HILDA FURAÇÃO
Análise da canção de abertura da minissérie

Este mês farei uma análise da música resposta ao tempo, de Aldir Blanc, interpretada pela voz inigualável de Nana Caymmi. A canção ficou nacionalmente conhecida como tema de abertura da minissérie Hilda Furação.Análise da canção de abertura da minissérie

Ao meu ver, a musica é, na verdade, um diálogo entre dois personagens - o narrador da história e o tempo. Sim, o tempo - que ri, bate à porta, tem inveja - se personifica e conversa com o narrador. Apesar de ser humanizado, o tempo não é um ser propriamente dito pois a atemporalidade é sua característica intrínseca, senão não seria tempo.
Confuso? Vamos analisar as principais estrofes para saber quem é o tempo.
Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho
Pra ter argumento
É o tempo
Eu bebo um pouquinho
Pra ter argumento
Sabe a imagem que me vem à mente? De uma pessoa que se olha no espelho e relembra sua história ao notar, pela primeira vez, as rugas no rosto. Só então, depois de muito 'tempo', descobre quem realmente é. Isso só podemos fazer com a ajuda do tempo, quando recorremos ao passado e lembramos coisas que gostaríamos de esquecer - essas são as batidas na porta da frente.
A bebida é uma metáfora a um momento de êxtase, no qual o narrador pode ignorar o que está acontecendo, pois é um momento perturbador; ou encarar o desafio construindo uma série de justificativas - argumentos - que o mantenha no diálogo com o tempo.
Mas fico sem jeito
Calado, ele ri
Ele zomba
Do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei
Calado, ele ri
Ele zomba
Do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei
O tempo se personifica e tem até senso de humor - por que não?
Aqui está provado que o narrador não gostou do que viu no espelho, nem da visita inesperada do tempo: este ri, zomba, e ainda diz que sabe passar pelos amores. Este 'passar' é como se ele apenas visse um filme sobre esses amores: o narrador é personagem real e o tempo é telespectador ficcional. Daí a frieza e o humor negro do tempo. Há aqui um paradoxo: o sarcasmo é uma característica do ser humano, mas o sofrimento dos amores também, e isso o tempo não pode viver.
Vale lembrar que, quando falo de amor, é um amor entre seres, não é aquele amor de homem e mulher que vemos na tv, é um amor que transcende a isso, principalmente ao tempo. Chico Buarque costuma dizer que podemos amar alguém e depois deixá-lo (o amor) para os outros - é como herdar uma coisa e depois dar de herança. Isso é transcender ao tempo.
Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo
Sinto o vento
Há folhas no meu coração
É o tempo
Já que o narrador é obrigado ao voltar no tempo, ou melhor, para o tempo, ele tenta se lembrar de coisas boas - esse é o argumento dele. Os dois primeiros versos indicam uma lembrança agradável, tanto é que o narrador materializa o momento e consegue sentir a brisa do vento. É como se ele fosse transportado para este cenário paradisíaco.
Mas as folhas no coração quebram este vislumbre. Imagino que sejam folhas de outono, ressecadas, que já viveram seu frescor e depois morreram. Observe a mudança repentina de estação - do verão, símbolo de calor, de amores temporários e intensos; ao outono, quando as flores ressecam e caem.
Enfim, as folhas ressecadas pousam no coração do narrador e este diz 'e o tempo'. O tempo tem esse poder de nos transportar ao passado, mas também e suficientemente cruel para nos fazer voltar ao presente.
Recordo um amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei
A perda do amor é mais um motivo do sarcasmo do tempo, mas será que é sarcasmo mesmo? Será que ele também não gostaria de viver isso? É claro que ninguém quer viver a perda de um amor, mas antes da perda havia dois, juntos, sentindo esse amor. Quem não gostaria de viver isso?
Quando o tempo diz que ele e o narrador são iguais é porque, no final das contas, os dois são incapazes de viver com alguém que não eles mesmos, então sempre acabam juntos - ou solitários, se você julgar que o tempo não é uma companhia.
E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos
Aqui parece que o tempo é um fantasma que circunda o narrador. Isso é ainda mais notável na melodia da canção, logo depois que Nana canta 'e gira em volta de mim'. Isso quer dizer que o tempo se faz presente em todos os momentos. É como se ele tivesse um controle remoto que pudesse avançar ou voltar à vida de sua vitima. Digo vítima porque ele diz ser o motivo dos amores acabados - é o tempo que pode apagar as lembranças desses amores e as pessoas ficam, por fim, sozinhas. O amor, antes denso, vira um sussurro.
Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto
Aqui a voz do narrador ganha força, é a resposta ao tempo.
O amor perdido ainda tem sua essência de amor quando está presente na nossa memória. Se o tempo apaga o caminho que nos leva a essa lembrança, se aprisiona um sentimento que não podemos resgatar, é sinal de que o amor não existe mais. Mas e aquele amor forte o bastante para transcender ao tempo? Quem o vive é quem o liberta.
E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver
O tempo se rói de inveja do que não pode viver: ele registra, sussurra, bate à porta, revela verdades e emoções, mas jamais as sente. Lembra quando eu falei do sarcasmo? A ironia, na verdade, era pano de fundo para o que o tempo queria ser - alguém. Alguém que pudesse apenas sentir.
Quando o narrador diz que morre de amor para tentar reviver, trata-se de algo existencial: os amores que vivemos e como lidamos com eles definem quem somos. Somos frutos da herança de relações e amores. Sem eles, quem seríamos? É isso que o tempo tenta aprender - a amar, amar para ser alguém e de alguém.
No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer
Aqui é o fim. Mas esse fim não é apenas o fim da canção, também é o fim de um processo vivido pelo narrador. Como aprendemos na aula de ciências, os seres nascem, desenvolvem-se e morrem. E o que podemos dizer do tempo? Ele é infinito, em eterno processo de maturação e de aprendizagem. Enquanto podemos esquecer de certas memórias em nossos momentos de êxtase, ou pela própria presença do tempo, ele não tem esse privilégio.
O tempo resgata a memória dos outros, mas não tem uma memória para chamar de sua.