O OVO E SUAS FACES

Resumo: O presente artigo objeta explicitar possíveis interpretações para o elemento ‘ovo’, com base em uma análise filosófica e psicológica do conto “O ovo e a galinha” de Clarice Lispector.

Palavras - chave: Ovo - Galinha - Representação - Deus.

Clarice Lispector, nascida Haia Lispector (Chechelnyk, 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977) foi uma escritora brasileira, nascida na Ucrânia. Autora de linha introspectiva, buscava exprimir, através de seus textos, as agruras e antinomias do ser. Suas obras caracterizam-se pela exacerbação do momento interior e intensa ruptura com o enredo factual, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise.

O conto, “O ovo e a galinha” é o resultado de uma análise introspectiva sobre todas as peripécias, possibilidades, representações e limitações destes dois personagens, que ora assumem uma significação literal, ora referência religiosa e até mesmo biológica, alternadas com uma narrativa simples de uma mulher que prepara o café da manhã da família. São essas representações que serão apresentadas e discutidas neste artigo.

“De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. (...)”

No primeiro parágrafo do conto podemos perceber uma fugaz localização tempo-espacial – na cozinha. Porém, algo tão trivial não se enquadraria no perfil de um conto de Clarice, então, logo em seguida nos deparamos com uma “deslocalização” temporal proposital, fruto da velocidade do fluxo de pensamento que viaja no tempo e no espaço refletindo sobre o ontem, o hoje e o imediatamente após o agora. O ovo visto agora já não mais é o ovo visto agora, pois no segundo seguinte já será o ovo visto, o ovo olhado, e, portanto será na mente apenas uma lembrança do ovo antigo e a cada olhar uma nova surpresa, um novo ovo, o ovo que no segundo seguinte também será um ovo antigo.

“Com base na metamorfose é criado o tipo de representação de toda a vida humana em seus momentos essenciais de ruptura e de crise: como um homem se transforma em outro. São dadas imagens radicalmente diferentes de um único homem, nele reunidas conforme as diferentes épocas, as diferentes etapas de sua existência. Não há aqui um “devir” em sentido estrito, mas sim crise e transformação. (BAKHTIN, 1988, p. 237)”.

Para Bakhtin, como podemos ver no trecho acima, a metamorfose é uma metáfora e uma forma de entender as mudanças na vida dos indivíduos através da história. Desse ponto de vista, não seria o ovo o objeto que muda, e sim o olhar do observador e as impressões sobre esse objeto, o olhar de um segundo atrás não é o mesmo olhar do agora e nem será o mesmo no futuro imediatamente após o agora.

O ovo começa sendo o ovo, o ovo que vem da galinha e é comestível, o ovo que se vê de manhã sobre a mesa da cozinha, mas ao longo do texto ele se transforma, não objeto ovo, este é imutável, mas a percepção da narradora sobre esse objeto. “Como o mundo, o ovo é obvio” (LISPECTOR; 1997, p. 81). Como o mundo, o ovo é uma crosta com muita vida interior.

Mais adiante no conto o ovo se transforma em uma metáfora para um importante órgão do aparelho reprodutor masculino, o testículo, quando a narradora diz “Ao ovo dedico a nação chinesa” (LISPECTOR; 1997, p. 81). O ovo se refere à “fábrica” da vida e a nação chinesa faz referência à superpopulação.

“Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – Ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam o ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “o rosto”, morre; por ter esgotado o assunto” (LISPECTOR; 1997, p. 81).

Nesse trecho do conto, se considerarmos o ovo como uma metáfora para Deus e a galinha uma representação da humanidade - a mãe de Deus, aquela que o guarda, perpetua sua existência e o conserva sem saber de toda a maravilha de sua essência, e o esquece e ignora sua existência para protegê-lo; para que não o tentem definir, ela não o pensa, para que não o chamem de branco mesmo que ele o seja, para que não o chamem de pai, ou de bom, ou que de qualquer forma o adjetivem, pois os adjetivos são perigosos e podem ser questionados, o ovo não é questionável, ele nem mesmo existe individualmente e é uma coisa impossível – entenderemos Jesus Cristo como “aquele homem”, o homem que se dizia filho de Deus e sabendo que as religiões cristãs consideram o homem como filho de Deus então aquele homem que se disse filho de Deus há mais de dois milênios realmente o era, dizia a verdade, mas a verdade o matou.

E eis que não entendo o ovo. Só entendo ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem já viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver. (LISPECTOR; 1997, p. 82).

Neste momento a narradora interrompe seu devaneio a respeito do ovo e tenta voltar a sua realidade. Admite não entender o ovo, e apesar de todas suas especulações a respeito do que ele seja e as inúmeras faces que possui não consegue compactá-lo em uma idéia única, então retorna ao ovo inicial, ao ovo comum, ao ovo comestível, o ovo que ela quebra na frigideira e oferece como alimento a sua família.

Logo em seguida, após sua tentativa de voltar à realidade ela reflete sobre seu próprio retorno, quando fala que “seu sacrifício é reduzir-se a sua vida pessoal”, ou seja, deixa de lado suas reflexões sobre o enigmático e indecifrável universo do ovo e volta-se para si mesma passando a refletir até o fim do conto sobre sua possível identidade como agente e como ser humano.

Concluindo, o ovo se trata de uma metáfora para tudo que foge e rege a vida cotidiana, é a vida, o destino, o caminho, Deus, o eu, o outro, ou simplesmente o ovo. O reles ovo. O ovo que acaba na frigideira. O ovo que poderia ser vida, mas apenas serve para manter outras vidas que se multiplicarão em mais vidas em um eterno ciclo sem fim. “De ovo em ovo chega-se a Deus” (LISPECTOR; 1997, p. 81).

REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, M . Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica). Questões de literatura e de estética. São Paulo: Hucitec, 1988.

LISPECTOR, Clarice. O Ovo e a Galinha. In A Legião Estrangeira. São Paulo, Ática, 1977, p. 81-84

Caterine Araújo
Enviado por Caterine Araújo em 09/03/2013
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