GÊNERO E LITERATURA INFANTIL

Lúcia Tavares Leiro

UNEB

Selecionei para esta comunicação quatro livros de escritoras brasileiras: dois de Ana Maria Machado: Dona Baratinha, ilustrado por Maria Eugênia, e publicado pela Editora FTD em 2004, e Pena de Pato e Tico-Tico, ilustrado por Claudius e editado pela Salamandra em 1984; um de Marta Lagarta: Mamãe Bela, Mamãe Fera ilustrado por Sami e Bill e editado pela Editora Prumo em 2010 e, por fim, um de Ruth Rocha: Quem Tem Medo de Dizer Não?, ilustrado por Mariana Massarani, editado pela Editora Global em 2002. Estes livros fazem parte de um momento importante da literatura infantil contemporânea porque as escritoras não se eximiram de inscrever uma tônica político-formativa de gênero, e, também, não se esquivaram de trabalhar a linguagem no que ela tem de mais poético, criativo e lúdico. Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Marta Lagarta estendem à crítica feminista um irrecusável convite às páginas de suas produções e, mesmo correndo o risco de ser tocada por alguma varinha de condão, declinar ao convite seria como perder uma grande aventura humana, pois se há uma coisa que une essas quatro produções literárias, é o compromisso com a emancipação do sujeito, especificamente, as mulheres, ou para ser mais específica, as meninas e adolescentes.

Para esta reflexão, uso os conceitos de discurso, contexto, recepção, intertextualidade e interdiscursividade da Análise de Discurso Crítica e o conceito de gênero das teorias feministas. Esta combinação conceitual tem sido apresentada nos meios acadêmicos como Análise de Discurso Crítica feminista (ADCf), uma abordagem crítica nos estudos das linguagens sobre as performances de gênero em uma situação particular, cotidiana. Esta performatização articula três dimensões (FAIRCLOUGH): o texto, a prática discursiva e a prática social. A primeira dimensão refere-se aos elementos textuais, considerando os elementos linguísticos ou não linguísticos, a referência a outros textos, a forma de apresentação visual, entre outros aspectos. A segunda dimensão corresponde aos elementos enunciativo-ideológicos responsáveis pela definição do tema e pelo tratamento dado a ele, além de referir-se ao valor conferido à prática social, aos gestos responsivos, entre outros aspectos. A terceira dimensão refere-se ao evento social propriamente dito, o rito que aloca o sujeito dentro da lógica social, portanto das redes socioculturais da significação.

Do ponto de vista da dimensão de gênero, cabe-nos investigar o discurso sobre os papeis sociais masculinos e femininos, mas, também os gêneros em discurso, isto é, os sujeitos no momento de sua performatização. Considerando a tridimensionalidade sugerida por Fairclough, trago a proposta da ADCf aplicado a este estudo para analisar o discurso dos textos literários infantojuvenis tendo em vista a dimensão social de gênero.

O texto Dona Baratinha é uma adaptação de um conto muito conhecido no Brasil e que foi trazido de Portugal no final do século XIX. Segundo Aguera,

O conto História da Dona Baratinha é um conto popular português que faz parte da tradição oral. Ele foi publicado pela primeira vez em 1890 com o título original História da Carochinha pelo linguista e pedagogo português Adolfo Coelho que recolheu e transcreveu diversos contos portugueses tradicionais. Em 1896, o jornalista carioca Alberto Figueiredo Pimentel publica no Brasil pela Livraria do povo de Pedro Silva Quaresma a coletânea Os contos da Carochinha, reunindo 61 contos, entre eles o conto intitulado História da Dona Baratinha. (AGUERA, 2010, p. 01)

A fábula original conta a história de Dona Baratinha que achou uma moeda enquanto arrumava a casa. Em seguida, foi à procura das vizinhas que, sabendo do acontecido, encorajaram Dona Baratinha a procurar um noivo. Muitos pretendentes apareceram, mas Dona Baratinha negou todos, exceto o Rato. Este, no dia do casamento, sentiu um cheiro de feijão e resolveu aproximar-se da panela, até que caiu e morreu.

