as relações entre o
tenente-coronel e Maria da Hortaliça, desvirginada por seu filho. Daí a sua generosidade para com o velho Leonardo.
XI. Progresso e atraso
Detém-se, de início, na vida escolar do memorando, que desencalhara
do F, mas encalhara no P. O barbeiro e a vizinha, que têm opiniões
opostas sobre o caráter de Leonardo, discutem, e o menino, para a
satisfação do padrinho, ridiculariza a vizinha, imitando-a.
XII. A entrada para a escola Leonardo já lia soletrando sofrivelmente. Logo no primeiro dia de escola, pela manhã, recebeu quatro bolos de palmatória por derrubar um tinteiro na calça do colega e rir do mestre; à tarde foram mais doze bolos,por não parar quieto e por atirar um bolo de papel que quase atingiu o mestre. Almeida caracteriza os métodos educacionais da época. Leonardo acaba por abandonar a escola.
XIII. Mudança de vida Com dois anos de escola, Leonardo consegue "ler mal e escrever pior". Desobediente, irreverente, destruidor de material e velhaco, pois vendia tudo o que conseguia, é apelidado "o gazeta-mor", "apanha-bolosmor".
Na Igreja da Sé, faz amizade com o pequeno sacristão e encontra na
vida de coroinha um campo mais vasto para suas diabruras. O compadre
imagina que este fosse um bom caminho para inseri-lo na vida religiosa.
Já de início, o menino vinga-se da vizinha jogando incenso em seu rosto
e derramando-lhe cera de vela derretida na mantilha.
XIV. Nova vingança e seu resultado
O mestre de cerimônias é o padre libidinoso que mantém relações
com a cigana que abandonara Leonardo Pataca. Era "de fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro". Leonardo o faz perder a hora para um sermão importante e o faz revelar sua relação com a cigana.
XV. Estralada
Leonardo Pataca investe, por seu lado, contra a cigana e seu novo
amante, o padre. No aniversário dela, descobre que o mestre de cerimônia estará presente e contrata o capoeira Chico-Juca para criar confusão,avisando de antemão o Major Vidigal. O padre acaba preso, de ceroulas,em situação comprometedora.
XVI. O sucesso do plano O padre, depois da prisão, abandona a cigana; Leonardo Pataca volta a conquistá-la e passam a viver juntos.
XVII. Dona Maria
Após uma caracterização minuciosa das procissões da época,
inclusive com a presença de uma ala de baianas, como nos carnavais de
hoje, o narrador focaliza a figura de d. Maria, gorda, de bom coração,
devotada aos pobres e à religião, e às demandas forenses que eram sua
paixão. O barbeiro e seu sobrinho passam a freqüentá-la.
XVIII. Amores
Leonardo já entra na vida adulta. É um "completo vadio, vadio
mestre, vadio tipo". O narrador, a partir deste capítulo, especifica que o
nosso memorando passa a ser chamado apenas pelo prenome, Leonardo, e seu pai passa a ser designado por Leonardo Pataca. Entra em cena
Luisinha, sobrinha e tutelada de d. Maria, meio desajeitada, mas que
impressiona Leonardo.
XIX. Domingo do Espírito Santo
Após minuciosa caracterização da festa do Divino Espírito Santo,
o narrador se entretém em focalizar a paixão nascente de Leonardo por
Luisinha.
XX. Fogo no campo
Durante o foguetório, Leonardo ousa pegar na mão de Luisinha, o
que, pelos usos da época, era o começo de uma relação íntima.
XXI. Contrariedades
Leonardo se vê muito apaixonado, mas aparece um rival, José
Manuel, interessado no dote da menina, única herdeira de d. Maria.
XXII. Aliança
O compadre e, especialmente, a comadre, armam um plano contra
José Manuel e a favor de seu protegido.
XXIII. Declaração
Finalizando a primeira parte do livro, o autor narra de modo cômico
a declaração de Leonardo a Luisinha, pressionado pelo rival, e após
muitas tentativas e retrocessos.
XXIV. A comadre em exercício
Descreve-se o trabalho da parteira junto a Chiquinha, amásia do
velho Leonardo.
XXV. Trama
A comadre inventa para d. Maria que o rival de Leonardo, José
Manuel, fora o raptor de uma moça no Oratório da Pedra, transformando
no principal suspeito de um rumoroso caso policial.
