Bichos, um clássico da literatura portuguesa
Resumo
Esse estudo tem como objetivo fazer uma análise da obra Bichos, livro do escritor português modernista Miguel Torga que apresenta 14 contos mesclando animais e seres humanos. Baseados em estudos de Massaud Móises, traçaremos as principais características dos personagens e da narração do autor.
Palavras- chave: Literatura Portuguesa, Miguel Torga, Bichos.
Introdução
Escrito em 1940, Bichos faz parte do momento Presencista do Modernismo, fase em que os autores transmitiam em suas obras características que tendiam ao individualismo, mas não um individualismo gratuito e sim uma fuga para a vida junto à natureza. A Natureza para os presencistas não era aquela bucólica dos árcades, mas uma natureza real, que proporciona ao homem uma vida de suor e lágrimas, mas sempre repleta da alegria de estar vivo. É na convivência com a terra que o homem descobre o valor de todas as formas de vida e aprende a defendê-la, não por questões materiais e sim porque reconhece a beleza que há nas coisas simples.
Bichos de Miguel Torga
Miguel Torga, pseudônimo literário de Adolfo Correia da Rocha, nasceu em 1907 na aldeia de São Martinho de Anta, na província de Trás- os – Montes, Localizado no Nordeste de Portugal.
A escolha do Pseudônimo “Miguel” foi uma homenagem ao escritor espanhol “ Miguel de Cervantes” autor da famosa obra “ Dom Quixote”. Torga está relacionado a um arbusto pequeno que fixa suas raízes nas rochas, muito comum em Trás- os – Montes, e demonstra a ligação autor com a terra.
Em 1920, Torga vem ao Brasil trabalhar na fazendo de seu tio em Minas Gerais. Após cinco anos retorna pra Portugal.
Miguel Torga participou do grupo inicial da revista “Presença”, publicada em Coimbra em 1927, que defendia uma literatura viva, livre que se oporia ao academismo da literatura jornalística:
Em 1927, um grupo de estudantes (José Regio, João Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca) funda, edita e dirige em Coimbra a revista literária “Presença”. Tendo por subtítulo Folha de Arte e Crítica, o primeiro número 27 da revista, Branquinho da Fonseca abandona-lhe a direção, secundado por Miguel Torga (então assinado Adolfo Rocha, seu verdadeiro nome) e Edmundo de Bettecout que deixaram de colaborar: na carta que enviaram aos demais diretores da Presença, datada de 16 de julho de 1930, iniciaram afirmando que a Presença que se propunha, como folha de arte e crítica, defender o direito que assiste a cada uma de seguir o seu caminho, começou a contradizer”, e mais adiante lembram que a “presença concebe mestres e discípulos com aquela interpretação convencional, em que aos mestres fazem lições para os que se reputam alunos”. (MOISÉS: 2008, p.361)
Torga, sendo panteísta, tem um sentimento ligado à natureza e ao telurismo – amor a terra, e estas características são dispostas de maneira significativa em suas obras, especialmente em “Bichos”, nosso objeto de estudo. Outra característica do autor presente na obra em questão é a problemática religiosa. Essas características vão ser tratadas posteriormente.
Segundo MOISÉS: 2010, p.367:
“Miguel Torga é sempre o mesmo homem de pés fincados na terra transmontada, porque nela espera encontrar a explicação para a condição humana, imediatamente transformada em sua mente num problema teológico-existencial, armado ao redor de indignações-chave, do gênero “quem somos?”.
Bichos é composto por contos, mais especificamente quatorze, e muitas são as características da sua constituição formal, que atestam esse fato.
Os contos são narrativas breves e geralmente centram-se em um acontecimento ou um episódio da vida da personagem principal como em “Morgado” em que a narrativa foca a viagem deste com o seu dono e o fatal encontro de ambos com uma alcateia de lobos. E mesmo quanto tem que narrar acontecimentos diegéticos ocorridos em longos períodos como no caso de “Nero”, onde a personagem principal relembra toda sua vida o autor condensa a narrativa de forma a abranger toda a vida da personagem em poucas páginas.