A história não termina aqui. Até este ponto a versão portuguesa assemelha-se ao reconto de Ana Maria Machado, exceto pelo fato de a autora brasileira ter retirado as vizinhas da história, representantes, podemos inferir, do discurso hegemônico que regula o pensamento e as ações do sujeito. Esta supressão pode significar que os papeis sociais já estão internalizados pela personagem, muito embora saibamos que essa cristalização resulta de um processo de sedimentação ideológica formada pelos discursos repetitivos que, uma vez valorizados e legitimados socialmente, acabam norteando as ações dos sujeitos. A Dona Baratinha de Ana Maria Machado não precisa mais consultar as vizinhas porque ela já “sabe” o que fazer. Este isolamento é importante para entender o processo de emancipação da personagem, que de reprodutora do discurso hegemônico, isto é, da cultura generalizada de gênero, passa a confrontá-lo, sugerindo outra forma de realização pessoal. O conflito da personagem decorre da interação entre o discurso patriarcal e feminista, embora este só fique explícito no final da história, quando a personagem descobre que a felicidade não depende de uma realização amorosa. Se no texto original, o discurso é patriarcal, sexista, no de Machado é antipatriarcal, feminista. Ana Maria Machado opta por suprimir uma voz exterior à personagem para enfraquecê-la ou, ainda, torná-la menos importante, para incrustá-la na personagem e mostrar a leitora que o destino depende das escolhas que cada um faz, isto é, as pessoas podem refratar (desviar) o discurso hegemônico e construir outras formas de viver. E é justamente no desfecho do reconto que a autora materializa o que já sugere desde o início.

Na versão original, Dona Baratinha fica sozinha e triste, punida por ser tão exigente. A solidão resulta da visão moldada pela ideologia burguesa do século XIX sobre os papeis sociais das mulheres, educadas para o casamento. Evidentemente que a mulher solteira era uma situação incômoda para a sociedade burguesa porque a sua desvinculação ao homem a ligava a duas esferas: a da castidade e a da prostituição. Por isso, tão logo achou o dinheiro, Dona Baratinha pensou logo em se casar, já que na época era importante que a mulher tivesse o dote para contrair matrimônio. Mas de onde vem a punição? Há uma exortação à abnegação de si no conto português, já que foi por ser criteriosa, pensar em si, que ela foi punida.

Com Ana Maria Machado, a história adquire tons mais feministas ao apresentar uma protagonista que dá outra resposta à representação hegemônica de gênero. Porém, mais importante do que a resposta, é o processo estruturado dialeticamente pela autora que culmina com a emancipação da personagem. Inicialmente ela age de acordo com as normas vigentes, do que se espera de uma mulher solteira, isto é, procurar por um casamento a fim de dar um sentido à sua vida; depois ela vivencia um conflito emocional representado pela perda do amor, mostrando-se ainda presa ao discurso hegemônico, mas que, ao chegar a uma situação extrema de dor, resolve pensar a situação e, numa tomada de consciência, emancipa-se, liberta-se das históricas prisões discursivas do amor romântico para reconstruir o seu destino. Assim, três momentos são estruturados na narrativa: a reprodução, o conflito e a emancipação. Ana Maria Machado não apenas mostra uma personagem feminina emancipada, mas desenha para a leitora o percurso de sua emancipação. No final do reconto, a mulher rompe com a dependência afetiva ao homem e transforma a solteirice em um status favorável à mulher:

Dona Baratinha primeiro caiu no choro. Que tristeza, ficar viúva antes de casar!

Depois, pouco a pouco, entre um soluço e outro, foi tirando o vestido da noiva, botando uma roupa mais confortável e ficou pensando:

- Coitado do ratinho! Mas para mim foi uma sorte. Não podia dar certo um casamento com um noivo que gosta mais de feijão do que de mim. Melhor eu ficar sozinha e gastar meu dinheiro pra me divertir.

E assim fez. (MACHADO, 2010, 29)

Nesta citação, vê-se a estrutura mencionada anteriormente: nas duas primeiras linhas, o momento de alienação é introduzido pelo tom irônico da voz narrativa, num jogo polifônico e interdiscursivo com o patriarcado; nas terceira, quarta e quinta linhas ocorrem o choque ou conflito entre o discurso internalizado e a outra voz que a conforta (o que poderia ser qualquer outro discurso que confrontasse o hegemônico, para nós, este conto funcionaria exemplarmente) e nas linhas seguintes a libertação. Diferentemente da personagem feminina da versão portuguesa, a Dona Baratinha de Ana Maria Machado passa por um processo de recuperação da autoestima, que se inicia com um desapontamento, seguido por um desabafo para finalizar com a transformação, que acontece em razão da mudança de perspectiva. Com isso, a personagem deixa de procurar por um noivo, assume positivamente a sua solteirice, e resolve viajar.