XXVL. Derrota
D. Maria cai na intriga da comadre e rompe com José Manuel, que
tenta descobrir quem é que o indispunha contra a tutora de Luisinha.
XXVII. O mestre-de-reza
Cego, professor de catecismo, passa a ser o procurador de José
Manuel junto a d. Maria, para desfazer a intriga da comadre.
XXVID. Transtorno
Morre o compadre barbeiro e Leonardo recolhe-se à casa do pai,
passando a morar junto com Chiquinha e o recém-nascido.
XXIX. Pior transtorno
Leonardo e Chiquinha se desentendem. O velho Pataca assume o
partido da mulher, interfere de espadim em riste contra o filho, que foge
desencabrestado, "pondo dez léguas por hora", só da lembrança do
pontapé que levara na infância.
XXX. Remédio aos males
Leonardo reencontra seu antigo camarada sacristão, Tomás da Sé,
companheiro de diabruras, e se junta à sua súcia. Conhece a mulata
Vidinha, com 18 a 20 anos, cantora de modinhas e tocadora de viola.
Apaixona-se por ela.
XXXI. Novos amores
Leonardo agrega-se à "sua gente". Sua nova família é formada por
duas irmãs viúvas, uma com três filhos ferroviários e a outra com três
filhas, sendo uma delas, Vidinha. Há ainda agregados e vizinhos, que se
tornam os novos companheiros das patuscadas.
XXXII. José Manuel Triunfo
A intriga da comadre é desfeita pelo Mestre-de-Reza, que a
desmascara perante d. Maria.
XXXIII. O agregado
Instalado na casa de Tomás da Sé como agregado, Leonardo provoca
rivalidade com um dos primos, que desanda em grossa pancadaria.
Leonardo decide sair da casa, mas as velhas não consentem.
XXXIV. Malsinação
A comadre e as duas viúvas se entretêm com as desditas de
Leonardo, que em meio a uma patuscada cai nas garras do Major Vidigal
por vadiagem, denunciado que fora pelos primos rivais.
XXXV. Triunfo completo de José Manuel
José Manuel casa-se com Luisinha após êxito em uma causa forense
patrocinada pela velha. Luisinha aceita o pretendente com indiferença.
XXXVI. Escapula
Leonardo, conduzido por Vidigal à Casa da Guarda, foge no
caminho e volta para a casa de Vidinha. O Major, ridicularizado em
público, promete vingança.
XXXVII. Vidigal desapontado
“Passarinho foi-se embora // Deixou-me as penas na mão" – era o
refrão cantado pelos granadeiros e pela multidão para ridicularizar o
Vidigal, que planeja a recaptura. A comadre, ignorando a fuga de seu
protegido, chora ajoelhada aos pés do Major e suplica pelo afilhado.
XXXVIII. Caldo entornado
A comadre dirige-se à casa das velhas e exige de Leonardo que
procure emprego e abandone a vadiagem. Consegue para ele emprego naUc haria Real (depósito de mantimentos), que Leonardo alivia do
patrimônio Real. Na Ucharia, mora o Toma-Largura com sua mulher, por
quem Leonardinho se interessa, esquecendo-se de Vidinha. O Toma-
Largura flagra Leonardo tomando um caldo com sua mulher e o
escorraça de casa e, em seguida, do emprego.
XXXIX. Ciúmes
Vidinha vinga-se da mulher do Toma-Largura e Leonardo é
capturado pelo Major Vidigal. Constrangido, a sentar praça como
granadeiro no Regimento Novo, requisitado pelo Major para tarefas
policiais.
Vidinha vai tirar satisfação na casa do Toma-Largura, cuja amásia
dera em cima de seu Leonardo.
XLI. Represálias
Todos se põem à procura de Leonardo. Suspeitam que tenha sido
preso pelo Major. O Toma-Largura faz a corte à Vidinha, com apoio das
velhas. Organizam uma patuscada em Cajueiros, o Toma-Largura se
embebeda e aparece o temível Vidigal, que manda Leonardo, agora
transformado em granadeiro, prender o rival embriagado.
XLII. O Granadeiro
Concretizada a vingança contra o Toma-Largura, deixado bêbado na
calçada, o Leonardo oscila entre as funções de soldado e a vocação de
vadio. Os gaiatos da cidade inventaram um fado com o seguinte
estribilho: "Papai lelê, seculorum", no qual o Major figurava como
morto, estendido no meio da sala, e os patuscos cantavam formando roda,cantigas alusivas. Leonardo, fazendo o papel de morto, é pilhado
novamente pelo Vidigal.