O conto é uma narrativa breve; desenrolando uma só incidente predominante e uma só personagem principal, contém um assunto cujos detalhes são tão comprimidos e o conjunto do tratamento tão organizado, que produzem uma só impressão. (Brander, Matthews apud Goltlib: 1998 pg.60)
A obra apresenta uma característica bastante peculiar, que é a aproximação dos contos com o texto fabular, Segundo GOTLIB (1995,p.150): “Fábula é uma historia com personagem, animais, vegetais ou minerais, tem objetivo instrutivo e é muito breve.”
Embora o texto de Torga se aproxime das características da fábula, não se constitui como uma, pois a instrução não é apresentada de forma direta e esta não é a intenção do autor.
Os quatorze contos apresentam personagens principais que vivem situações ou apresentam sentimentos muito ligados a terra e a natureza como, por exemplo, o touro “Miura” que capturado, levado para longe de sua terra e obrigado a fazer parte de um espetáculo que acha humilhante, devaneia com a terra natal onera rei e podia ser livre.
Entretanto não é só a ligação com natureza que é o ponto comum entre os contos, há outros que não podem deixar de ser mencionados. “Bichos” é formado pode contos dos quais quatro apresentam protagonistas humanos e dez apresentam como figura central animais. Nesse ponto trava-se uma questão interessante e significativa para a obra, que seria a utilização da antropomorfização e da zoomorfização, empregadas pelo autor para a caracterização do perfil psicológico das personagens. Essas características estão muito presentes na obrar e não são poucos os exemplos que constatam.
O conto “Ramiro”, por exemplo, narra à história de um pastor de ovelhas que depois de passar vinte anos em Marão, lugar árido e silencioso, ele não consegue usar as palavras para se expressar por isso assobia:
“Por isso, em vez de fala, usava outra linguagem: um assobio seco, estridente, instantâneo, que atirava com a mesma violência à cara dos interlocutores e às reses tresmalhadas. O apito, saído dos beiços com o ímpeto dum arremesso, entrava nos ouvidos como um punhal. Quase que fazia sangrar os tímpanos.” (TORGA: 1940,p.48)
Depreende-se que Ramiro não se expressa como um ser humano, sua forma de comunicação é mais assemelhada com a dos animais que usam sons para se comunicar. Mas não é só com o assobio que Ramiro tenta se expressar, apaixonado por Rosa não sabe manifestar seus sentimentos a não ser pelo olhar. Como podemos observar:
“Quando passava por ela, comia-a com os olhos. Desgraçadamente, não sabia formular doutra maneira o desejo que o roia. ”(TORGA: 1940, p. 48)
A zoomorfização esta presente também em “Madalena” e “Senhor Nicolau” que são personagens planas.
O único conto que tem como personagem principal um humano que não apresenta características de animais é “Jesus”, sétimo conto do livro que traz a historia de um menino divinizado, cheio de coragem e inocência, em uma narrativa que faz várias alusões ao texto Bíblico, caracterizando assim uma intertextualidade.
Essa intertextualidade entre os dois livros que se faz não apenas no conto “Jesus”, mas no livro como um todo, a começar pelo prefácio iniciado com a seguinte frase: “São horas de te receber no portaló da minha pequena Arca de Noé” (TORGA 1940, p.3)
A questão religiosa tem seu ápice em “Vicente”, ultimo conto do livro no qual o autor traz o embate entre a criação e o criador. “Vicente”, o corvo, revolta-se contra Deus, pois o considera injusto e tirânico. O corvo vence seu instinto de conservação que considera humilhante. É interessante observar que o ser sem poderes sobrenaturais consegue a divindade com s sua coragem e força de vontade.
Em Vicente além da questão religiosa, podemos observar um traço que se repetirá com os demais protagonistas animais: Nero, Morgado, Bambo, Tenório, Cega- Rega, Ladino, Farrusco e Miura, que é da antropomorfização, em que estes apresentam pensamentos, emoções e em maior ou menor grau atitudes características dos seres humanos, como por exemplo, Miura que encurralado e humilhado entrega-se a morte:
“A suprema humilhação de estar ali juntava-se o escárnio de andar a marrar em sombras. Não. Era preciso ver calmamente. Que a sua raiva atingisse ao menos o alvo. O espectro doirado lá estava sempre. Pequenino, com ar de troça, olhava-o como se olhasse um brinquedo inofensivo.” (TORGA:1940, p 55)
Os contos são todos narrados em terceira pessoa e por meio da onisciência do narrador os pensamentos e as emoções das personagens nos são desvelados:
Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. (TORGA, : 1983. p.62)
Quanto ao discurso, embora haja a presença do discurso livre em todos os contos e o discurso indireto esteja presente de forma marcante no conto Jesus. È o discurso indireto livre que predomina nos contos.