Em Mamãe Bela, Mamãe Fera, a escritora Marta Lagarta apresenta-nos um texto que traz a histórica representação da mãe. Do ponto de vista gráfico, Lagarta optou por uma fonte grande e arredondada, sendo que a primeira letra de cada estrofe é capitular, desenhada, cujas pontas terminam com um espiralado. É neste movimento de criatividade visual que a autora propõe reunir o que os contos de fada separaram: mãe e madrasta. Dialogando intertextualmente com o clássico a Bela e a Fera e interdiscursivamente com o maniqueísmo cristão, Lagarta modifica um discurso secular sobre a representação da mãe, ao mostrar uma personagem que ora é “maga amarga” ora é “fada açucarada”. Verifica-se que não se trata de uma simples técnica de inversão, muito usual na literatura infantil, mas de um jogo antitético da representação de gênero, conferindo um tom subversivo ao texto, já que o componente simbólico “mãe” é fissurado e apresentado realocado ao leitor, distante da santificação e mais próxima da condição humana no jogo de eventos entre mãe e filha. Ao jogar com a alternância, a escritora mina a estrutura binária e oposicional, mostrando menos uma essência e mais um jogo de situações: “Mãe balanço de vai e vem/Mamãe é o tombo também” (LAGARTA, 2010, p. 12). O texto de Lagarta nos é exemplar enquanto discurso desviante, pois rompe não apenas com o conteúdo representacional da mãe como uma entidade coerente, moralmente correta, plena de virtudes, mas também com a estrutura binária que tem sustentado o pensamento e as práticas sociais hegemônicas.

No que se refere à narrativa, a autora faz uso de estratégias que facilitam a identificação do leitor-criança, a exemplo do ponto de vista. É a partir da perspectiva da filha que o texto ganha sentido, por isso não há uma narrativa estruturada linearmente, formada por sequência espaço-temporal, mas são instantes, situações de interação entre a filha e a mãe. Os momentos buscam destacar o que seria a visão da menina em relação à mãe, mas, assim como Ana Maria Machado, o processo torna-se importante para entender de que forma a menina vai se ajustando à doxa sociocultural: pequenos conflitos antitéticos, a dúvida diante da ambiguidade e a compreensão frente a complexidade dos gêneros. Ora a mãe “grita descontente” ora “brinca sorridente” (LAGARTA, 11, 2010). A ambiguidade não é afastada da menina, mas lhe é apresentada como parte da vida que vai sendo significada à medida que ela interage com o mundo e o questiona: “Como pode ser assim? Ora boa ora ruim?” (LAGARTA, 2010). Sobre esse conflito, faço uso das minhas próprias palavras publicadas no blog sobre literatura e mulher, no qual afirmo: “Se o ser humano é caracterizado pelo conflito diante de si e do mundo, a maternidade não poderia escapar a essas tensões próprias da condição humana porque, ao ser assumida, acaba fazendo parte dela”. (LEIRO, 2012, s/p.).

Além do aspecto escrito, faz parte dos estudos da literatura infantil, a análise das imagens e a relação desta com a narrativa. Este componente no livro de Lagarta não poderia deixar de ser mencionado porque os traços de Sami e Bill possuem vida própria. Os ilustradores desenharam as formas da mãe e da filha predominantemente circulares, evocando acolhimento, graciosidade. Os traços e as formas arredondadas cumprem a função de atrair o leitor infantil, já que essas são mais atraentes do que as angulares. As formas são dinâmicas representadas por traços disformes, o que confere maior “movimento” à imagem. Uma forma criativa de inserir dinamicidade ao texto. Mas, também, essas formas sugerem a maneira de a menina ver o adulto, em grandes proporções e em partes, em um claro esforço de aproximação da experiência visual da menina do que o adulto representa para ela. Por exemplo, quando a mãe está reclamando com a filha, as formas da boca e da língua ganham grandes proporções porque sugerem a reprodução do olhar da criança que naquele momento vê apenas a repreensão. Da mesma maneira, quando a mãe é mais afável, os braços ganham expressividade e a caixa torácica ganha um aspecto de concha, envolvendo carinhosamente a menina.