XLIII. Novas diabruras
Desta vez, não houve punição e o memorando é encarregado da
prisão de Teotônio, cantador e tocador de modinhas e também banqueiro de jogos proibidos. A captura dar-se-ia na casa do velho Leonardo
Pataca, por ocasião do batizado de seu filho. O jovem Pataca, bem recebido em seu antigo lar , revela a missão de que fora incumbido e arma um plano para dar fuga a Teotônio.
XLIV. Descoberta
Um amigo indiscreto, ao cumprimentar Leonardo na frente do Major
pela "façanha", acarreta sua prisão imediata. José Manuel, "marido dragão"de Luisinha, revela-se péssimo companheiro e se desentende com d.
Maria acerca de uma demanda. A protetora de Luisinha reconcilia-se com a comadre.
XLV. Empenhos
A comadre intercede inutilmente junto ao Major pelo seu afilhado
que, preso, seria chibatado. A tentativa é inútil. Une-se, então, a d. Maria e vão procurar Maria-Regalada, ex-amante do Major. "Já naquele tempo (e dizem que é defeito nosso) o empenho, o compadresco, eram uma mola real de todo o movimento social”, observa lucidamente o narrador.
XLVI. As três em comissão
D. Maria, a comadre e Maria-Regalada se despacham em comissão
para a casa do Major, em favor de Leonardo. Primeiramente, a comadre
tenta o argumento "Ora, a lei ...o que é a lei, se o senhor Major quiser?
...". Este argumento não funcionou. Em seguida, as três caem em prantos pelo protegido. O Major permanece inflexível. Finalmente, o argumento decisivo: Maria-Regalada chama o Major para um canto e, em segredo, propõe morarem juntos. O resultado não se fez esperar.
XLVII. A morte é juiz No regresso de d. Maria, ela recebe notícia de que José Manuel morrera repentinamente de um ataque apoplético, depois de um entrevero forense, com o procurador de d. Maria. Solto, Leonardo volta uniformizado como sargento da Companhia de Granadeiros e reencontra Luisinha. Reatam e despedem-se com um aperto de mão "bastante para dar que falar ao mundo inteiro".
XLVIII. Conclusão feliz
Após a missa de sétimo dia, d. Maria entre suas rezas planejava o
futuro de Luisinha, agora viúva e apatacada. O casamento com Leonardo enfrentava o obstáculo de que, naquela época, soldado não podia se casar.
Levam o problema ao Major, agora vivendo com Maria-Regalada. Uma
semana depois, por influência da mulher, o memorando obtém baixa na
tropa de linha e é, simultaneamente, nomeado para o nada desprezível
posto de sargento de milícias. Recebe, ainda, de seu pai, a herança do
padrinho. Terminado o luto, advém o final feliz e o casamento com
Luisinha. Morrem, depois, d. Maria e Leonardo Pataca, e o narrador
conclui: "uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos
leitores, fazendo aqui ponto final”.
5. A DIALÉTICA DA MALANDRAGEM
O UNIVERSO DA ORDEM E
O UNIVERSO DA DESORDEM
A leitura das Memórias, como formalização estética de
circunstâncias de caráter social profundamente significativas, encontram no estudo do Prof. Antonio Candido, "Dialética da Malandragem", in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1970, n. 8, pp.67-88, texto básico para a compreensão da natureza popular e sociológica da obra de Manuel Antônio de Almeida e para a avaliação da eficiência e durabilidade com que atua sobre a imaginação dos leitores. Transcrevemos, fragmentariamente, algumas conclusões
desse estudo.
Embora elementares como concepção de vida e caracterização dos
personagens, as Memórias são um livro agudo como percepção das
relações humanas tomadas em conjunto. Se não teve consciência nítida,
É fora de dúvida que o autor teve maestria suficiente para organizar
certo número de personagens segundo intuições adequadas da realidade
social.
