UMA VIAGEM DE PERDAS SEM GANHOS

     Quando iniciamos a leitura de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (1978), encontramos Fabiano e sua família já no meio da estrada, sem um “antes” explicativo, em uma atormentada marcha sem rumo, na rota de fuga da seca avassaladora. Ao primeiro capítulo, onde está delineada essa cena, Graciliano deu o nome de “Mudança”. Apresenta-nos uma família de flagelados que caminham sem nem mesmo saber para onde estão indo, pois não há a mais tênue perspectiva: um homem e uma mulher fatigados no corpo e na alma, seguidos pelos filhos que, arqueados sob o peso da própria vida, são encarados pelos pais como estorvos à caminhada.
     Curiosamente, após 12 capítulos acompanhando o passo claudicante dos retirantes e seu percurso erradio, somos deixados pelo narrador no último capítulo que, guardadas as devidas proporções, parece repetir o primeiro nesse aspecto de fecharmos o livro deixando a família como a encontramos: no meio da estrada. Intitulado “Fuga”, o capítulo que fecha o livro não fecha a história. Fabiano, numa permanente peregrinação, como uma espécie de ahsverus, avança para o desconhecido alimentando sonhos nos quais nem mesmo chega a acreditar.
        Considerando o todo da obra, e realçando o que aqui chamamos de capítulo-eixo da narrativa – “Inverno” – é possível traçarmos um paralelo entre as duas pontas (o capítulo inicial e o final) que convergem e se tocam, formando um círculo. A respeito desse movimento circular interminável, Sant’Anna (1984) considera que o romance dá ao leitor uma sensação de eterno retorno, alimentada pelo ciclo vicioso no qual a vida dos figurantes se configura.
          A rigor, a família que se nos apresenta no final do romance não é a mesma do início. É “quase” a mesma. Na última cena, essa família já está incompleta. O papagaio, alçado à categoria de personagem nesse ambiente de nivelamento homem/bicho, fora devorado pela avidez dos “parentes” famintos. A cachorra Baleia, “membro ilustre” da família, definhara ante um mal de que fora acometida e tivera que ser sacrificada. A família, em toda a sua trajetória até ali, sofrera perdas irreversíveis. E as perdas contabilizadas não foram unicamente quantitativas. Foram também, e principalmente, qualitativas.
          Tomando a palavra “Mudança” que, como já vimos, nomeia o primeiro capítulo, verificamos que o seu significado não é necessariamente negativo. Mudar-se significa ir de um lugar para outro, deslocar-se para outra casa ou moradia (Ferreira, 1990). A mudança pode ter conotação negativa na medida em que implica insatisfação ou desajustamento em relação ao meio natural e/ou social anterior, o que motiva a saída. No entanto, tende a conotar positivamente no sentido do vislumbre de possibilidades de autorrealização em outro lugar. Por outro lado, o vocábulo “Fuga”, com o qual foi batizado o capítulo final, possui uma carga semântica notadamente negativa, uma vez que traduz a ideia de retirar-se às pressas para escapar a algum perigo ou a alguém, sair às ocultas (Ferreira, 1990).
        Assim é que, em que pese o fato de os dois capítulos em tela apresentarem a família em franca retirada, numa observação mais atenta é possível constatar que a cena não é a mesma, o cenário não é o mesmo, e poderíamos reiterar, sem medo de estar exagerando, que também as personagens não o são, nesses dois diferentes capítulos da narrativa.
          Exemplificando:
        a) Em “Mudança”, a família foge sim, mas da seca avassaladora, enquanto em “Fuga” bate em retirada fugindo do patrão e das dívidas contraídas, cuja quitação se revela impossível. Portanto, no primeiro capítulo não há a iminência de perseguição à família, que está presente como uma ameaça potencial no quadro final.
       b) A mudança dá-se sempre nas horas claras do dia, tendo o sol inclemente como testemunha, ao passo que a fuga opera-se no decurso da madrugada, momento em que a família encontra-se envolta na escuridão.
       c) Em “Mudança” há o ardente desejo de chegar a algum lugar, embora essa concepção de lugar seja intangível. Já em “Fuga”, a despeito de continuarem a marcha fugidia, o desejo mais ardente e inquietante era o de voltar e não o de chegar. Apenas a lembrança dos animais destruídos pela fome e a imagem das aves de arribação fixada indelevelmente na retina os faziam prosseguir, ao invés de retornar.
      d) Na mudança os meninos eram empecilhos à caminhada: o mais novo escanchado no colo da mãe, e o mais velho, arriado no chão, não mais conseguia reunir forças para continuar andando, tendo que ser carregado pelo pai, não antes de passar pela cabeça de Fabiano a tresloucada ideia de abandonar a criança no descampado, e até mesmo de matá-la, a fim de prosseguir sua marcha; o mesmo não ocorre na fuga, já que agora são os dois meninos que correm à frente dos pais que, por sinal, apresentam sinais “visíveis” de decrepitude. A lentidão dos passos e o constante debruçar-se sobre o passado por parte de Fabiano e Sinha Vitória contrapõem-se à disposição dos filhos que, agora, são a continuação deles.
       e) na mudança não há referência a lágrimas. As vidas são tão secas que o sofrimento só é extravasado em sussurros e gemidos ininteligíveis; já na fuga, após o período de inverno, medram as tão sentidas lágrimas tanto de Fabiano quanto de Sinha Vitória, acentuando ainda mais o sentido de tragédia que se abatera sobre a família. E boa parte dessas lágrimas é vertida ato contínuo à lembrança de Baleia.
Em vão, Fabiano tenta dar à fuga a ideia de mudança, na tentativa de convencer a si mesmo de que o que estavam fazendo não era errado, mas não consegue.           
          Persegue-o uma consciência de pessoa rigidamente honesta. Aquilo não era mudança, ele concluiu, era fuga mesmo! As aves de arribação estavam para trás, costurando uma nuvem agourenta, o patrão tinha sido abandonado e – o que era pior – logrado. Era unicamente por este viés que Fabiano conseguia raciocinar. Nem o roubo no peso e nas medidas por parte do fazendeiro poderia justificar um homem fugir “como um rato”.
       Enfim, cremos ser válido afirmar que tanto “Mudança” quanto “Fuga” são caminhos de quem pretende se desviar da morte sem saber que caminha na direção dela. Fabiano sempre tinha uma vaga esperança. Ele sonhava, embora nem mesmo acreditasse ser esse sonho possível de se realizar. Mas sonhar mantinha acesa a chama da vida, era um paliativo que amenizava a secura da vida.

Referências

BRAYNER, Sônia (org). Graciliano Ramos. In: Coleção Fortuna Crítica, vol. 2, 2.ed. Brasília: Civilização Brasileira.

CÂNDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

CASTRO, Dácio Antonio. Roteiro de leitura: Vidas secas. São Paulo: Ática, 1997.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2.ed. São Paulo: Nova Fronteira, 1990.

MERCADANTE, Paulo. Graciliano Ramos: o manifesto trágico. Rio de Janeiro: Topbooks, (1994).

MORAES, Denis. O Velho Graça. Rio de janeiro: José Olympio, 1992.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 41.ed. São Paulo: Record, 1978.

RAMOS, Ricardo. Graciliano Ramos: retrato fragmentado. São Paulo: Siciliano, 1992.

SANT’ANNA, Afonso Romano de. Análises estruturais de romances brasileiros. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1984.

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