O enigma que acompanha todo o texto em tom de charada precisa ser respondido, esclarecido. É neste momento que encontramos elementos interdiscursivos no espaço do não-dito, pois, para gerar a dúvida, é necessário que existam duas ideias que conflitam. Assim, a menina leitora dos contos de fada em contato com as representações do adulto feminino – rainha e madrasta – reelabora a sua visão com base na experiência cotidiana que contradiz a separação dessas representações. A mãe no texto de Lagarta, diferentemente dos contos de fadas, performatiza também gestos de madrasta, resolvendo o conflito da menina por meio de uma referência aglutinadora que é o próprio conto de fada. A ruptura com a representação da mãe não significa a negação de uma longa e histórica tradição literária infantojuvenil da qual faz parte a escritora, mas este diálogo é dialético:

“Ora boa ora ruim

Feito história encantada

Eu agora chego ao fim:

mamãe é conto de fada!” (LAGARTA, 2010, p. 21)

Já o livro Pena de Pato e Tico-Tico, de Ana Maria Machado, traz claramente a articulação literário-pedagógica focando, pelo menos, quatro dimensões da literatura infantil: a pedagógica, a estético-literária, a ideológica e a lúdica. Em relação à primeira, a escritora insere aspectos importantes para a criança em fase de alfabetização, ao trabalhar com grupos fonéticos desta fase escolar (sobretudo as bilabiais /p/ e /b/ e as linguodentais /d/ e /t/). Aliás, toda a série Mico Maneco tem esse propósito. No que diz respeito ao aspecto estético-literário, a autora utiliza-se de recursos linguísticos para brincar, por exemplo, com a polissemia da palavra "pena", ora como revestimento do corpo das aves e ora como sentimento de compaixão. Ainda como recurso linguístico, a autora lança mão das repetições “Cadê, Cadê?”, inserindo a ludicidade na dimensão linguística, como se houvesse algo a ser descoberto no contato leitor-texto, remetendo ao um jogo de esconde-esconde, comum entre as crianças. Do ponto de vista ideológico, a dimensão de gênero é um aspecto marcante na história, já que existem apenas duas personagens, um menino e uma menina, que brincam isoladamente por internalizarem os preconceitos de gênero: o menino brinca sozinho porque bola é brinquedo de menino e a menina, com o mesmo pensamento, se isola por entender que boneca é brinquedo de menina:

A menina Janaína tem

Uma bela boneca.

O menino Benedito tem

Uma bonita bola.

Janaína pede a bola

De Benedito. Mas ele fala:

- Bola é de menino,

Janaína. Não é de menina. (MACHADO, 1988, p. 01)

Da mesma forma, Janaína não deixa Benedito brincar de boneca porque não é considerado brinquedo de menino. Neste momento, um novo conflito se instaura, pois os brinquedos se afastam de seus donos e ambos passam a procurar pelos objetos. Novos personagens são acrescidos à narrativa: uma pipa, um pássaro e um pato. É um momento pedagógico, criativo, lúdico e poético da narrativa:

Veja o tico-tico.

Tico-tico voa. Ele voa e

Vê a boneca na moita.

O tico-tico é ave.

E toda ave tem pena.

Veja o pato.

Pato nada na lagoa.

Ele nada e vê a bola no mato.

Pato é ave. E toda ave tem pena.

O tico-tico tem pena do menino Benedito e da

menina Janaína.

O pato tem pena de Janaína

menina e de Benedito menino.

Os personagens secundários da narrativa – o pato e o passarinho - são responsáveis não apenas por encontrar os brinquedos da menina e do menino, mas por fornecer matéria-prima para composição de outro brinquedo. Estes personagens cumprem a função de mediadores de gênero, pois é por meio da compaixão deles, ao ver o isolamento e a solidão das crianças pelo preconceito de gênero, que um novo brinquedo é inserido: a peteca. Do corpo do pato e do pássaro, são extraídos os elementos responsáveis por uma mediação lúdica que minará o preconceito, por meio de um “brinquedo de dois” (MACHADO, 1988, p.15) e que não possui marca de gênero. Este elemento “mágico” e neutro seria o responsável pela aproximação da menina e do menino, separados pelo discurso hegemônico de gênero, mas, também, pela reconfiguração de sentidos em torno dos brinquedos antes demarcados como ‘de’ menina e ‘de’ menino, uma vez que menina e menino passam a brincar de peteca, mas, também de bola e de boneca, pois a descoberta do prazer de brincarem juntos rompeu o preconceito. A igualdade de gênero perpassa pela reconfiguração dos mediadores culturais da criança: o adulto e os artefatos culturais:

- Peteca é jogo de menino e

Menina – fala Janaína.