Nas narrativas decorre tanto o tempo cronológico que é aquele em que a historia é contada em sucessão cronológica, sem retomadas ao passado , que podemos constatar na maioria dos contos como no caso de Tenório:
“Nascido duma ninhada que a senhora Maria Puga deitou amorosamente debaixo das asas chocas da Pedrês, em doze de Janeiro, pelas três da tarde, quando a velhota o viu sair da casca, (...)” (TORGA :1940, p.34)
Há contos em que apresentam traços de tempo psicológicos, por meio de analepses, as personagens retomam situações vividas por elas, aspecto que percebemos em Morgado:
“À ceia, o patrão, com cara de poucos amigos, recusara-lhe as festas desta maneira:- Deixa-te lá de brincadeiras e enche-me esse bandulho, que amanhã de madrugada, nem que chovam picaretas... Tal e qual. Meteu a viola no saco, claro, e atirou-se ao penso como pôde. Mas não sentia vontade. Tinha ainda no estômago os tojos que despontara à tarde no monte, e andava, sem saber porquê, de coração apertado. Além disso, aqueles modos do dono até parece que endureciam o feno. A gente também vive de boas palavras. E, verdade se diga, gostava do sujeito. Desde que ele, há seis anos, na feira dos vinte e três, o distinguira no meio dum regimento de azémolas e lhe dera uma palmada rija na anca, simpatizara com a sua figura atarracada, vermelha, a respirar saúde e bonomia. (TORGA: 1940, p. 24)
Torga usa uma linguagem própria do Modernismo, linguagem livre, direta, sem enfeites e rebuscamentos e ao mesmo tempo complexa, pois nem sempre sua narração é linear.
Considerações Finais
Assim tem –se em Bichos um retrato fiel do aspecto telúrico de Miguel Torga, nessa obra ele apresenta um pequeno mundo em que homens e animais vivem em comunhão com a natureza e dividem com ela suas tristezas e alegrias. Para Torga o lugar onde o homem consegue ser feliz e descobrir sua essência é na natureza. A sociedade oprime o que há de belo no sentimento humano, como percebe-se em Bambo, todos vivem alienados, trabalhando o dia inteiro e descansando a noite, sem pensar que há outras coisas mais importantes para serem vivenciadas.
‘’ Para todos os habitantes de Vilarinho, sem exceção, as noites eram noites – escuridão apenas. E os dias pior ainda, apesar da claridade. Ricos e pobres nem no brilho do sol reparavam. Comiam, bebiam e cavavam leiras, numa resignação de condenados (...) E a vida, como um fruto, estava cheia de doçura.Mas fora preciso, para o saber, que Bambo aparecesse...’’ (Bambo, p16)
Portanto, para Miguel Torga só o convívio com a natureza é capaz de revelar ao homem sua verdadeira essência. Não é gratuitamente que Tio Arruda é ridicularizado pela amizade com um sapo em frente à igreja. Torga também critica por meio dessa cena a religião, ou como as pessoas vivenciam a religião, todas essas convenções que na verdade não aproximam o homem de Deus, com a leitura dos contos percebe-se como para o autor Deus está integrado com a natureza, com a terra, fazendo parte dela.
Referências• GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. 8ª edição. São Paulo: Ática 1998.• MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa através dos textos. - 33. ed. rev. e ampl. - São Paulo: Cultrix, 2012.• MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. - São Paulo: Cultrix, 2008.• TORGA, Miguel. Bichos. 13ª ed. Coimbra, Gráfica Coimbra, 1983.• TUFANO, Douglas. Estudos de Literatura Portuguesa. - São Paulo: Editora Moderna LTDA, 1981.
http://livrices.blogspot.com.br/2012/06/bichos-miguel-torga.html