Uma breve incursão em Drummond
Para se compreender Drummond basta olhá-lo. Ele está ali, toda a sua obra é um convite. Um convite de imersão em um Drummond tímido, introspectivo, intelectual, ser que se questiona todo o tempo, questiona a vida “Êta vida besta, meu Deus!” e que se autodenomina um sobrevivente.
A sua poesia tem um sentido social e político forte e é de uma sensibilidade agudíssima. Drummond, sem dúvida alguma, é um poeta de uma inteligência superior, um dos maiores da poesia lírica brasileira. Segundo Afrânio Coutinho, Drummond é intérprete do homem comum, o poeta que se humaniza diante da angústia de seu tempo. No mesmo instante em que mostra um desencanto pelas coisas da vida, ela nos é apresentada por ele de maneira lúdica e eivada de senso de humor.
Para Antônio Houaiss o escritor modernista é possuidor de um vocabulário universal e personalíssimo, “sem limitações musicais, rítmicas, conceptuais, sociais, eufêmicas”. A poesia de Drummond, além de universal, é atual, de temática voltada para a problematização da vida. O que Drummond buscou fazer por seu espírito criativo ele próprio declarou em sua última entrevista: “minha motivação foi esta: tentar resolver, através de versos, problemas existenciais internos. São problemas de angústia, incompreensão e inadaptação ao mundo”.
O que é admirável em Drummond, além da própria poesia, é a sua confissão de não se considerar poeta, o que nos revela um poeta simples e sem muitas crenças “(...) meu processo é lentíssimo, componho muito pouco, não me julgo substancialmente e permanentemente poeta”; “Eu me considero – e sou realmente - um homem comum”; “Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a vinte anos estarei no Cemitério de São João Batista. Ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que eu quero é paz”.
Os prognósticos de Drummond – todos – foram falhos. Ele é um dos nossos maiores poetas, talvez o maior, é eterno porque vive através de sua palavra e, graças a Deus, todos falamos muito dele. A comoção lírica causada através de sua poesia é intensa.
Drummond é, por excelência, o poeta do cotidiano - eis a sua matéria prima. A poesia drummondiana, de modo geral, reflete sobre a vida, como ele próprio nos diz: “nada é alheio à poesia quando ela, mediante recursos artísticos, vai ao fundo das coisas e dele extrai substância humana.”
Nos primeiros livros do poeta, ‘Alguma Poesia’ e ‘Brejo das Almas’, percebemos a presença da ironia, do humor e um sarcasmo desencantado, mas a emoção do poeta parece um tanto aprisionada. Ele próprio se apresenta em desalinho com o mundo, um “gauche” (in Poema de Sete Faces) na vida. Temas como família, isolamento, monotonia são recorrentes.
“Stop./ A vida parou/Ou foi o automóvel?” (Cota Zero in Alguma Poesia, p.125, Poesia 30 – 1962)
“Perdi o bonde e a esperança./ Volto pálido para casa. A rua é inútil e nenhum auto/ passaria sobre meu corpo.” (Soneto da Perdida Esperança in Brejo das Almas, p.159, Poesia 30 – 1962)
Num segundo momento, Drummond canta a impotência e a solidão em um mundo frio, ausente de perspectivas diante do sofrimento causado pela guerra. Fazem parte desse período: ‘Sentimento do Mundo’, ‘José’ e ‘A Rosa do Povo’.
“Provisoriamente não cantaremos o amor, /que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,/ não cantaremos o ódio porque esse não existe,/ existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro”. (Congresso internacional do medo in Sentimento do Mundo, p.221, Poesia 30 -1962)
Numa terceira fase, a poesia de Drummond vai ao encontro do homem aproximando-o da realidade. A partir daqui é construída uma poesia metafísica, de negação ou dúvida constante. ‘Claro Enigma’ e ‘Lição de Coisas’ nos apresentam um poeta mais maduro. Como observamos nos versos abaixo, o poeta se mostra permanentemente insatisfeito, às vezes consigo próprio e quase sempre com o mundo a que pertence. Predominam sentimentos de nulidade, que comprovam o vazio existencial em que se encontrava o poeta.
“Não amei bastante meu semelhante,/não catei o verme nem curei a sarna./Só proferi algumas palavras,/melodiosas, tarde, ao voltar da festa.