- É... Peteca é jogo dos dois – fala Benedito. Jogo de menino e

Menina é muito bom. Jogo de muitos é ótimo. (MACHADO, 1988, p. 15)

É importante destacar o perfil político da escritora, coerente com as questões sociais, como boa parte dos intelectuais e artistas de sua geração. Machado tem um compromisso estético-político com a literatura infantojuvenil, que reflete a sua trajetória de vida. É com a sensibilidade poética que escreve uma das páginas mais líricas da literatura infantojuvenil: “Veja muita pena de pato e muita pena de tico-tico./Veja a peteca de muita pena./Pena de tico-tico e pena de pato”. (MACHADO, 1988, p. 15). O prazer estético marcado pelo manejo da linguagem causa um efeito rítmico, sonoro e de valor moral sublime, pelo uso da palavra “pena” em sentidos distintos, como já foi mencionado neste artigo, pois é por meio deste deslize semântico entre o denotativo e o conotativo, que visualizamos um traço poético e ao mesmo tempo político na narrativa: a preocupação de pessoas por outras que sofrem as consequências das regras arbitrárias de gênero, no caso da história de Machado, de meninas e meninos que não nascem com essas regras, mas são educados nelas, cabendo aos mediadores – professores, intelectuais, artistas – romperem com esses estereótipos que criam abismos sociais de gênero.

Já o livro de Ruth Rocha foi o primeiro que li de todos os discutidos neste artigo e naquele momento já fiquei interessada em conhecer outras produções que pudessem provocar uma reflexão de gênero. Em Quem tem Medo de Dizer Não?, a autora escreve sobre as dificuldades de uma menina em negar pedidos vindos de outras pessoas. A protagonista vive realizando tarefas cada vez mais difíceis de executar e, quando não consegue realizá-las, sente-se culpada:

Eu não sei me recusar,

quando me pedem um favor.

Eu sei que não vou dar conta,

mas dizer não é um horror! (ROCHA, 2002, p. 08)

A voz narrativa que conduz a leitura é alternada entre a primeira pessoa do plural, marcada pela forma “a gente” em substituição ao “nós”, e a primeira do singular. A primeira forma cumpre o objetivo de envolver o leitor, unindo a uma mesma experiência, e a segunda cumpre a função de marcar uma experiência de gênero, tendo uma menina que vive a angústia da extrema obediência. As marcas de gênero ficam mais evidentes quando vemos a ilustração de Mariana Massarani que interpreta o texto de Rocha:

Acontece todo dia,

Pois eu mesma não escapo.

De tanto ser boazinha,

Tô sempre engolindo sapo...

Como coisas que não gosto,

Faço coisas que não quero...

Deste jeito, minha gente,

Qualquer dia eu desespero... (ROCHA, 2002, p. 3-4)