Tomemos como base o personagem central do livro, Leonardo
Filho, imaginando que ocupa no respectivo espaço uma posição também
central; à direita está sua mãe, à esquerda seu pai, os três no mesmo
plano. Com um mínimo de arbítrio podemos dispor os demais
personagens, mesmo alguns vagos figurantes, acima e abaixo desta
linha equatorial por eles formada. Acima estão os que vivem segundo
normas estabelecidas, tendo no ápice o grande representante delas,
Major Vidigal; abaixo estão os que vivem em oposição ou pelo menos
integração duvidosa em relação a elas. Poderíamos dizer que há, deste
modo, um hemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo da
desordem, funcionando como dois ímãs que atraem Leonardo, depois de
terem atraído seus pais. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra
dos dois pólos, enquanto Leonardo vai crescendo e participando ora de
um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo pólo convencionalmente positivo.
Sob este aspecto, pai, mãe e filho são três nódulos de relações,
positivas e negativas sendo que os dois primeiros constituem uma
espécie de prefiguração do destino do terceiro. Leonardo Pataca, o pai,
faz parte da ordem, como oficial de justiça; e apesar de ilegítima, sua
relação com Maria da Hortaliça é habitual e quase normal segundo os
costumes do tempo e da classe. Mas depois de abandonado por ela,
entra num mundo suspeito por causa do amor pela Cigana, que o leva
às feitiçarias proibidas do Caboclo do Mangue, onde o Major Vidigal o
surpreende para metê-lo na cadeia. Ainda por causa da Cigana promove
o sarilho em sua festa, contratando o desordeiro Chico-Juca, o que
motiva nova intervenção do Vidigal e expõe a vergonha pitoresca de um
padre, o Mestre de Cerimônias. Mais tarde, a Cigana passa a viver com
Leonardo Pataca, até que finalmente, já maduro, ele forme com a filha
da Comadre, Chiquinha, um casal estável, embora igualmente desprovido
de bênção religiosa, como (repitamos) podia ser quase normal
naquele tempo entre as camadas modestas. Assim, Leonardo Pai,
representante da ordem, desce a sucessivos círculos da desordem e volta em seguida a uma posição relativamente sancionada, tangido pelas intervenções pachorrentas e brutais do Major Vidigal, – personagem que existiu e deve ter sido fundamental numa cidade onde, segundo um observador da época, "há que evitar sair sozinho à noite e ser mais atento à sua segurança do que em qualquer outra parte, porque são freqüentes os roubos e crimes, apesar de a polícia ser lá tão
encontradiça como areia no mar ".
A vida de Leonardo Filho será igualmente uma oscilação entre os
dois hemisférios", com maior variedade de situações.
Se analisarmos o sistema de relações em que está envolvido,
veremos primeiro a atuação dos que procuram encaminhá-lo para a
ordem: seu padrinho, o Compadre; sua madrinha, a Comadre. Através
deles entra em contacto com uma senhora bem posta na vida, Dona
Maria, que se liga por sua vez a um próspero intrigante, José Manuel,
acolitado pelo cego que ensina doutrina às crianças, o Mestre de Reza;
que se liga sobretudo à sobrinha Luisinha, herdeira abastada e futura
mulher de Leonardo, depois de um primeiro casamento com o dito José
Manuel. Estamos no mundo das alianças, das carreiras, das heranças,
da gente de posição definida: em nível modesto, o Padrinho barbeiro;
em nível talvez intermédio, a Vizinha; em nível mais elevado, Dona
Maria. Todos estão do lado positivo que a polícia respeita e cujas festas
o Major Vidigal não vai rondar.
Vista deste ângulo, a história de Leonardo Filho é a velha história
do herói que passa por diversos riscos até alcançar a felicidade, mas
expressa segundo uma constelação social peculiar, que a transforma em
história do rapaz que oscila entre a ordem estabelecida e as condutas
transgressivas, para finalmente integrar-se na primeira, depois de
provido da experiência das outras. O cunho especial do livro consiste em
certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do “homem como
ele é", mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativa
equivalência entre o universo da ordem e o da desordem; entre o que se
poderia chamar convencionalmente o bem e o mal.
Na construção do enredo esta circunstância é representada
objetivamente pela atitude de espírito com que o narrador expõe os
momentos de ordem e de desordem, que acabam igualmente nivelados
ante um leitor incapaz de julgar, porque o autor retirou qualquer escala
necessária para isto. Mas há algo mais profundo, que ampara as
camadas superficiais de interpretação: a equivalência da ordem e da
desordem na própria economia do livro, como se pode verificar pela
descrição das situações e das relações. Tomemos apenas dois exemplos.