(...) Não amei bastante sequer a mim mesmo,/contudo próximo. Não amei ninguém./Salvo aquele pássaro – vinha azul e doido -/ que se esfacelou na asa do avião.” (Confissão in Claro Enigma, p.564, Poesia 30 -1962).
“O marciano encontrou-me na rua/e teve medo de minha impossibilidade humana./ Como pode existir, pensou consigo, um ser/que no existir põe tamanha anulação de existência?
Afastou-se o marciano, e persegui-o./ Precisava dele como de um testemunho./ Mas, recusando o colóquio, desintegrou-se/no ar constelado de problemas./
E fiquei só em mim, de mim ausente.” (Science Fiction in Lição de Coisas, p.865, Poesia 30 – 1962).
Um pouco mais adiante vamos encontrar um Drummond mais maduro, mas ainda com o olhar profundo nas coisas do cotidiano, mestre em prosa e verso, porque também escritor de crônicas. O poeta não se esgota e há sempre algo por ser descoberto. Em As impurezas do Branco, lançado em 1973 – tempo da ditadura militar, momento de tentativa de se abortar a palavra (expressão do pensamento), mas marcado por uma efervescência cultural em todos os cantos do mundo, o poeta parte ora do indivíduo, cheio de inquietudes, ora do social, uma preocupação permanente em dar vazão à existência humana.
No poema “Viver”, do livro As Impurezas do Branco, Drummond parece constatar a inutilidade da vida e a decepção causada por essa repentina descoberta é que nos choca, nos põe a refletir, a duvidar. Era essa a sua intenção? Nos fazer também perceber o quão pequeno é tudo que nos cerca? Nos primeiros versos, o poeta perplexo toma posse de uma atitude negativista, de desconfiança. Viver, para o poeta, seria apenas isso, a batida numa porta fechada e nenhum gesto que pudesse salvá-lo? O esvaziamento de tudo e nenhuma esperança?
“Mas era apenas isso?/ era isso, mais nada?/era só a batida/ numa porta fechada?/e ninguém respondendo,/ nenhum gesto de abrir:/era, sem fechadura,/uma chave perdida?/Isso ou menos que isso/uma noção de porta/ o projeto de abri-la/sem haver outro lado?/O projeto de escuta/ à procura de som/ o responder que oferta/o dom de uma recusa? Como viver o mundo/ em termos de esperança?/ E que palavra é essa/que a vida não alcança?”
(Viver in As impurezas do Branco, p.725, Poesia Completa).
Drummond é, pois, o poeta tantas vezes cético, mas também possuidor de esperança – no homem, na vida.
“Uma vez mais se constrói/ a casa aérea da Esperança./ Nela reluzem alfaias/ de Sonho e de Amor: aliança.” (Uma vez mais se constrói in Poesia Errante, p.1478, Poesia Completa).
Na obra Drummondiana, como se vê, estão presentes as questões de fundo existencial (amar – viver – morrer) e lê-la permite, como algum poeta afirmou, que nos humanizemos ou, pelo menos, que estejamos no caminho da depuração, uma tentativa de abstrair do homem, o que, às vezes, ele próprio desconhece, que é a sua capacidade de ter compaixão. É para isso que existem Clarices, Vinicius, Machados, drummonds.
Ler Drummond é um prazer indizível. Uma experiência personalíssima.
Fontes:
i. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987. Poesia Completa. 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
ii. Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987. Poesia de 1930-62: de Alguma Poesia a Lição de Coisas. Edição crítica por Julio Castañon Guimarães. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
iii. Mello, Heitor Ferraz. Drummond, o antibusto. Disponível em http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/drummond-o-antibusto/•.
iv. Maria, Luiza de. Por que ler Drummond. Disponível em http://www.cesjf.br/cesjf/documentos/revista_letras_docs/art_professores/Por_que_ler_Drummond.pdf .
v. Pereira, Ana Maria (org). Drummond, o Poeta de Sete Faces in www.revistacontemporaneos.com.br .
vi. Teles, Gilberto Mendonça. O Privilégio de ler Drummond. Disponível em http://www.academia.org.br/abl/media/centenarios5.pdf.