Neste trecho, a única marca de gênero dá-se pela combinação “menina-boazinha” com o apoio de uma remissão ao discurso de feminilidade que têm ancorado o discurso hegemônico sobre o comportamento das meninas. No entanto, não há no texto referência sobre o contexto da criança, em que prática social ela se encontra. É a ilustradora que nos fornecerá o contexto que, no caso da citação acima, é formado pelas personagens mãe e filha que se encontram na cozinha realizando tarefas domésticas. A mãe, sem avental, carrega uma enorme pilha de pratos, sendo que a última peça, uma tigela, traz um sapo prestes a saltar para dentro da boca da menina que já ostenta duas patas traseiras de outro anfíbio. A exploração da menina passa por diferentes espaços e eventos sociais: em casa, a menina é explorada nos serviços de casa. Este comportamento subserviente é reproduzido em outras instâncias, quando o amigo lhe devolve uma mídia arranhada e a menina não consegue verbalizar o seu descontentamento. Em relação à religião, há referências visuais a uma freira que aponta o indicador em riste em direção ao rosto da menina e ao presépio elemento decorativo dentro do rito cristão, fazendo referência a educação católica que ensina a menina a ser submissa aos adultos e aos homens. No espaço escolar, não é diferente, a menina não consegue dizer não ao menino que olha para a sua prova pedindo uma “pesca”. Na casa da vizinha, a menina é obrigada a comer iguarias exóticas por não conseguir dizer não, e assim acontece nos espaços de lazer, no supermercado, na rua, enfim, em todos os lugares e práticas sociais. A mesma atitude responsiva situacional repetida várias vezes gera um comportamento generalizado. Desta forma, Rocha mostra o poder da palavra na regulação e formação de gênero, que transforma meninas em seres medrosos, servis, sem voz, mas também nos mostra como através da palavra é possível libertar essas meninas no plano social, por meio de uma literatura emancipatória que além de proporcionar prazer na leitura, transforma ao invés de refletir o discurso hegemônico. Assim como Machado e Lagarta, Rocha dialoga interdiscursivamente com os discursos cristalizados pelas práticas sociais que geram normas de comportamento mais ou menos estáveis para as meninas. Esta tentativa de unificação engendra o que consensualmente é chamado de feminilidade.

Ruth Rocha, assim como Machado, mostra também três momentos da personagem: o da aceitação imposta, o do conflito e o da emancipação. Todo esse percurso nos é mostrado pela ilustradora que aparece como coautora do texto, complexificando a polifonia no texto. É Mariana Massarani que ilustra os versos finais:

Quero saber dizer NÃO.

Acho que é bom para mim.

Mas não quero ser do contra...

Também quero dizer SIM! (ROCHA, 2002, p. 21)

Não há marcas contextuais nesta citação acima, mas Massarani o ilustra com a personagem na fase jovem de braços estendidos em direção a um príncipe que está montado em um cavalo branco. O pretendente, por sua vez, vira-se para trás de braços também estendidos a fim de alcançar a jovem. O final convencional, tipicamente de um conto de fadas, parece contradizer o processo de libertação da menina, pois o “não” que a personagem aprende a dizer, não pode ser considerado simplesmente uma inversão do “sim” imposto, mas ambos partem de uma reflexão contextual, de uma decisão do sujeito, neste caso é a jovem que aceita se casar. O consentimento dado ao príncipe em desposá-la sugere que o gesto decorreu de sua vontade e não da vontade de outrem, já que ela aprendeu a dizer sim e não, aprendeu a reconhecer o que lhe é prazeroso e o que não é. Esse final sugere ainda que, se houvesse uma inversão, a personagem também estaria fadada a deixar de viver bons momentos, ilustrado, no texto, pelo amor. Rocha também rompe com a inversão binária para enfatizar as circunstâncias e o uso da palavra como instrumento de libertação.

Ruth Rocha, Marta Lagarta e Ana Maria Machado dialogam com o discurso hegemônico sobre os papeis sociais de meninas e meninos, mas para desviarem-se, mostrando que é possível produzir uma literatura infantil brasileira emancipatória para que meninas e meninos possam repensar as suas brincadeiras e, de uma forma lúdica e criativa, possam interagir melhor com o outro.

Referências:

ROCHA, Ruth. Quem Tem Medo de Dizer Não. São Paulo: Global, 2002.

LEIRO, Lúcia. Dona Baratinha de Ana Maria Machado. Disponível em: <http://mulhereliteratura.blogspot.com/2012/02/dona-baratinha-de-ana-maria-machado-ftd.html> Acesso em: 19/04/2012.

AGUERA, Vanessa. Adaptação e apropriação dos contos de tradição oral por Ana Maria Machado. Disponível em: <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAA35QAJ/adaptacao-apropriacao-dos-contos-tradicao-oral-por-ana-maria-machado> Acesso em: 17 abril de 2012.

LAGARTA, Marta. Mamãe Bela, Mamãe Fera. Rio de Janeiro: Prumo, 2010.

MACHADO, Ana Maria. Pena de Pato e Tico-Tico. Rio de Janeiro: Editora Moderna/Salamandra, 1988.

Texto publicado no Anais do IV SENALIC, UFS.