Leonardo gosta de Luisinha desde menino, desde o belo episódio
do "Fogo no Campo", quando vê o seu rostinho acanhado de roceira
transfigurado pela emoção dos rojões coloridos. Mas como as circunstâncias (ou, nos termos do livro, a “sina") a afastam dele para o
casamento convencional com José Manuel, ele, sem capacidade de sofrer (pois ao contrário do que diz o narrador não tem a fibra amorosa do pai), passa facilmente a outros amores e à encantadora Vidinha. Esta lembra, pela espontaneidade dos costumes, a moreninha “amigada" com o tropeiro, que amenizou a estadia do mercenário alemão, Schlichthorst no Rio daquele tempo, cantando modinhas sentada na esteira, junto coma mãe complacente.
Luisinha e Vidinha constituem um par admiravelmente simétrico. A
primeira, no plano da ordem, é a mocinha burguesa com quem não há
relação viável fora do casamento, pois ela traz consigo herança,
parentela, posição e deveres. Vidinha, no plano da desordem, é a mulher
que se pode apenas amar, sem casamento nem deveres, porque nada
conduz além da sua graça e da sua curiosa família sem obrigação nem
sanção, onde todos se arrumam mais ou menos conforme os pendores doinstinto e do prazer. É durante a fase dos amores com Vidinha, ou logoapós, que Leonardo se mete nas encrencas mais sérias e pitorescas,como que libertado dos projetos respeitáveis que o padrinho e a madrinha tinham traçado para a sua vida.
Ora, quando o "destino" o reaproxima de Luisinha, providencialmente
viúva, e ele retoma o namoro que levará direto ao casamento,
notamos que a tonalidade do relato não fica mais aprovativa e, pelo
contrário, que as seqüências de Vidinha têm um encanto mais cálido.
Como Leonardo, o narrador parece aproximar-se do casamento com a
devida circunspecção, mas sem entusiasmo.
Nessa altura, comparamos a situação com tudo que sabemos dos
seres no universo do livro e não podemos deixar de fazer uma
extrapolação. Dada a estrutura daquela sociedade, se Luisinha pode vir
a ser uma esposa fiel e caseira, o mais provável é que Leonardo siga a
norma dos maridos e, descendo alegremente do hemisfério da ordem,
refaça a descida pelos círculos da desordem, onde o espera aquela
Vidinha ou outra equivalente, para juntos formarem um casal
suplementar, que se desfará em favor de novos arranjos, segundo os
costumes da família brasileira tradicional. Ordem e desordem, portanto,
extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis, que
fazem do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, do professor de
religião um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das
bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimas situações honradas,
dos casamentos corretos negociatas escusas.
"Tutto nel mondo è burla", – cantam Falstaff e o Coro para
resumir as confusões e peripécias no final da ópera de Verdi. “Tutto nel
mondo è burla", parece dizer o narrador de Memórias de um sargento de
milícias, romance que tem traços de ópera bufa. Tanto assim, (e
chegamos ao segundo exemplo), que a conclusão feliz é preparada por
uma atitude surpreendente do Major Vidigal, que no livro é a
encarnação da ordem, sendo manifestação de uma consciência exterior,
única prevista no seu universo. De fato, a ordem convencional a que
obedecem os comportamentos, mas a que no fundo permanecem
indiferentes as consciências, é aqui mais do que em qualquer outro
lugar o policial na esquina, isto é, Vidigal, com a sua sisudez, seus
guardas, sua chibata e seu relativo fair-play.
Ele é delegado de um mundo apenas entrevisto durante a narrativa,
quando a Comadre sai a campo para obter a soltura de Leonardo
Pataca. Como todos sabem, vai pedir a proteção do Tenente-Coronel,
membro da guarda caricata de velhos oficiais, que cochilam, numa sala
do Palácio Real. O Tenente-Coronel por sua vez busca o empenho do
Fidalgo (que vive com seu capote e os seus tamancos numa casa fria e
mal guarnecida), para que este fale ao Rei. O Rei, que não aparece mas
sobrepaira como fonte de tudo, é que falará com Vidigal, instrumento
da sua vontade. Mais do que um personagem pitoresco, Vidigal encarna
toda a ordem; por isso, na estrutura do livro é um fecho de abóboda e,
sob o aspecto dinâmico, a única força reguladora de um mundo solto,
pressionando de cima para baixo e atingindo um por um os agentes da
desordem. Ele prende Leonardo Pai na casa do Caboclo e o Mestre de
Cerimônias na da Cigana. Ele ronda o baile do batizado de Leonardo
Filho e intervém muitos anos depois na festa de aniversário de seu
irmão, conseqüência de novos amores do pai. Ele persegue Teotoninho
Sabiá, desmancha o piquenique de Vidinha, atropela o Toma-Largura,
persegue e depois prende Leonardo Filho, fazendo-o sentar praça na
tropa. O seu nome faz tremer e fugir.
Sendo assim, quando a Comadre resolve obter o perdão do
afilhado é a Vidigal que pensa recorrer, por meio de uma nova série de
mediações muito significativas dessa dialética da ordem e da desordem
que se está procurando sugerir. Modesta socialmente, enredeira e
complacente, reforça-se procurando a próspera Dona Maria, que seria
empenho forte para o representante da lei, sempre acessível aos
proprietários bem situados. Mas Dona Maria vira habilmente o leme
para outra banda e recorre a uma senhora de costumes que haviam sido
fáceis, como se dizia quando eles ainda eram difíceis. E é com a pura
ordem de um lado, encarnada em Dona Maria, e de outro a desordem
feita ordem aparente, encarnada em sua pitoresca xará Maria Regalada,
que a Comadre parte para assaltar a cidadela ríspida, o Tutu geral, o
desmancha-prazeres do Major.
A cena é digna de um tempo que produziu Martins Pena. Toda a
gente lembra de que modo, para surpresa do leitor, Vidigal é declarado
"babão" e se desmancha de gosto entre as saias das três velhotas. Como resistisse, enfronhado na intransigência dos policiais conscienciosos, Maria Regalada o chama de lado e lhe segreda qualquer coisa. Ao que parece, promete ir viver com ele ou, pelo menos, estar de novo ao seu dispor. A fortaleza da ordem vem abaixo ato contínuo e não apenas solta Leonardo, mas dá-lhe o posto de sargento, que aparecerá no título do romance e com o qual, já reformado na segunda linha, casará triunfalmente com Luisinha, enfeixando cinco heranças para dar maior solidez à sua posição no hemisfério positivo.
Posição de tal modo firme, que poderá, como sugerimos, baixar
eventualmente ao mundo agradável da desordem, agora com o exemplo
supremo do Major Vidigal, que cedeu ao pedido de uma dama galante
apoiada por uma dama capitalista, em suave conluio dos dois
hemisférios, por iniciativa de uma terceira dama, que circula livremente
entre ambos. Ordem e desordem se articulam portanto solidamente; o
mundo hierarquizado na aparência se revela essencialmente subvertido,
quando os extremos se tocam e a habilidade geral dos personagens é
justificada pelo escorregão que traz o Major das alturas sancionadas da
lei para complacências duvidosas com as camadas que ele reprime sem
parar.
Há um traço saboroso que funde no terreno do símbolo essas confusões
de hemisférios e esta subversão final de valores. Quando as
mulheres chegam à sua casa (Dona Maria na cadeirinha, as outras se
esbofando ao lado), o Major aparece de chambre de chita e tamancos,
num desmazelo que contradiz o seu aprumo durante o curso da
narrativa. Atarantado com a visita, desfeito em risos e arrepios de
erotismo senil, corre para dentro e volta envergando a casaca do
uniforme, devidamente abotoada e luzindo em seus galões, mas com as
calças domésticas e os mesmos tamancos batendo no assoalho. E aí
temos o nosso ríspido dragão da ordem, a consciência ética do mundo,
reduzido a imagem viva dos dois hemisférios, porque nesse momento
está realmente equiparado a qualquer dos malandros que perseguia: aos
dois Leonardos, a Teotoninho Sabiá, ao Toma-Largura, ao Mestre de
Cerimônias. Como este, que, ao aparecer contraditoriamente de solidéu
e ceroulas no quarto da Cigana, misturava em signos burlescos a
majestade da Igreja e as doçuras do pecado, ele agora é farda da
cintura para cima, roupa caseira da cintura para baixo, calçado vulgar
nos pés, – encouraçando a razão nas bitolas da lei e desafogando o
plexo solar nas indisciplinas amáveis.
Este traço dá o sentido profundo do livro e do seu balanceio
caprichoso entre ordem e desordem. Tudo se arregla então num plano
mais significativo que o das normas convencionais; e nós lembramos que
o bom, o excelente padrinho, se "arranjou” na vida perjurando, traindo
a palavra dada a um moribundo, roubando aos herdeiros ouro que o
mesmo lhe confiara. Mas este ouro não serviu para ele se tornar um
cidadão honesto e, sobretudo, prover Leonardo? "Tutto nel mondo è
burla".
É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas Memórias é
sugestiva, não tanto por causa das descrições de festejos ou indicações de usos e lugares; mas porque manifesta num plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e de desordem funcionando como correlativo ao que se manifestava na sociedade daquele tempo.
Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por
uma desordem vivaz, que antepunha vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia. Sociedade na qual uns poucos
livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as
sobras do parasitismo, dos expedientes, da munificiência, da sorte ou do
roubo miúdo. Suprimindo o escravo, Manuel Antônio suprimiu quase
totalmente o trabalho; suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os
controles do mando. Ficou o ar de jogo dessa organização bruxuleante
fissurada pela anomia, que se traduz na dança dos personagens entre
lícito e ilícito, sem que possamos afinal dizer o que é um e o que é o
outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma
naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos
prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira
metade do século 19. Romance profundamente social, pois, não por ser
documentário, mas por ser construído segundo o ritmo geral da
sociedade, vista através de um dos seus setores. E sobretudo porque
dissolve o que há de sociologicamente essencial nos meandros da
construção literária.
O gráfico que reproduzimos, e que ilustra o estudo transcrito,
permite visualizar o emaranhado de pressões e relações que aproximam os hemisférios da ordem e da desordem e é um bom exercício de
recapitulação dos incidentes da narrativa.
LEITURA
CAPÍTULO I
ORIGEM, NASCIMENTO E BATISMO
Era no tempo do rei1.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da
Quitanda cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto
dos meirinhos – e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de
encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores 3. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos
de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas. Os
meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm de
imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos, nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Tratavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado. Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível – Dou-me por citado. – Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e durante a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número
de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz,
inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém
passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbulo, porém todo o
conteúdo e suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.
Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil
dessa abençoada época veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam – cadeiras de campanha – um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equação meirinha pregada na esquina havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam; e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia. Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.
Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe
em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil.
Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o que, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado, ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.
Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos:
foram os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente
os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um
filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e
vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu,mamou duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história.
que o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o
padrinho houve suas dúvidas: o Leonardo queria que fosse o Sr. juiz;
porém teve de ceder a instâncias da Maria e da comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. Já se sabe que houve nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram todos dalém-mar, cantavam ao desafio, segundo seus costumes; os convidados da comadre, que eram todos da terra, dançavam o fado. O compadre trouxe a rabeca, que é, como se sabe, o instrumento favorito da gente do ofício. A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse da gente do oficio.
A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos, e
propôs que se dançasse o minuete26 da corte. Foi aceita a idéia, ainda que houvesse dificuldade em encontrarem-se pares. Afinal levantaram-se uma gorda e baixa matrona, mulher de um convidado; uma companheira desta, cuja figura era a mais completa antítese28 da sua; um colega do Leonardo, miudinho, pequenino, e com fumaças de gaiato29, e o sacristão
da Sé, sujeito alto, magro e com pretensões de elegante. O compadre foi que tocou o minuete na rabeca; e o afilhadinho, deitado no colo da
Maria, acompanhava cada arcada com um guincho e um esperneio. Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso, e fosse obrigado a recomeçar outras tantas.
Depois do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira
aferventou, como se dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e machete: o Leonardo, instado pelas senhoras, decidiu-se a romper a parte lírica do divertimento. Sentou-se num tamborete, em um lugar isolado da sala, e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo,em trajes do ofício, de casaca, calção e espadim, acompanhando com um monótono zum-zum nas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha pátria. Foi nas saudades da terra natal que achou inspiração para o seu canto, e isto era natural a um bom Português, que o era ele. A modinha era assim:
Quando estava em minha terra,
Acompanhado ou sozinho,
Cantava de noite e de dia
Ao pé dum copo de vinho!
Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo; somente
quem não pareceu dar-lhe todo o apreço foi o pequeno, marcando-lhe o
compasso a guinchos e esperneios. À Maria avermelharam-se-lhe os
olhos, e suspirou.
O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentarse
a brincadeira, foi o adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi
burburinho, que depressa passou à gritaria, e ainda mais depressa à
algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viam-se passar através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto.
A festa acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a
bênção ao afilhado e pondo-lhe no cinteiro um raminho de arruda.
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